A Construção de Rabecas em Pernambuco

 por Jorge Ventura de Morais & Ícaro Costa__

A Construção de Rabecas em Pernambuco: O caso Claúdio Rabeca
     A rabeca é um tradicional instrumento brasileiro que está presente em grande parte das manifestações culturais do país. Definida por Roderick Santos como um “instrumento de cordas tangidas por um arco de crina animal ou sintética, desprovido de padrões universais de construção, afinação ou execução”, a rabeca, por mais que não se tenha uma ideia clara de sua origem, é contextualizada por Juarez Bergmann Fº como um instrumento que surge a partir dos primeiros contatos que artesões brasileiros tiveram com o violino europeu, se estabelecendo, desta forma, como instrumento musical ligado às práticas culturais de comunidades afastadas do processo de industrialização e educação formal.
    A grande variedade de formas do instrumento e das técnicas de construção podem ser observadas em várias partes do país. No Nordeste, Roderick Santos vai considerar a existência de um tipo específico de rabeca que resguarda características visuais marcantes do violino, como o uso das quatro cordas, a cravelha, a voluta e os “Fs” (Ver figura 1), além das técnicas de construção e de encaixe do tampo, do fundo e das laterais, como poderá ser observado no abaixo. Santos vai denominar este tipo de instrumento de “rabeca-violino", que são os formatos mais tradicionais da rabeca. Este tipo difere do “violino-rabeca”, que são violinos utilizados por rabequeiros a partir de modificações estruturais no instrumento.






    Neste artigo, a partir de sociologia das práticas sociais, ou seja, da análise dos processos práticos de como alguém constrói um objeto, analisaremos o método de construção da rabeca de Cláudio Rabeca, luthier de Olinda (PE).
    Cláudio Rabeca, construtor de rabecas e músico profissional, potiguar radicado em Olinda, foi aluno de Mestre Salu nos estudos da rabeca e posteriormente tornou-se professor do instrumento. Com o objetivo de facilitar o acesso à rabeca aos seus alunos, Cláudio buscou o desenvolvimento profissional na luteria a partir de aulas com o professor João Nicodemos na Paraíba, realizando a construção do instrumento a partir do uso de ferramentas manuais como a goiva e a lima. Com o aprimoramento do seu trabalho, Cláudio passou a desenvolver suas próprias técnicas de construção, assim como a construção de ferramentas e a adaptação de outros utensílios, que serviriam para facilitar o processo de construção da rabeca. Diferentemente de construtores mais tradicionais da rabeca de Pernambuco, Cláudio realiza o uso de determinadas ferramentas elétricas de precisão para trabalhar com cortes e ângulos de tamanhos específicos, buscando uma maior padronização do seu instrumento. Isso se deve ao fato de que Cláudio pode ser caracterizado como integrante de uma nova geração de artesãos que tem tido um maior acesso à educação formal e à escola de formação de luteria, fazendo com que haja uma maior uniformidade na produção dos instrumentos com o uso de ferramentas de precisão.
     O processo de construção da rabeca, a escolha das madeiras e as ferramentas que são usadas por Cláudio nos diferentes estágios de produção são, portanto, frutos de um cotidiano de trabalho, desenvolvido e forjado a partir da prática, consolidando assim diferentes percepções que, com o tempo, são naturalizadas de uma forma que passamos a adiantar a resolução de determinados problemas da produção antes mesmo que eles passem a existir, como poderemos observar no próximo tópico.
O processo de construção da Rabeca por Cláudio Rabeca
     A rabeca produzida por Cláudio, como dito anteriormente, é resultado de uma série de mudanças que foram desenvolvidas por ele a partir dos primeiros contatos com o universo da luteria. Essas mudanças, que podem ser observadas tanto nos aspectos técnicos de produção quanto no uso das ferramentas, fizeram com que Cláudio deixasse de lado determinadas ferramentas manuais tradicionais na construção da rabeca, tais como a goiva e a lima, e adotasse o uso de ferramentas elétricas na busca de precisão de cortes e agilidade, como a serra de fita, apelidada ironicamente como "Clotilde Corta-Dedo". A seguir, será detalhado o seu processo técnico de construção do instrumento.
     A rabeca produzida por Cláudio é construída dentro dos parâmetros de produção do violino, onde é utilizado uma espécie de molde (construído pelo próprio Cláudio) fixando o fundo do instrumento, a fim de que possa, assim, receber as laterais, que são fixadas pelo lado externo do molde. Esta parte é, posteriormente, retirada da forma após o processo de colagem. Porém, antes de iniciar este processo, a produção de qualquer instrumento de madeira vai passar pela escolha dos materiais que irão compor o produto final. Cláudio normalmente utiliza o cedro por buscar um som mais grave que, segundo ele, é a especialidade deste tipo de madeira, porém também faz a utilização da praíba.
      A caixa de ressonância do instrumento tem seu processo de construção iniciado a partir da colocação, como já dito anteriormente, das madeiras do fundo no molde, para então poder receber as laterais, que são feitas com ripas de 51cm de cedro cortados sem remendos. A construção do tamanho e espessura ideais das laterais é feita com o uso de uma serra de fita. Com as laterais prontas, é necessário realizar a utilização da água quente em conjunto com uma ferramenta construída por Cláudio que tem como objetivo a produção de calor (Ver figura 2). Com as duas técnicas em consonância, o luthier realiza a envergadura necessária das laterais sem que elas quebrem.


