Na semana que o Legião Urbana chegava na cidade com a turnê do álbum As quatro estações, no Art Boa Viagem entrava em cartaz o filme Cinema Paradiso, de Guiseppe Tornatore. Para ir ao show com meus amigos contei com uma pequena ajuda do meu irmão, Ronaldo. Ele, para tranquilizar meu pai, também “iria comigo”. Só que a história não seria bem assim. Quando nossa carona chegou, ele tomou um caminho diferente e entrou naquele cinema charmosinho, que funcionava na garagem de um edifício, na zona sul de Hellcife. Eu, eufórica, continuei com os amigos aguardando ansiosa os primeiros acordes de Há tempos. O combinado é que voltaríamos todos juntos. A sessão de cinema terminaria antes do show, Ronaldo então pegaria um táxi e se encaminharia para o Geraldão e me encontraria na saída do ginásio. Mas quando ele chegou os portões estavam abertos e dessa forma também conseguiu acessar a pista principal. Pegou o finalzinho da apresentação, o suficiente para guardar na lembrança a performance inesquecível da banda. Porém, quando perguntei o que ele tinha achado do filme, a resposta foi contundente: Maravilhoso! Não me arrependi de ir ao cinema. O filme é lindo e você tem que assistir!
Dois anos depois fui com um amigo ao Teatro do Parque para finalmente assistir Cinema Paradiso. Para quem não conhece a importância desse espaço, o cineteatro é responsável pela formação cultural e emocional de uma geração de recifenses. As sessões de cinema aconteciam sempre as segundas e terças-feiras, e tinham a curadoria de Geraldinho Pinho, que durante alguns bons anos nos brindou com uma lista poderosa de clássicos e filmes independentes. Naquele ano, eu passava por mais um período de transição. Oscilava terrivelmente nas contas a pagar e nas relações familiares: já morei em tanta casa que nem me lembro mais.
A sessão estava lotada. Fernando, que me acompanhava, alertava que muitos dos que ali estavam vinham para assistir ao filme mais uma vez. Era o caso dele, que não parava de falar do roteiro, da música, do ator, do cenário...
No Cineteatro o ritual era quase sempre o mesmo: o ingresso era barato e os encontros e reencontros com os amigos aconteciam nas filas da bilheteria. Quando subia os créditos finais ouvíamos os comentários tomando os corredores, atravessando as ruas e alimentando as conversas nos bares do centro do Recife.
Era um tempo tão difícil para mim e assistir aquela obra foi uma catarse. A sessão foi como um batismo: a primeira vez que desabei e chorei copiosamente no escuro de uma sala de cinema. A música abraçava meu corpo, a tela brilhava nos meus olhos e aqueles homens e mulheres na plateia riam, choravam, silenciavam... Morricone e Tornatore não têm ideia do impacto que causaram na vida daquelas pessoas. Testemunhei uma plateia em lágrimas. Os ruídos dos camarotes eram de emoção. Quando o Cinema Paradiso chegou ao fim restou o murmúrio apaixonado do público. As pessoas suspiravam devoção.
Hoje, julho de 2020, o cinema Art Boa Viagem não existe mais e Ennio Morricone deixa seu obituário: “À minha esposa, o adeus mais doloroso”. O Teatro do Parque está fechado, em uma reforma interminável, e assim deixa uma nova geração órfã da sua programação. Temos quarentena, Trump, Covid – 19 e a histeria genocida bolsonarista. Temos cinismo e muita hipocrisia. Já não sou a mesma, mas continuo emocionalmente vulnerável quando escuto qualquer composição do maestro ou assisto Cinema Paradiso. Isso ninguém pode me tirar. Minha religião habita naquela tela de cinema. Ah, não me arrependo de ter ido ao show. E ainda canto: Meu amor!/Disciplina é liberdade/ Compaixão é fortaleza/Ter bondade é ter coragem.
Salve, Legião! Salve, Morricone!
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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.