Dois contos de Huggo Iora


por Huggo Iora__


A IDA
Ergui a cabeça, olhei para o céu e, a princípio, cheguei a pensar que fosse um avião que atravessava a frente do sol, causando sombra tão súbita na calçada. Mas era apenas um pássaro de muito alto voo. Gavião, talvez. Ou um urubu feiticeiro. Seria difícil mesmo ser um avião. Antigamente, costumavam costurar o céu todos os dias, várias vezes. Agora, nada deles, nem mesmo uma memória do som do enorme motor. Melhor para os gaviões e os urubus, que planavam pacificamente no azul infindo.
Dobrei a esquina e comecei a subir a rua Professor César Mouro. No asfalto novo, um novo buraco. Quando olhei para frente enxerguei logo Kátia descendo. Ela usava um laço rosa, que segurava um lindo rabo-de-cavalo, e uma máscara branca. Os olhos verdes desmaiados na tela do celular contraíam-se em risos. Já a boca, velada pela máscara, era sem emoções. De celular no bolso, eu mantinha meus olhos voltados à frente, ao meu destino, ao horizonte. E do meu horizonte, enquanto eu ia, vinha Kátia.
Nossa aproximação era inevitável como a mutabilidade das coisas, e quanto mais perto seu corpo chegava do meu, mais as dúvidas cresciam dentro de mim. O que fazer quando nos cruzarmos? Como não parecer derrotado nem tampouco esperançoso? Talvez, em cima da hora, eu pegue o celular e finja não a ver... Não! estarei sendo infantil demais. Quem sabe uma troca rápida e muda de olhares, que transpareça o respeito, a consideração, que ainda guardamos um pelo outro. E se, contudo, Kátia não tenha mais nada guardado em si. E se ela optou por simplesmente tocar a vida, sem reminiscências. Faria papel de trouxa.
Catei, com a mão direita, o celular do bolso. Abri aleatoriamente o arquivo de imagens, fiquei jogando as várias fotos para o lado. Elevando pálpebras e retina, pescoço imóvel, mirei-a curioso, admirei as pernas firmes dela alternando os passos no concreto abafado de outono. A figura de Kátia aumentava a cada segundo. Meus dedos suados manchavam a película da tela. Pus de volta o aparelho no bolso. Foda-se! A encararia e diria, a voz abafada pela máscara: oi-Kátia-tudo-bem-com-você-? Feito adulto. E depois seguiria caminhada rumo ao meu horizonte, onde ela jamais terá acesso livre novamente.
Além do laço e da máscara e das calças de ginástica e do verde da íris, Kátia usava fones nos ouvidos, e trocava mensagens num dedilhar histérico. De repente, ela levantou a cabeça, como se buscasse no infinito alguma resposta, e pareceu tocar seus olhos nos meus. Meus passos não alteraram de velocidade, muito menos de compasso. Conservei-me altivo, seguro de minha pessoa. Já ela quedou de volta sua atenção à tela do celular, digitando a resposta que encontrara. Será que chegou mesmo a me ver ou sua mente encontrava-se demasiada distante no momento do contato óptico? E agora? E se na hora de cumprimentá-la ela simplesmente continuar seu trajeto de cabeça baixa, evitando o incontornável encontro? Vou me sentir humilhado? Deposto?
Minhas mãos ficaram mais úmidas nas palmas, frias também. Nos cruzaríamos, afinal, depois de tantos meses, de tantos choros desatados, de tantas palavras engolidas com cachaça e fumaça de cigarro. Então Kátia, em gesto tão natural quanto o desfolhar da última tarde, sem desgrudar do celular, atravessou a rua até a calçada outra. Surpreso, assassinei-a com o olhar instintivo de quem é rejeitado, sem ponderar as consequências de ser pego em flagrante.
A mulher, entretanto, não manifestou reação alguma, senão seguir descida pela rua Professor César Mouro, oferecendo por ora a visão de suas costas, o castanho rabo-de-cavalo balançado entre as escápulas, os cotovelos flexionados permitindo que ela digitasse mensagens para alguém tão distante quanto a resposta encontrada no infinito segundos atrás, quanto o toque de nossos olhos para sempre sumidos. Ou quanto o destino quase esquecido de minha ida.


QUASE TRÁGICO
Noé caminha à sacada do apê, num raro momento de distração. A empresa para a qual trabalha adotara permanentemente o home office. Justificativa: economia no bolso dos sócios. Assim, o tempo que antes Noé usava para se deslocar ao escritório converteu-se em produtividade. Mora com o ofício. O salário, no entanto, continua enxugado.
Da sacada o homem vê a rua. Pessoas trafegam em frenético vai-e-vem, a respiração arquejante, mas seus semblantes, agora livres das máscaras, parecem insuportavelmente vulgares. De repente, lembra de voltar ao trabalho.
Quando a esposa chega Noé sente-se comprimir, a luz do notebook lhe turva a vista. Não trocam palavras. Sequelas da quarentena, do insólito convívio. Ela corre chorar no quarto. Ele tem metas a bater. Só o sonho é que não sobreviveu.


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Huggo Iora (Pseudônimo de Victor Hugo Pinheiro) nasceu em São José, SC, no ano de 1992. Casado e pai de dois filhos, maneja seu tempo entre a profissão — educador físico — e a escrita, necessidade febril que o impede de implodir de repente. Publicou dois livros de poesia: E sem demora... versos diversos num liquidificador (Ed. Insular, 2018) e Balada Desafinada e outros concertos (Ed. Autor, 2019). Contribuiu em revistas literárias como Mallarmargens, Ruído Manifesto, Jornal Relevo, Arara Revista, entre outras. Atualmente, dedica-se aos contos.
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