por Adriano B. Espíndola Santos__
N era uma espécie de mandachuva – a meu ver, e isso estava mais para uma blasfêmia, N era a personificação do mal. Operava um olhar pesado sobre tudo, sem, obviamente, se preocupar com as consequências.
Na época, não entendia a relação de N com mãe. O sujeito não parava quieto, passava de duas a três semanas fora e, quando chegava, não largava mãe, que tinha de se submeter aos seus caprichos, lavar, engomar, limpar a casa e permanecer por longas horas com ele na masmorra, chamada de quarto dos prazeres.
Toda vez que era liberada do dito quarto, do qual éramos enxotados com a maior veemência, mesmo por ela, com medo do que nos pudesse acontecer, mãe estava envolta numa atmosfera de dor, empalidecida, com os olhos embaciados de tanto chorar – era palpável, e eu o sentia. Meus irmãos, um com seis e outro com quatro – este, mal se podia pôr em pé, por um problema congênito nos calcanhares –, não entendiam a razão, mas se derramavam em prantos; enquanto eu, sequioso, queria de alguma forma resolver.
N tinha a mania de ficar estático ditando ordens, como um sultão, em sua poltrona de couro, e, para que não lhe sobreviesse nenhum embaraço, mãe peregrinava da cozinha para o quarto, e vice-versa, várias vezes ao dia, amorfa, vazia, visivelmente no limiar da vida. Aquilo me torturava; de alguma forma, sem saber o parâmetro do normal, o quadro me fugia da sanidade. A imagem que me apavorava era de mãe caxingando, puxando por uma perna, com dor lancinante, e, ainda assim, tendo de servir o todo poderoso. A flagelação ocorria, em média, quinze vezes, como no dia que contei.
À noite, deitávamos todos na sala, mãe no sofá, eu e meus irmãos num amontoado de espumas, que, de manhã cedo, por volta das seis horas, era imediatamente escorado nos fundos da área de serviço, para não atrapalhar o tracejar do velho roliço, de ancas largas e pernas finas, qual uma vaca que vi na televisão – frise-se: das poucas oportunidades em que assistia à televisão, era sempre de esguelha, afrontando a gravidade; olhos firmes para o quarto do prazer.
Esqueci-me de dizer: o sapão, como chamávamos, segredando, eu e Luís, meu irmão do meio – aí, algum motivo para rir –, se enojava de nossa cara e saía de casa, para perturbar o resto do mundo, não sem antes trancafiar tudo. Nessa temporada fora, permitia somente, para uso parcial, a sala, o banheiro social e a cozinha. Falo parcial porque boa parte da comida era, também, encarcerada. Detalhe: não havia iluminação natural; a luz que víamos, quando o tinhoso abria a porta, cegava-nos, e mãe, por instinto de proteção, dizia que aquilo, o que quer que fosse, poderia ser muito perigoso e que não nos atrevêssemos a ultrapassar a barreira do que não nos era permitido.
Com a ânsia de me alimentar de sol, passados alguns dois dias de maquinação, busquei uma ferramenta, uma faca de cozinha, e comecei a mexer na fechadura da janela. N contava com a nossa apatia, que estivéssemos domados de forma indelével, para não pensar no diferente, no possível, como se nossa razão não fosse além. Enquanto mãe se via de dor, e muitas vezes caía no sono, exausta, prestava-me, devotado, a cerrar a janela lateral. Luís cuidava de Célio, o menor, para não berrar e suscitar alguma interferência. No terceiro dia, sim, abriu-se o grande portal; podia-se ver que estava numa casa no campo, longas terras com bichos esparsos, alguns desconhecidos, mas todos nunca vistos: galinhas, cachorros, pássaros; era como se me revelasse a essência de minha imaginação.
Meus irmãos, então, vieram. Tapávamos a boca de Célio, porque tínhamos medo de mãe; de que tudo pudesse ir por água abaixo. Andamos em volta, e nada; o canto mais limpo. Luís e Célio, ao mesmo tempo que queriam se entrosar com os animais, corriam com medo do encontro; era muito novo, desafiador, e, sobretudo, bonito. Deitamo-nos na grama derramada, que permeava boa parte dos arredores da casa. Olhávamos o céu limpo, azul; sol cálido a dourar a pele, introjetando viço. Surpreendíamos com a grandeza do sol, que cobria nossos rostos. Luís se declarava apaixonado; não queria mais sair dali. Erámos verdadeiramente crianças no puro e justo deleite da vida.
