por
Taciana Oliveira__
O
primeiro parágrafo das memórias de um louco (edição
do autor), livro de contos do escritor cearense Thiago
Noronha, surpreende não apenas pela ousadia de
publicá-lo no formato independente numa época que o mercado editorial
procura soluções para enfrentar a crise provocada pela pandemia,
mas principalmente pela leveza e força da sua estrutura narrativa.
Em seu livro de estreia, Thiago não se apresenta timidamente, não
se rende a clichês e entrega ao leitor uma obra madura, com
personagens em trajetórias distintas, carregadas de uma humanidade
latente. Quando recorre ao realismo fantástico, o autor não
escorrega. Thiago não nasce como promessa, a sua potencialidade
criativa não é um esboço para um escritor. Ele já é realidade.
A
obra é dividida em seis partes: quase ficções, naquele
tempo, sobre eles e elas, um lugar de vento doce, do
que vi do mundo e devaneios. Os cenários para suas histórias
retratam uma sociedade em recorrentes contradições. Os textos são
dotados de uma ironia refinada, cortante. O autor ilustra com metáforas muitas
das suas histórias, espelhos da nossa conduta social,
tecida nas raízes egoístas e descartáveis de um capitalismo
selvagem. A exemplo disso cito o conto que abre o livro, A praia
dos Gato-cão.
(…)
Voltaram a ser pescadores. Voltaram a criar preá para o abate. Os
gatos-cães padeceram diante do alagamento completo do coqueiral e,
consequentemente, da extinção dos preás selvagens. Dizem que uma
grande batalha entre grupos rivais de gatos-cães acabou com a maior
parte da população. Os cadáveres felinos foram devorados pelos
vitoriosos famintos. Os vitoriosos não sobreviveram aos ferimentos
nos dias que se seguiram. Só se sabia de um último gato-cão vivo,
mas esse, logo ele, tinha jeito de gato. Dizem que ele quase morreu
na batalha dos gatos-cães, arquejou por três dias, quando despertou
estava com jeito de gato. Miava e lambia-se
em banhos demorados. E agora? Que nome teria a praia?
Thiago
constrói reflexões oportunas sobre o comportamento cíclico e
autodestrutivo do homem, compondo situações que beiram ao
extranatural. Sua escrita reverbera o humor espontâneo de um
Sérgio Porto (O cachorro influencer, O tamanco e
O Italiano cheira bosta), a melancolia agridoce do capixaba Rubem
Braga (O colégio das freiras, Vovozinha e Sobre reis e vermes) e o
erotismo e a visceralidade
de
Caio Fernando de Abreu e Nelson
Rodrigues (Marina e Amores de julho).
Eu
poderia enumerar mil razões para convidar vocês
à leitura de O primeiro parágrafo das memórias de um louco, mas vou listar apenas o delicado
trecho de Finitude Felicidade:
Felicidade
é ter feijão na mesa.
Sou
feliz esperando a chuva cair. Tirar as roupas do varal parece
um propósito. A simples realização da execução. Os
que comem em restaurantes perdem o feliz ritual de cozinhar e o ato
terapêutico e reflexivo de lavar os pratos. Embora lavar panela de
pressão seja foda!
Cortar
uma cebola, descobrir o ponto ideal de uma fraldinha, bater tomate
com hortelã no liquidificador. Os que dormem no ar condicionado
desconhecem a canção de ninar dos ventiladores de teto. A
tecnologia evitando ruídos. Quem disse que o silêncio noturno é
agradável?
Acabou
que o sol apareceu no céu. Quem sabe uma praia me anima o dia.
Mágicas praias cariocas! Belos e vaidosos corpos cariocas. Um
mate gelado e uma esfirra de calabresa.
Estou
feliz. Hoje.
Fim.
Ao
publicar seu primeiro livro com a cara e a coragem, o
autor cearense nos mobiliza
para o afeto,
para empatia e para as coisas simples da vida.
No ano em que escritor Sérgio Sant'Anna
nos deixa,
um jovem contista
nos reanima no caos com o seu rico celeiro de histórias. No seu conto
As cores de Fortaleza, ele escreve:
Que
sempre resistamos! Que sempre sobrevivamos!
Fortaleza
vem do latim que significa “força, valor e coragem.
Thiago Noronha nos fortalece.
*As informações sobre pré-venda do livro estão em: https://www.sympla.com.br/pre-venda-o-primeiro-paragrafo-das-memorias-de-um-louco-livro-de-contos-de-thiago-noronha__879856
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Thiago
Noronha nasceu em 1990 em Fortaleza. Escreve sobre o cotidiano,
revisita memórias da infância, conta de suas viagens Brasil afora e
relembra paixões. Diz-se dono de uma escrita cômico-afetiva cheia
de críticas sociais.
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Taciana
Oliveira
é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife,
apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura.
Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra
quem quiser ouvir: Ter
bondade é ter coragem.