A direção oposta, Quiercles Santana

Por Quiercles Santana__






A primeira coisa que pensei em fazer depois que o carro sumiu na esquina foi voltar para casa ligeiro. Correr para não perder essa sensação esquisita, coração acelerado, contra o tempo. Voar para escrever logo, para não dar chances de esquecimento.
Encarcerar-se em casa não tem sido fácil. Fico o mais que posso. Quase não saio. Uma vez na semana. Ao supermercado só. Sinto se sedimentar dúvidas e dívidas junto aos dias sempre iguais. É uma encruzilhada, isso, parece: você olha adiante e não vê o futuro; espia para trás e teme virar uma estátua de sal. Os fantasmas, mortos e vivos, teimam em bater à sua porta. “A loucura habitará tua morada”, dizia um amigo que se foi há anos. Acho que já habita. Faz é tempo.
Aí, ontem, pela primeira vez em meses fui caminhar o fim da tarde. Um pouco de ar. Espairecer. Deforeta. Álcool em gel e máscara no focinho, que não sou besta. A cabeça parecendo um balão. Os bolsos vazios, o nó na garganta, a alma cheia demais.
As ruas movimentadas foram dando lugar às desertas. Ia anoitecendo sem querer. Os postes acenderam antes do habitual. Um agosto gostoso no mundo. Feições de chuva, mas não ainda. Apertei o passo.
De repente, num dado instante do trajeto, já escuro e ermo, um carro desacelerou e veio me acompanhando devagar, junto à calçada. Desconfiei, mas segui no mesmo passo. Como se nada temesse, como se a ninguém devesse nada . O passageiro ao lado do motorista baixou o vidro e me encarou. Vi pelo canto dos olhos. Ficamos assim um tempo calados. Resolvi parar de andar. O carro parou também, embora o motor continuasse ligado. Encarei o sujeito e ele a mim. “Vai ser agora?!” Começou a chuviscar. E eu entendi logo que algo bom não viria.
Mostra a cara aí, mermão…
Pra?, perguntei.
Tô mandando, véi.
Sim, mas qual o problema?
Esse aqui é o problema, ele disse e me apontou uma arma.
A chuva foi ficando mais forte. Um frio na espinha. Um tempo suspenso no ar. A água ensopando tudo.
Agora caminha até aquele poste e tira lá a porra da máscara, filho da puta.
Veio-me na lembrança uma matéria lida naquela mesma manhã. “No Brasil de hoje é mais fácil morrer de Covid, pela mão da bandidagem ou pela ação da polícia.” Difícil é morrer de velhice nesta merda, por mais que se tente.
Foi mal aí, cara! , falou assim que tirou a prova dos 9.
O vidro subiu e o carro arrancou estrada afora, dobrando a esquina.
"Foi mal aí”. Sei bem o que é isso. Sabemos. O mal é nossa companhia diária, irremediável neste país de idiotia quase generalizada. Há séculos é assim. Por séculos será. Por sorte não paguei hoje a conta de outro. Talvez outros não tenham o mesmo destino. Amanhã talvez eu não tenha a mesma sorte.
E ficamos ali, a chuva e eu, olhando o silêncio e a escuridão. Até que comecei a correr. Na direção oposta. 

Quiercles Santana é arte-educador, ator, encenador, dramaturgo e professor de teatro, formado em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas pela UFPE Fez parte do corpo docente de diversos projetos sociais, a exemplo do Projeto Santo Amaro (da Escola Superior de Educação Física/ESEF-UPE), do Projeto ReVersus (da UFPE), do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI/Projeto Teatro do Oprimido) e do Programa de Animação Cultural (este último em parceria com o ex-Padre Reginaldo Veloso e Fátima Pontes, na Secretaria de Educação da Prefeitura da Cidade do Recife, durante a gestão de João Paulo). Foi diretor artístico da Trupe Circos, da Escola Pernambucana de Circo (Circo Social). Trabalhou seis anos na Diretoria de Políticas Culturais da Fundarpe. Dirigiu diversos espetáculos entre eles: Olhos de Café Quente, do Nútero de Criação Artística; Alguém Pra Fugir Comigo, do Resta 1 Coletivo de Teatro; e Espera o Outono, Alice, do Amaré Grupo de Teatro; Berço Esplêndido, do Grupo Panorama de Teatro; e Balbúrdia, da turma profissionalizante da Companhia Fiandeiros de Teatro. Foi gerente do Teatro de Santa Isabel de 2015 a 2017. Estreou como documentarista em 2013, no filme “Contos Ruas Casa & Quintais”, filme que registra fragmentos de memórias de pessoas idosas, residentes em Recife. É analista de projetos culturais.