Ouvimos o grito surdo, desesperado, de mãe. Imediatamente, corremos para as suas vistas, para não a matar de um susto; ela era o nosso único e maior bem. Quando chegamos, a mulher desfalecia e suplicava: “Por que fizeram isso? N vai nos aniquilar! Se ele voltar a tempo, como está jurado, matará a todos, para não sobrar nenhum tiquinho de história!”. Li, em seus olhos, a vontade de fugir e o medo competindo. Ela acreditava, durante todo esse tempo, que dom N esquartejaria, como prometera, primeiro as crianças, começando pelo menor, para que pudesse ver, e depois daria fim, também, ao seu corpo, pois que “Ninguém daria conta de sua existência, cabocla safada!”
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Aos moldes do cangaço, mãe teria sido roubada nos arredores de Sobral, da terra próspera de Meruoca. O bandido N, cujo nome prefiro não falar, pois que é o próprio cão e isso nos traz má sorte, arrastou-a dos braços de meu avô e a alojou, depois de três dias de viagem, numa casa afastada do lugarejo Oiticica.
Sendo um sítio em lugar ermo, no começo tratou-a como se fosse sua esposa, para dar ares de normalidade; depois, passou a proibi-la, progressivamente, de qualquer contato com o mundo.
Sabendo que depurava a sua passividade, começou a trancafiá-la para, segundo ele, buscar o sustento em outras terras perigosas. Assim, ela estaria protegida dos bandidos da região – dizia que muitos rondavam e ameaçavam violar as mulheres.
Com quatro anos presa, começaram a nascer os rebentos da violência: Francisco, Luís e Célio, com os nomes inventados por minha mãe, em homenagem ao meu avô e ao meu bisavô – para o maligno do meu genitor, éramos tão somente um, dois e três.
Mesmo com toda a desgraça, percebíamos que estávamos afogados numa maldição; que não era certo ver mãe arrasada, chorando pelos cantos; quando não, rasgando sua pele com uma faca, com marcas até hoje visíveis, pelo corpo todo
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Depois de ser convencida por nosso amor, mãe topou pegar o rumo do vento; mas teria de ser rápido. Havia um ditado que o satanás repetia e martelava na cabeça dela: “A vingança é um prato que se come cru, com os bofes e tudo!”. Remoendo em mim numa descarga excitante de energia, sonhava, agora, sangrá-lo e deixar ser consumido pelo fogo.
Fechamos todos os compartimentos. Só eu fiquei em casa, esperando-o para o bote derradeiro. Esguio, podia escapar pela fresta que abri, fácil de vedar.
Minha mãe já estava longe, com meus irmãos em segurança. Chorava com medo de que eu não retornasse, mas garanti que o plano era infalível – a sorte era que o velho não tinha mobilidade e, se preciso fosse, esfolava-o à distância com o facão, para abrir ao meio, com as forças de um guerreiro ressurgido.
Assim se fez; coloquei um pote de barro cheio d’água na parte superior da porta, levemente aberta, o que suscitaria a dúvida do belzebu, para fazê-lo entrar de súbito. Foram água e cacos para todo lado. O velho jazia desacordado, não se sabia por quanto tempo. Estando lá, apliquei, calmamente, quinze golpes com o meu facão samurai vingador; retalhei-o como a um porco cevado. Já com óleo e querosene espalhados pela casa, bastaram um fósforo e mais alguns passos, rápidos, para ver a casa arder. Nessa noite, contamos estrelinhas e dormimos tranquilos ao relento, admirando as labaredas que tocavam os céus.
* Fotografia: Melanie Magdalena on Unsplash
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Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor dos livros Flor no caos, 2018 (Desconcertos Editora), e Contículos de dores refratárias, 2020 (Editora Penalux). Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados nas Revistas Acrobata, Berro, Brasil Drummond, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Mbenga, Mirada, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado