Roca, de Inês Campos


Por Adriane Garcia___


Roca: o que se há de fiar pelas extremidades
atando o navio partido – recorta o vestido 
pedra – rocha – penhasco

Inês Campos



No mito de Procne e Filomela, dois reis firmam uma aliança. O rei trácio, Tereu, leva em casamento uma das filhas de Pandíon, Procne, para suas terras. Porém, segue com o desejo de tomar para si a irmã Filomela. Mais tarde, com ardil, o rei trácio diz a Pandíon que a esposa Procne está morta; o rei grego, então, entrega-lhe Filomela. Tereu a estupra e quando Filomela, sabendo que Procne está viva, ameaça desmascarar o marido de sua irmã, contando sobre a violência sexual que sofreu, ele lhe corta a língua.
Há uma atividade comum às mulheres na antiguidade e em grande parte do decorrer da história: tecer. A roca, as lançadeiras, os fusos, as agulhas, as lãs, as linhas, as varas, os bastidores de bordados são instrumentos milenares não só necessários à economia doméstica, mas ao engrandecimento de uma performance feminina aceitável: ser útil, produzir no mundo privado e desenvolver a virtude esperada do silêncio.
Acontece que a comunicação não se dá apenas com a fala fonética. Outras formas de emitir e receber informações, sensações, sentimentos, se desenvolvem. Assim, tecer se transforma em um modo de produzir e transmitir saberes. Filomela não aceitou o seu silenciamento e foi parir a sua fala tecendo. Na trama, urdida por bastante tempo, como nos processos psicanalíticos, utilizou o fio como voz e foi assim que contou para Procne toda a verdade. Procne, então, vingou-se de Tereu, matando-lhe o filho e oferecendo-o na refeição para que o pai, a princípio sem o saber, o comesse.
No livro Roca, de Inês Campos, uma tessitura é dada a comunicar – e o título, muito bem escolhido, é a extremidade da linha que pode guiar o leitor por um jogo de comunicação quase indireta. Não se trata de um bordado figurativo, ou pedagógico, à moda de narrações em iluminuras, mas de reflexões e imagens que vão se construindo e que chamam a leitora/o leitor para entrar no labirinto têxtil. É com palavras que Inês Campos tece e reflete a roca, como no primeiro poema Nome, em que a palavra inaugura a matéria, feito um gênesis, e gestar é tanto uma experiência no ventre, quanto uma experiência de linguagem: “o contorno / em ponto frouxo / cobra a firmeza da mão/ demanda um nome antes/ antes uma mirada // seguro o círculo/ no ventre – // a certeza é somente do fio”.
Roca é dividido em três partes, Promessa, Procura e Esquecimento. Em Promessa, a poeta fala da experiência; suas reflexões se dão sobre os nascedouros – a infância e os sinais de uma personalidade que dispensa os símbolos da feminilidade padrão e assume a força e a vontade de conforto, segurança (como no poema Galochas). O destino incerto e as despedidas aparecem, é um tecido/teia permeado de memórias, nesse passado em que não há só dor, mas também as coisas (sabores, sensações) que lhe foram deliciosas e em nome das quais os riscos dos adultos se justificam. É interessante notar a presença do mundo vegetal nessas lembranças (maçãs, flores brincos de princesa). Enquanto tece/escreve, atividades mágicas podem acontecer, como colocar o espaço infinito no espaço finito. Inês Campos cria muitas imagens com sua poesia; algumas grandiosas como no poema em que a noite é um cavalo selado. De forma metalinguística, esse eu-lírico segue registrando no próprio tecido a atividade de construção diária, cotidiana, que contém o erro, o acidente (puxar o fio por equívoco, destecer). Tecer é também lugar de muitas impossibilidades e tentativas. Roca é metáfora para a vida e para o exercício de escrever, nele há tanto a consciência da dificuldade vivencial quanto a da dificuldade comunicativa de tecer a exata experiência. Em determinado momento, o eu-lírico tateia pedras procurando desenhos, em confessa cegueira; tateia palavras, sabendo que é preciso aguçar outros sentidos.
Na segunda parte, Procura, aprofunda-se o sentimento de estranheza diante do mundo. Não à toa, o poema que abre essa seção se chama Exílios. As buscas inúteis e o sentimento de que é impossível a comunicabilidade, se o olhar é estrangeiro e não se aproxima do idioma do outro. A violência potencial desse estrangeirismo de cada um é sentida nestes versos: “punhos lambendo o chapisco dos muros/até engolir a palavra/que ficou nos dedos”. Procura traz poemas que se focam na tentativa de alcançar a outra pessoa e o outro lugar, um coração nômade, cigano na origem, incapaz de se fixar. O sentimento de incompletude no ápice: “fiquei no trem que não passou/no verbo que escapou pela pele” e a angústia de toda procura se fazer no tempo implacável, que passa e, portanto, não espera. No poema Oca, encontramos uma outra história: A Bela Adormecida. Em dois versos e um título muito hábil, viajamos pelo conto de fadas inteiro. A finalização nos faz especular se Bela dorme ou se, finalmente, acorda. Os poemas seguem procura afora, os acidentes continuam, o desconhecido sempre à frente. Tecer também é desfazer os nós que causam as separações, constatar que o outro pode vir com uma bomba disfarçada de felicidade. E, às vezes, é possível que uma separação seja apenas livramento, boa sorte: “jogou cara e coroa e guardou sua vida”.
Na terceira parte, Esquecimento, os poemas se encaminham para uma gradação maior do sentimento de dor e uma conquistada maturidade. Laços que serão para a vida toda, como filhos; e laços desfeitos. Os versos evocam paisagens vistas em comum e paisagens solitárias, das “ancas agora errantes”. O eu-lírico possui plena certeza do mecanismo da roca, a rudeza, a opressão (masculina sobre o feminino por destaque), o castigo, a incerteza, o cálculo e o erro. Dessa constatação, tecida também no auto diálogo, assoma-se uma personagem munida de vigilância e coragem: escrever é um processo violento. A paz evocada em alguns versos coincide com o desejo expresso na epígrafe de Alejandra Pizarnik escolhida para a terceira parte do livro; paz coincide com sono, ou com o sono eterno da morte. Inês Campos escreve: “não quero sua mão acordando meu corpo/ quero a mortalha que teci”.
Roca alia sentimento e linguagem, tema e forma. Como tecelã, Inês Campos não poderia seguir a esmo. Não se desvia do saber de que o tecido é a técnica. Porém, aquilo que precisa ser revelado na trama, o grito de Filomela, há que chegar ao outro lado. Outras tecedeiras se aproximam e vêm lhe fazer companhia. Ariadne sabe que é o fio que vai conduzi-la à saída do labirinto. Penélope lhe compreende uma demora, fiar é também desfiar. Aracne está ali para lembrar que tecer/escrever é parear com deusas; e que fazê-lo bem é um grande atrevimento. Se em Roca, o sentido é muitas vezes enigmático, atrelado a fatos que só a poeta seria capaz de esclarecer, ao mesmo tempo não se trata de um texto impenetrável. Enquanto fia, o conhecimento de si acontece. Enquanto se sente/lê/compreende o tecido, a leitora/o leitor acessa seus próprios conhecimentos (seus fatos pessoais ou conhecidos), assim como Procne foi revelada a si (que papel fazia naquele casamento) pela revelação de Filomela.
Inês Campos trabalha de forma central com a metáfora, com as pistas. Na Poética, Aristóteles dizia que a qualidade-chave da poesia estava na clareza; que se obtinha a clareza máxima pelo emprego das palavras cotidianas, mas à custa da elevação. Falava de apelo à razão. Depois de Aristóteles muita coisa mudou, muitas descobertas sobre os modos de conhecer vieram à tona, e a poesia, há muito, não lida apenas com a racionalidade. Em Roca, as palavras usadas são totalmente próximas, há embelezamento na sintaxe, mas o sentido trabalha com uma linguagem interior, que pode acessar em quem lê a possibilidade de interpretações diversas, sem perder a fala total do que o livro revela amplamente. Uma poesia que desautomatiza, que chama as subjetividades, em que a mimese dá lugar ao símbolo, sem perder o “grito biográfico” do eu-lírico.
É de se notar que uma das metáforas mais fortes de Roca é a da escrita no couro. Recorrentemente, os versos confessam essa forma rústica, durável, dolorosa de grafar algo. A escrita não é feita em superfície suave, mas na pele, como quem se marca em um pacto. Usando um entre os muitos versos tão bem construídos de Roca, destaco este que eu diria sobre Inês Campos: “ela tem parte com o verbo”.

NOITE
o espaço em suas costas
para a acolhida do dia
couro bordado
com faca
sustentando todo o grito
o ajuste da sela –
galope para fora
do mapa

CORCOVAS
fiquei no trem que não passou
no verbo que escapou pela pele
o céu reduziu os espaços e arreganhei
os dentes atrás da burca
engoli a chave que carregava no pescoço
nenhum pensamento depois do seu sopro
montei o bicho no silêncio das corcovas
a maldição do muro saltado
onde foi que não mastigamos o sal?
em que língua choravam seu nome empedrado?

OCA
mas eis que encontra a roca escondida
e a fina agulha à espreita




(Poemas de Roca, p. 15, 28 e 30)


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Roca
Inês Campos
Poesia
Cas’a edições
2019



*Inês Campos nasceu em Belo Horizonte, onde vive ainda hoje. É poeta e advogada. Em 2017, lançou o livro Geografia Particular, pela Cas’a edições. Seu segundo livro, Roca, foi lançado em 2019 pela mesma editora. Alguns de seus poemas foram publicados também em revistas e coletâneas nacionais


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Adriane Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da primeira cidade planejada da República, com destaque para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros Fábulas para adulto perder o sono (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Ed. Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018).