por Adriane Garcia__
Carl
Gustave Jung
afirmou que o coração é o arquétipo central. Tudo o que nos afeta
mais profundamente, dizemos que é no coração. Ao coração
atribuímos o papel de repositório do amor, da bondade, do ódio, da
dor e da solidão. Não raro, ouvimos que “o
coração quase saiu pela boca”
ou que alguém ficou com “o
coração na mão”.
No Hinduísmo, ele é a morada de Brahman
e Krishna.
Para alguns povos antigos na América, ele era o centro da vida e da
renovação; são comuns as expressões “Você
tem Deus no coração”
ou “Você
não tem Deus no coração”
para atribuir a alguém qualidades do bem ou do mal. Uma pessoa fria
possui um “coração
de pedra”.
Confúcio
ensinou que “O
homem verdadeiro deve encarar de frente o seu coração.”
Neste
livro inaugural de Michaela v.
Schmaedel, a poeta estampa no título um símbolo por
excelência, um algo material e um algo metafórico de significado
(portanto, entendimento) universal: Coração cansado.
Composto por cinquenta e nove poemas, em que se privilegia a síntese
e a reflexão por meio de imagens e cenários sugestivos, Coração
cansado situa-se em torno de um tema: o luto.
No
livro Luto e melancolia, Sigmund
Freud, tece os esforços para diferenciar um estado do
outro, sendo o luto o processo necessário, natural e circunscrito em
determinado espaço de tempo, enquanto a melancolia se faz como
adoecimento; “no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na
melancolia, é o próprio ego”. Explicando o processo natural e
laborioso da superação da perda, Freud
fala de uma “devoção ao luto”, “devoção que nada
deixa a outros propósitos ou a outros interesses”.
Podemos
ler Coração cansado como um livro de “devoção ao
luto”, mas também de devoção à luta. A ausência/presença
de um pai, que amou e foi amado, marca suas páginas e sua
geografia/temporalidade: tempo suspenso, cenário paralisado. A voz
narradora luta nas páginas para fazer seu trabalho interior. E eis
algo muito interessante: que a poesia e a psicanálise estejam tão
próximas, pois a poesia é, antes de escrever, um trabalho de
escuta; e é durante a escrita, um trabalho de escuta; e pode até
mesmo, lida por outras pessoas, ser um trabalho de escuta que
coincide com a experiência de quem lê, seja pela identificação,
seja pela recusa. A psicóloga
Renata Lisboa Machado, em A psicanálise em diálogo
com a poesia: dimensões da experiência, estuda as similaridades
entre estes dois ofícios para os quais “a metabolização das
sensações e percepções, são instrumentos de trabalho”.
Os
elementos que Michaela v.
Schmaedel traz, em diversos poemas, chamam a atenção por
algumas recorrências (o luto é um trabalho circular até que se
resolva): Luz, olhos, fogo, incêndio; respiração, ar, asfixia;
morte, gigante pássaro sem asas, noite, escuridão, luto; incêndio,
ruínas, Museu, memória, nós; morte, amor, morte sim, amor talvez.
Todos esses elementos vão compondo um modo de ver, sentir, concluir,
profundamente abalado pela perda. O luto é uma lente. Algo se
desordenou no mundo e é preciso refazer – o poema, mais que
artefato, é a própria reconstrução. O primeiro poema de Coração
cansado, Mar aberto, já dá conta da importância do ser
perdido, pois ele se confunde com a própria vida de quem narra:
“Naquele dia/em que você me puxou/ pelo braço/ com força/
para cima/ eu já não respirava.”
Como
se depreende de Mar aberto, a ideia de salvamento é uma
constatação e um desejo, um salvamento que já houve (memória) e
um salvamento por fazer-se. Parte dessa luta por salvar-se (da falta,
da saudade) vai migrar da forma interior e expandir-se em direção
ao outro. A emoção (e na etimologia desta palavra está o sentido
de “mover”) vai se deslocar do diálogo consigo para se comunicar
com mais alguém. Enquanto faz isso, a poeta elabora lições que, no
livro, intitula como sendo duas: Lição I, e Lição II.
Mas na verdade, são muitas as lições em Coração cansado.
Michaela v. Schmaedel vai
elaborando sabedoria da dor. Os poemas trazem, muitas vezes, lições
práticas, como neste fundamental, À mesa: “Esperar pela
morte/ como quem espera/ pelo jantar:/ sem reclamar demais.” Ou
este Estratégias para entrar e sair de crises: “Entre na
crise/ saia da crise/ entre na crise/ saia da crise/ entre na crise/
saia para beber.”
Com
a escolha de usar poucas palavras, cotidianas, simples, comunicáveis
de imediato, ao mesmo tempo em que se recusa ao edulcoramento ou ao
sentimentalismo, Michaela v.
