A
IDA
Ergui
a cabeça, olhei para o céu e, a princípio, cheguei a pensar que
fosse um avião que atravessava a frente do sol, causando sombra tão
súbita na calçada. Mas era apenas um pássaro de muito alto voo.
Gavião, talvez. Ou um urubu feiticeiro. Seria difícil mesmo ser um
avião. Antigamente, costumavam costurar o céu todos os dias, várias
vezes. Agora, nada deles, nem mesmo uma memória do som do enorme
motor. Melhor para os gaviões e os urubus, que planavam
pacificamente no azul infindo.
Dobrei
a esquina e comecei a subir a rua Professor César Mouro. No asfalto
novo, um novo buraco. Quando olhei para frente enxerguei logo Kátia
descendo. Ela usava um laço rosa, que segurava um lindo
rabo-de-cavalo, e uma máscara branca. Os olhos verdes desmaiados na
tela do celular contraíam-se em risos. Já a boca, velada pela
máscara, era sem emoções. De celular no bolso, eu mantinha meus
olhos voltados à frente, ao meu destino, ao horizonte. E do meu
horizonte, enquanto eu ia, vinha Kátia.
Nossa
aproximação era inevitável como a mutabilidade das coisas, e
quanto mais perto seu corpo chegava do meu, mais as dúvidas cresciam
dentro de mim. O que fazer quando nos cruzarmos? Como não parecer
derrotado nem tampouco esperançoso? Talvez, em cima da hora, eu
pegue o celular e finja não a ver... Não! estarei sendo infantil
demais. Quem sabe uma troca rápida e muda de olhares, que
transpareça o respeito, a consideração, que ainda guardamos um
pelo outro. E se, contudo, Kátia não tenha mais nada guardado em
si. E se ela optou por simplesmente tocar a vida, sem reminiscências.
Faria papel de trouxa.
Catei,
com a mão direita, o celular do bolso. Abri aleatoriamente o arquivo
de imagens, fiquei jogando as várias fotos para o lado. Elevando
pálpebras e retina, pescoço imóvel, mirei-a curioso, admirei as
pernas firmes dela alternando os passos no concreto abafado de
outono. A figura de Kátia aumentava a cada segundo. Meus dedos
suados manchavam a película da tela. Pus de volta o aparelho no
bolso. Foda-se! A encararia e diria, a voz abafada pela máscara:
oi-Kátia-tudo-bem-com-você-? Feito adulto. E depois seguiria
caminhada rumo ao meu horizonte, onde ela jamais terá acesso livre
novamente.
Além
do laço e da máscara e das calças de ginástica e do verde da
íris, Kátia usava fones nos ouvidos, e trocava mensagens num
dedilhar histérico. De repente, ela levantou a cabeça, como se
buscasse no infinito alguma resposta, e pareceu tocar seus olhos nos
meus. Meus passos não alteraram de velocidade, muito menos de
compasso. Conservei-me altivo, seguro de minha pessoa. Já ela quedou
de volta sua atenção à tela do celular, digitando a resposta que
encontrara. Será que chegou mesmo a me ver ou sua mente
encontrava-se demasiada distante no momento do contato óptico? E
agora? E se na hora de cumprimentá-la ela simplesmente continuar seu
trajeto de cabeça baixa, evitando o incontornável encontro? Vou me
sentir humilhado? Deposto?
Minhas
mãos ficaram mais úmidas nas palmas, frias também. Nos
cruzaríamos, afinal, depois de tantos meses, de tantos choros
desatados, de tantas palavras engolidas com cachaça e fumaça de
cigarro. Então Kátia, em gesto tão natural quanto o desfolhar da
última tarde, sem desgrudar do celular, atravessou a rua até a
calçada outra. Surpreso, assassinei-a com o olhar instintivo de quem
é rejeitado, sem ponderar as consequências de ser pego em
flagrante.
A
mulher, entretanto, não manifestou reação alguma, senão seguir
descida pela rua Professor César Mouro, oferecendo por ora a visão
de suas costas, o castanho rabo-de-cavalo balançado entre as
escápulas, os cotovelos flexionados permitindo que ela digitasse
mensagens para alguém tão distante quanto a resposta encontrada no
infinito segundos atrás, quanto o toque de nossos olhos para sempre
sumidos. Ou quanto o destino quase esquecido de minha ida.
QUASE
TRÁGICO
Noé
caminha à sacada do apê, num raro momento de distração. A empresa
para a qual trabalha adotara permanentemente o home office.
Justificativa: economia no bolso dos sócios. Assim, o tempo que
antes Noé usava para se deslocar ao escritório converteu-se em
produtividade. Mora com o ofício. O salário, no entanto, continua
enxugado.
Da
sacada o homem vê a rua. Pessoas trafegam em frenético vai-e-vem, a
respiração arquejante, mas seus semblantes, agora livres das
máscaras, parecem insuportavelmente vulgares. De repente, lembra de
voltar ao trabalho.
Quando
a esposa chega Noé sente-se comprimir, a luz do notebook lhe turva a
vista. Não trocam palavras. Sequelas da quarentena, do insólito
convívio. Ela corre chorar no quarto. Ele tem metas a bater. Só o
sonho é que não sobreviveu.
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Huggo
Iora (Pseudônimo de Victor Hugo Pinheiro) nasceu em São José,
SC, no ano de 1992. Casado e pai de dois filhos, maneja seu tempo
entre a profissão — educador físico — e a escrita, necessidade
febril que o impede de implodir de repente. Publicou dois livros de
poesia: E sem demora... versos diversos num liquidificador (Ed.
Insular, 2018) e Balada Desafinada e outros concertos (Ed.
Autor, 2019). Contribuiu em revistas literárias como Mallarmargens,
Ruído Manifesto, Jornal Relevo, Arara
Revista, entre outras. Atualmente, dedica-se aos contos.
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