      

   Após a colagem, enquanto espera-se as 24hs de secagem da cola, quando as laterais foram fixadas com a ajuda de grampos de madeira (Ver figura 3), Cláudio parte para a produção do tampo, que é construído a partir do uso de uma mini-plaina, onde o construtor nivela a madeira na espessura necessária, deixando partes mais grossas no local onde receberá o cavalete. Por mais que o uso do especímetro esteja presente nas medições gerais do tampo e do fundo, as medições de espessura do tampo são feitas a partir do toque e da visão do construtor, exemplificando assim a ideia de consciência material desenvolvida pelo filósofo e sociólogo Richard Sennett, uma vez em que a consciência material se relaciona com a prática do construtor, com a rotina de trabalho diária e a naturalização das disposições corpóreas desenvolvidas com o tempo.



      
    Posteriormente à montagem do fundo e das laterais no molde e da construção do tampo, Cláudio inicia a construção do braço e da mão do instrumento. O processo construtivo do braço é feito a partir de um bloco de madeira, onde se usa uma peça pronta como referência para fazer o primeiro corte, realizando, após isso, os acabamentos com o uso de uma espécie de lixadeira manual. Após a realização desses cortes, o próximo estágio vem a ser a modelagem da mão do instrumento, onde o luthier faz os furos das laterais que receberão as cravelhas e o desenho da voluta, como marca caracterização do instrumento. Os furos laterais e o afundamento central na madeira são feitos com uma furadeira comum e com a tupia, que é uma furadeira para trabalhos de marcenaria.
    Com a estrutura da rabeca pronta, antes do fechamento do tampo, Cláudio faz a colocação da barra harmônica, caracterizada por ele como uma viga de edifício, assumindo a função de segurar o peso do cavalete e ajudar na distribuição sonora do instrumento junto com a alma (pequena peça de madeira que liga o fundo ao tampo do instrumento). Após a colocação da barra harmônica, a rabeca é fechada com o tampo, que recebem os “Fs” (Cláudio, na verdade, desenha-os como “Cs” em alusão à inicial do seu nome) na parte de cima, tal como no violino.
   Com o instrumento fechado, começa a produção das peças externas da Rabeca, como o umbigo, as cravelhas, o estandarte, o cavalete e a alma. A finalização, por fim, é feita com pelo menos quatro camadas de selador para proteger a madeira, passando pela colocação da alma dentro do instrumento através da abertura do tampo, para então poder afinar as cordas e fazer o devido uso.
   A descrição do trabalho de construção de rabeca de Cláudio mostra como o desenvolvimento do trabalho profissional é forjado através da prática diária. A partir de erros e acertos, Cláudio consegue, de certa forma, elevar o nível técnico de produção de seu instrumento frente à de outros construtores do Estado, devido principalmente pelo seu maior grau de conhecimentos adquirido na sua formação de luthier. Cláudio Rabeca, portanto, pode ser caracterizado como integrante de uma nova geração de luteria, tal como caracterizado por Roderick Santos, capaz de acrescentar em seus conhecimentos as técnicas de construção a partir do uso de ferramentas de precisão, padronizando, de certa forma, um instrumento que, tradicionalmente, tem sua produção realizada a partir de ferramentas manuais.



Jorge Ventura de Morais é professor do Programa de Pós-Graduação em Música da UFPE. Suas pesquisas, com financiamento do CNPq, focam nos conhecimentos práticos e tácitos dos construtores de instrumentos musicais (luthiers) quando da confecção artesanal desses objetos em contraposição à fabricação industrial e em massa.



Ícaro Costa é bacharelando em Ciências Sociais pela UFPE. Como bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/UFPE) desenvolve pesquisa sobre a construção de rabecas em Pernambuco.