Schmaedel constrói um livro que destaca a palavra
coração, tão fácil de sentimentalizar, mas que trabalha como se
esculpisse sobre a pedra. Nos versos de Humanidade, que remete
tanto ao poema de Ferreira Gullar, Traduzir-se,
quanto à letra de Osvaldo
Montenegro, Metade, fica um retrato das
constatações feitas na coletânea: “Metade pedra/ e a outra
metade também”. Coração cansado trabalha com a
dureza, com certa frieza de quem acabou de presenciar o “gigante
pássaro sem asas”, mas burila o mineral/palavra, esculpe
(reduzindo ao essencial) o sentido da sua liberdade e libertação.
Palavra e ato para o luto. No poema Contenção de custos, a
aparente frieza se destaca ao afirmar que “É preciso diminuir
de altura quando se envelhece” para concluir que um caixão
menor dá menos gasto para a família do morto. Frieza aparente, no
entanto, pois há ironia e crítica social no poema, já que o ato de
olhar a frieza do mundo é, na verdade, dar a máxima importância a
esse estado de coisas. Não há indiferença. A poeta coloca sua
imaginação a serviço da traição do ordinário (este o trabalho
da poesia, seja em tema e/ou forma) e traz a morte para o diálogo;
ouve a lição de Confúcio e encara o seu coração de
frente.
Nos
poemas de Coração cansado, como um recurso minimalista, os
títulos são algo que não pode passar despercebido para quem lê,
funcionando quase como um verso, ou uma chave. Aqui, temos o exemplo
do poema Amor: “Que não seja a morte/ a única que
mostre seus/ argumentos definitivos’. A poeta economiza
palavras, porque sabe bem aproveitar todas. Os poemas crescem em
sentido porque utiliza ferramentas poderosas como um certo humor
trágico, ironia, personificação, antíteses, paradoxos, ótimas
metáforas. Assim, ironicamente, o fogo (luz) pode nos deixar no
breu, a luz pode apagar a luz, e a poeta convida: “venha ver o
fogo/ essa escuridão”.
Na
escuridão, luto, a evocação da lembrança insiste e se instala no
cotidiano quanto mais a pessoa amada é ausente. A ausência instaura
a presença, ou melhor, a onipresença: “teriam então que
acabar todas as pinturas de homens tristes para acabar também isto:
“a lembrança de ti em lugares estapafúrdios”. Na morte, é
comum o apelo à religião, mas a religião não responde aos anseios
da voz que narra em “Coração cansado”, não é uma
resposta, “melhor nos virarmos com a literatura”. Em Zen,
o título é a própria ironia, já que o poema revela a
impossibilidade de alcançá-lo. Em “Previsão” o clima
nublado e pesado serve para mostrar a pequenez do ser diante da
existência. Não é a integração, mas a desintegração a matéria
do luto.
Como
não poderia deixar de ser, o poema Pai (III) é emocionante e
é o poema em que a poeta discorre em versos mais longos, de forma
mais explícita com relação à perda de um ente amado. Como um
choro que não mais se conteve, em Pai (III) as palavras se
deixam escorrer, o que faz o projeto ainda mais verdadeiro. Um
momento de não contenção.
Voltamos
a Freud, agora
em A transitoriedade: “O valor da transitoriedade é o
valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma
fruição eleva o valor dessa fruição”. É por isso que, após
a morte dos que amamos, lamentamos tudo o que não fruímos ou
sublinhamos neste amor, tudo o que fizemos de forma trivial e que,
após a perda, torna-se sentimento hiperbólico. Mas a vida continua
e a soma das satisfações que ela nos dá providencia que o luto
seja uma fase e não necessariamente uma patologia crônica. Se um
poema como Minimalismo: “o cheiro da toalha que seca ao sol/ o
cheiro do sol/ o sol”, nos habita, poderemos fazer como
Ulisses:
Elpenor
(Para
Ismar Tirelli Neto)
A
Odisseia, rapaz,
não
é sobre viajar
ver
Circe ou voltar de Hades
nem
sobre contar as glórias das guerras
ou
os infernos do submundo.
A
Odisseia, rapaz,
tem
a ver com sair de casa
e
voltar vivo.
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Coração
cansado
Michaela
v. Schmaedel
Poesia
Ed.
Penalux
2020
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Michaela
v. Schmaedel (1976) é jornalista de cultura, nasceu e
mora em São Paulo. Nos últimos anos, tem se dedicado à poesia,
além de escrever resenhas sobre literatura para jornais e revistas.
Cursou o Clipe (Curso Livre de Preparação do Escritor), na Casa das
Rosas, e oficinas de poesia com Angélica Freitas, Tarso de Melo,
Ismar Tirelli Neto, entre outros poetas brasileiros. Coração
Cansado, editora Penalux, é seu primeiro livro de poemas.
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Adriane
Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso
de pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por
estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a
construção da primeira cidade planejada da República, com destaque
para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na
periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens
e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros Fábulas
para adulto perder o sono (vencedor do Prêmio Paraná de
Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo
(ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Ed.
Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018)
e Arraial do Curral del Rei: a Desmemória dos Bois, pela
coleção “BH: A Cidade de Cada Um”
(2019)