Por Taciana Oliveira__
Bozonazireptliano, arte-colagem por Caio Lucas |
Desculpas esfarrapadas para as hipocrisias diárias cansam. A bem da verdade há tempos tento não me relacionar com esse “mundinho de ativismo necessário apenas para manter um padrão de rede social e consumo”.
Sim, caros amigos, há anos esse país navega em águas turvas e desenvolve um ativismo que não se aprofunda nas relações afetivas, quiçá nas causas que fomentam o repúdio mais que urgente em dias de tremenda prática genocida às minorias.
Nos solidarizamos na rasura do corte e não tratamos a ferida. Berramos indignados contra o estupro e a corrupção, mas silenciamos as vítimas quando transformamos um crime em uma falácia religiosa para salvar uma vida.
Somos juízes da moral e do bem comum e nos tornamos ditadores que promovem o cancelamento injusto de opiniões, histórias e possibilidades de diálogo. Cancelamos até quem pratica o execício da dúvida, pois o nosso argumento se baseia em uma única e frágil verdade narcisista.
Postamos citações pacifistas e diariamente enchemos de porrada nossos filhos, mulheres e vizinhos. Somos feministas e não aplicamos o conceito de sororidade a nossas amigas e irmãs. Nossa indignação é seletiva e oportunista. Válida para legitimar o marketing pessoal.
Perdoem o desabafo. Estou irritada por demais para aceitar proselitismo de gente estúpida e pretensamente intelectual. Quando vamos aprender que a violência que atinge ao outro também nos atinge?
Sinto muito, sou uma mulher batizada nos versos do Manifesto Populista de Lawrence Ferlinghetti. Não me rendo aos que aplaudem o cio do caos:
Não há tempo para o artista se esconder
acima, além, debaixo dos cenários,
indiferente, aparando suas unhas,
refinando-se fora da existência.
Não há tempo para os nossos joguinhos literários,
não há tempo para nossas paranóias e hipocondrias,
não há tempo para medo e náusea,
há tempo somente para luz e amor.
Ainda recordo com exatidão a primeira aula de filosofia com o professor Vicenzo, um ex-padre italiano, que confessou para uma turma de futuros comunicadores sua predileção por uma canção brasileira. E com aquele sotaque carregado, timidamente entou os versos de Ouro de Tolo, de Raul Seixas:
Eu é que não me sento no trono de um apartamento
Com a boca escancarada, cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas
Embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador
Cá estou em 2020, me posicionando contra o silenciamento da Biblioteca Mário de Andrade, o fechamento fascista da Cinemateca Nacional, e ainda torcendo para que os brasileiros possam despertar da tumba e se reconectarem com a dignidade de um sorriso. Por isso abram alas e deixe suas convicções mesquinhas longe da poesia:
E então ele disse:
Esqueça a violência diária,
a crônica-manifesto.
No poeta não cabe
antologias e protestos.
Um poema não precisa
ser espelho do seu tempo.
Nem sempre a
tragédia justifica
a revolta em versos.
Seja isento, amoral,
aqueça o inferno.
Faça um soneto de amor
em homenagem ao desespero.
Por fim não reconheça
a morte severina
o pássaro que canta na gaiola
a rosa de Hiroshima.
Deixe para trás
o manifesto populista
a felicidade Macabéa
o cálice
o uivo
a cidade prevista.
Fotografe em linhas retas
a vida útil do manipulado.
A palavra não precisa sangrar,
viver é mesmo tão ultrapassado.
Então eu respondi:
Foda-se
Agosto de 2020, Taciana Oliveira
Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.