Três contos de Vanessa S.

por Vanessa S.__



Coisa de Ano Novo
Nesse exato momento, às 6h 55min do primeiro dia do ano, em algum lugar, há alguém tendo um orgasmo. Há alguém fingindo um orgasmo e há, em algum selecionado, um desejo suicida. A embriaguez, hoje, já é até parte do Todo. Contudo, há em mim o som de dois relógios e o do teclado do computador.
Não fazer parte do Todo não te anula o valor, tampouco as dores, senão, as aumenta. Os relógios, que tiquetaqueiam descompassados, sim, estes fazem parte do Todo, que para mim é um Todo — indeterminado.
A indeterminação do Todo começa, suponho e costumo acreditar, na ausência de intenção determinativa — no "não pense a respeito". Ainda a mesma condição se mantém — o descompasso dos senhores do tempo é uma sinfonia permanente no ar — tic tac, o som se repete duas vezes a cada dois segundos desde que começou, desde antes de mim. O som permanece.
Sob a mesa, as pernas alheias ao Todo — pois é assim que tudo se determina: a partir da sua relação ou não relação com o Todo, um Todo —, elas balançam em seu ritmo descompassado. O violão não é tocado, as palavras em inglês na lousa — há palavras em inglês na lousa — do quarto não saem, não se perpetuam, não são perpetuáveis, não sem o Todo. Dois toques em dois segundos, se mantêm. Consegue ouvir? Ao fundo, altissonante, por cima do assobio dos pássaros, maior do que o acalento da brisa, anterior ao som da escrita ordinária: tic tac.
O Todo, que segue o relógio, rasteja, suplica. Suplica pois infringe dor ao indeterminado, ao que "não é"; "não é" justamente por causa daquele primeiro. Fique claro aqui que o Todo é quase um tudo — se já não o for. No entanto — como era de se esperar — aquele não rasteja com suplício, mas em glória.


As flores se fecham
Um cenário sempre mesmado se apresenta desde que se foi percebido pelos dois olhos quaisquer. Laranja entre verdes, se mostram. Laranja entre verdes, repito. A cerca de tijolos, alguns vermelhos, escurecidos pelo tempo, é gasta de um lado e forte e cinzada de outro. Há tons de marrom. Estes se apresentam como manifestação da estrutura dos verdes. Estes últimos são curtos, limitados pela natureza mãe, e respiram. Se dispõem em grupos, se amontoam. A coisa, o todo formado pelas cores, não pode ser vista desde a raiz, pois ela é atrás da cerca gasta — sim ela é. O todo da vista, que é o cima glorioso, costumava ser o céu, mas hoje é mais cerca de tijolos, ainda em construção. Um homem trabalha. O céu, esboço de plenitude já finda, era cinza, agora azul, se apresenta como o usual; toma e conforta a imensidão ácida acima das cores e cercas. Todas essas cores embalam as vistas dos olhos quaisquer, olheiros do lado de dentro da janela aberta. Até aqui, hoje, tarde onde novamente o sol se pôs sem ser visto e o céu já escuro torna, aqueles olhos quaisquer não haviam ainda reparado: As flores se fecham; as flores laranjas se fecham.



