A tradição da luteria da Rabeca Pernambucana

por  Jorge Ventura de Morais e Mayara Barbosa__


A TRADIÇÃO DA LUTERIA DA RABECA PERNAMBUCANA: UMA APRECIAÇÃO DA OBRA DE ZÉ DE NININHA


       A cidade de Ferreiros, localizada na Zona da Mata Norte de Pernambuco, é conhecida pela diversidade de suas manifestações culturais que vão do colorido do Maracatu de Baque Solto ao ritmo frenético e contagiante do Cavalo Marinho. Com uma população de pouco mais de 11 mil pessoas, a cidade é conhecida como a terra da rabeca e possui entre seus habitantes grandes mestres e artesãos.

      É nessa pequena cidade do interior que pode ser encontrado José Alexandre da Silva, mais conhecido como Zé da Rabeca ou Zé de Nininha (apelido dado como referência à sua mãe Nininha). Construtor de rabecas desde muito jovem, Zé de Nininha é conhecido e respeitado no meio musical e no cavalo marinho e as rabecas construídas por ele estão espalhadas pelo Brasil e pelo mundo.  

     Brincante da cultura popular em sua mocidade, Zé de Nininha interpretava o “Babau”, um dos principais personagens do teatro popular de bonecos do Nordeste. Durante esse período, teve contato também com o Cavalo Marinho onde conheceu o Mestre Mané Pitunga com quem aprendeu a arte de construir rabecas.



      Além da luteria, Zé de Nininha trabalha também como pintor de móveis e marceneiro. Segundo seu relato, a venda de rabecas é intermitente e a procura pelo instrumento se intensifica na época do carnaval e do São João, diminuindo em outros períodos do ano. Essas outras atividades são, portanto, um complemento à sua renda (Zé de Nininha, entrevista, 17/8/2019).

       Sua oficina é localizada em uma rua bastante movimentada e esse é o local onde ele passa a maior parte do seu dia. A construção da sua oficina foi realizada com o dinheiro de um prêmio que o luthier recebeu do Governo do Estado de Pernambuco. A estrutura é simples e contém um único cômodo com paredes sem reboco e chão batido. Nessas paredes, ele exibe rabecas que construiu ao longo do tempo. Expõe com orgulho esses objetos empoeirados que carregam sua herança cultural.



       Em seu processo de produção, Zé de Nininha busca valorizar a tradição, utilizando na feitura de suas rabecas as técnicas que aprendeu com Mané Pitunga e a sabedoria popular dos antigos mestres. Suas rabecas são, portanto, feitas quase que exclusivamente à mão utilizando o mínimo possível de ferramentas elétricas. Ele nos afirmou que ferramenta pesada não “presta” pra fazer rabeca (Zé de Nininha, entrevista, 17/8/2019).

       A primeira preocupação de Zé de Nininha é a qualidade das madeiras que utilizará na construção do instrumento, pois estas terão efeito direto na sonoridade e na durabilidade da rabeca. Ele utiliza madeiras comuns da região da Mata Norte de Pernambuco, tais como a mutamba roxa, a praíba, o mulungu e o jenipapo.

       O processo de construção do instrumento é extremamente minucioso e o trabalho é, na maioria, das vezes solitário. Cada parte da rabeca precisa ser construída com precisão e cuidado, seguindo medidas específicas. Com tantos anos de costume na lida como construtor de rabecas, Zé de Nininha consegue fazer essa medição “no olho” ou utilizando o toque das mãos para “sentir” a espessura da madeira.

       Antes de um maior aprofundamento sobre a fabricação da rabeca em si e para melhor compreensão desse processo torna-se importante conhecer as partes que formam esse instrumento. Segue figura 4 pontuando as informações citadas acima:



            A construção da rabeca começa pelo que Zé de Nininha chama de testos macho e fêmea, que são o tampo e o fundo, respectivamente. Utilizando uma faca, o luthier escava uma tora de madeira previamente cortada até os testos alcançarem uma medida específica. Após a escavação, essas partes serão cuidadosamente lixadas. É de extrema importância que essa espessura seja exata, pois, se a escavação for feita para mais ou para menos, pode afetar diretamente a sonoridade do instrumento ou levar à quebra da madeira. Depois de prontos os testos, Zé de Nininha faz a escavação dos “Fs” com uma faca. Os “Fs” são aberturas feitas no tampo em forma de F ou S por onde o som produzido pela fricção das cordas entra e sai. Os testos serão então unidos por pequenas vigas de sustentação, como pode ser observado na imagem abaixo:

















        

          É comum o luthier confeccionar vários braços com antecedência, armazená-los e utilizá-los em produções futuras. O braço é a única parte do processo em que o luthier utiliza uma ferramenta elétrica chamada "tico-tico". O braço da rabeca é uma das partes mais delicadas pois apresentará curvas e desenhos feitos através de entalhes na madeira. Com o braço pronto, são feitos os furos na “mão” do instrumento. Nesses furos serão adicionadas, posteriormente, as cravelhas que são peças de madeira utilizadas para afinar o instrumento.



          Zé de Nininha faz então o alinhamento do braço com os testos e posiciona a alma. A alma da rabeca é um pedaço de madeira com espessura e tamanho aproximado de um lápis, que liga os testos e é responsável pela propagação do som por todo o corpo do instrumento.

      O luthier utiliza a madeira jenipapo para fechar as laterais da rabeca. Para isso, Zé de Nininha lixa a madeira até que ela atinja uma espessura em que possa ser encurvada. Utiliza também oito pequenos pregos para dar sustentação à montagem. Em entrevista conta que muitos luthiers mais novos não utilizam os pregos, mas que foi assim que ele aprendeu com os mestres antigos (Zé de Nininha, entrevista, 17/8/2019).

         Com a caixa de ressonância montada (tampo e fundo unidos, laterais fechadas e alma colocada) Zé de Nininha confecciona as cravelhas utilizando uma faca com a qual modela a madeira. Posteriormente, posiciona as peças de encaixe externo que são o cavalete, a lacraia (ou estandarte), a escala e o umbigo. Por último, são colocadas as cordas que podem ser confeccionadas de nylon ou de crina de cavalo.


        

         Para tocar uma rabeca usa-se um arco. Zé de Nininha o confecciona com a madeira chamada mutamba roxa. Na confecção do arco, podem ser utilizados fios de nylon ou de crina de cavalo. Zé de Nininha conta que só se usa crina do cavalo, jamais da égua, pois o fato da fêmea urinar no rabo prejudicaria a sonoridade na fricção do arco com as cordas. Conta também que, segundo a sabedoria popular, a tocabilidade do arco de crina de cavalo é melhor à noite, enquanto o nylon produz melhor sonoridade de dia. 

       O processo de produção da rabeca de Zé de Nininha é um exemplo do conhecimento oriundo da sabedoria popular transmitido geração após geração e demonstra a riqueza cultural muitas vezes escondida nas mãos calejadas de um homem simples.






Referências:

ARAUJO NETO, João Nicodemos de. A construção da rabeca: Idiossincrasias do mestre Antônio Merengue. 2016. 120f. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2016.

CAVALO MARINHO (FOLGUEDO). Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cavalo-Marinho_(folguedo) . Acesso em 02 de Agosto de 2020.

HISTÓRIA. Prefeitura Ferreiros. Disponível em: https://ferreiros.pe.gov.br/historia.html#gsc.tab=0. Acesso em 03 de Agosto de 2020.

TEATRO DE BONECOS POPULAR DO NORDESTE É RECONHECIDO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DO BRASIL. Teatro de Animação. Disponível em:

https://teatrodeanimacao.wordpress.com/2015/03/06/teatro-de-bonecos-popular-do-nordeste-e-reconhecido-como-patrimonio-cultural-do-brasil/. Acesso em 02 de Agosto de 2020.



Jorge Ventura de Morais é professor do Programa de Pós-Graduação em Música da UFPE. Suas pesquisas, com financiamento do CNPq, focam nos conhecimentos práticos e tácitos dos construtores de instrumentos musicais (luthiers) quando da confecção artesanal desses objetos em contraposição à fabricação industrial e em massa.



Mayara Barbosa é musicista e integrante do trio de forró "As Januárias". Licencianda em música pela UFPE é atualmente bolsista PIBIC vinculada ao projeto de pesquisa "O processo de Construção do Violão Brasileiro: Uma sociologia das Práticas na Produção de um Artefato Musical", orientada pelo professor Jorge Ventura de Morais.