Trajeto
Num restaurante. O que será necessário para se sentir parte? Perguntou a mulher empanzinada de tanto comer naquele almoço caro que sabia não poder pagar. Seu dinheiro já não pertencia a ela. Dívidas. Pensou nisso muito tarde. O frango e as batatas e as saladas e o purê e o baião de dois e o feijão – esta última iguaria completamente fora de contexto – estavam ótimos. Recém tísica, por assim dizer – pois ainda tossia catarro, mesmo que agora não mais verde –, aquela mulher que insistia em se chamar gorda poderia ser totalmente insignificante para as histórias a seguir. Assim, talvez, como Scar.
Na rua do Centro, perto da Acal e da Igreja. Ela vê já quase ao fim da rua um corpo negro, um short e um suor sempre presente – que deve ter a ver com o asfalto. Nenhum chapéu de couro. Mas ele também era o Canto da Jandaia. A sarjeta é sua seca, pensou. Miséria e fome aparentemente não são luxos do sertão. O urbano é devorador tal qual a falta de água Cariri adentro. A diferença, foi dito, é que a única vaca morrendo por ali é a Cláudia, que mora na calçada da igreja virando a esquina. Que roubou de alguém as chinelas – durante o sono exausto da vítima – depois apareceu com elas dizendo que ganhou da Dona Maria Alcioneide, uma senhora que aparece a cada quinze dias, sempre no mesmo horário, para lembrar que elas e eles talvez também sejam capazes de fazer parte, e é um amor. Apesar de que tem nome de tela de TV de clínica popular sem convênio.
E ela não sabia onde era o Cariri.
Num ônibus. Por que a música em uma língua desconhecida por aquela criança vista da janela em movimento insistia em lhe lembrar sua história? – desconhecida também que era? No fundo o desejo era de que o corpo negro brilhante, semi nu não por escolha, de pé descalço e olhos famintos, barriga igualmente faminta e perversão na cabeça, o desejo era que aquele corpo dançasse a música estrangeira, como nos clipes de gente famosa. O desejo de que ele soubesse como fazer parte. Pessoas não dançam com sede, fome e no calor extremo dos dias da Terra da Luz – ou dançam? O abandono do Centro da Cidade, situações de esquina: mulheres e meninas sedentas e grávidas de novo. As esquinas compõem os momentos e há uma fila de mau cheiro e necessidades que ninguém quer passar. Mas até onde é sabido, a pobreza não é do Ceará.
A mulher agora não mais tão tísica e de barriga quase vazia.
Numa avenida com nome de homem branco e rico, pelo que ela soube. “Aceitamos sucata ao vivo”, a mulher, que vira o menino seminu, não por opção, leu numa placa mal feita à mão, que fora pendurada há alguns dias numa oficina caindo aos pedaços. Não entendeu. Lá também é possível encontrar um pouco mais de sarjeta e um pouco menos de humanidade. Mais à frente, uns prédios abandonados cheios de lixo, de dejetos, de coisas de homens e de odores de morte. Como fazer parte quando se vive na sarjeta? Talvez aquela pergunta fosse tão difícil de responder quanto quando não se vive.
Noutro ônibus. Ele era negro e tinha dreads e uma camisa branca com um círculo vermelho no meio, quase como um alvo. Aquela coisa de pedir era chata, fez careta. Às vezes pensava em desistir. Se eu não quisesse nada de vocês eu não estaria pedindo, disse. Olhos tristes, cansados, mas alertas, como somente a droga ou a humanidade são capazes de deixar. Seus olhos iam e voltavam um pouco mais rápido que o movimento do seu pescoço da frente para o lado, repetida e ininterruptamente em meio aos sacolejos do ônibus. O passaram na catraca, finalmente. Um dos finos dreads em sua cabeça estava para cima, como se arrepiado. Entre a multidão de indiferentes, muitos dormiam, mas a mulher não. O homem com blusa e pele alvos a encarava com um misto de fome, rancor e maldição. Buscava piedade e, quem sabe, se perguntava o que seria preciso para se fazer parte.
Há vida e pertencimento fora dali, fora das janelas dos ônibus e das calçadas habitadas do centro; dos corpos negros seminus, das ladras Cláudia, das mulheres e meninas grávidas de novo, das situações de esquina. Em algum lugar, duas mulheres, uma como o céu à noite e uma feita de nuvem, ardem de desejo uma pela outra e sorriem um sorriso de tesão aos beijos – estes são quase sempre por coincidência planejada interrompidos pelos seguranças dos lugares. Um homem do interior caminha com seu cachorro. O nome dele é Scar, ele diz a uma desconhecida numa parada de ônibus qualquer da Grande Fortaleza.
Na rua de casa. Como se aceita sucata ao vivo, afinal? A mulher que insistia em se chamar gorda não entendeu. E é preciso assumir que não é coerente.
Em casa. Nenhuma daquelas pessoas foi consultada, acessada. Ela nunca fez mais que as ver. Nenhum toque, ou conversa. Tampouco contato visual. Ela viu o menino-homem-negro semi nu não por opção, ouvira falar de ladra Cláudia numa das calçadas habitadas do Centro, ali mesmo perto da Acal. Via as barrigas das meninas e mulheres grávidas de novo, mas só as barrigas; enormes e sujas de tanto deitar no chão e foder na rua, nunca os olhos. Ela viu o homem negro de dreads, camiseta e pele alvos, mas não lhe deu a ajuda, ficou quase ofendida com a maldição dos olhos desconexos dele.
Como se aceita sucata ao vivo? Não seria capaz de responder. Assim como jamais saberá exatamente se Cláudia devolveu as chinelas da vítima, ou se o corpo negro semi nu dançava no sol de asfalto da Terra da Luz, muito menos se o homem de dread era o pau de alguma das meninas barrigudas habitantes das calçadas do Centro. Não. Não saberia nada mais do que aquilo que a superfície inverossímil de sua percepção externa lhe proporcionasse. Não saberia da fome, do abandono ou da imprevisibilidade das ruas do urbano. Não saberia também caso não fosse tão ruim quanto parecia. Nunca esteve lá. Aliás, era estrangeira na Terra do Sol. O que seria então necessário para fazer parte?
Num restaurante. Na rua do Centro, perto da Acal e da Igreja. Num ônibus. Numa avenida com nome de homem branco e rico. Na rua de casa. Em casa. No Ceará. No urbano. Ela também era o Canto da Jandaia. A sarjeta felizmente não é sua seca, pensou. Mas miséria e fome não são luxos do sertão. O urbano é devorador tal qual a falta de água Cariri adentro. Nada é exatamente necessário para fazer parte. Ou se faz, ou não. Não sabia onde era o Cariri. É que antes de chegar, só tinha lido a respeito disso. Lembrou do que o homem do interior lhe dissera na parada do ônibus: O nome dele é Scar. Boto nome difícil que é pra ninguém ficar chamando.

*Fotografias: Aron Visuals, Tom Barrett e Google Maps
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Vanessa S. é enxadrista desde muito cedo e Tricampeã Cearense de Xadrez, É estudante de Letras (Português - Inglês) da Universidade Federal do Ceará. Mora em Pacatuba, na região metropolitana de Fortaleza, cidade onde nasceu (1998). Escreve principalmente contos e poemas. Traz consigo palavras que lhe chegam em seus dias, nelas se abriga e por elas é salva.