por Edner Morellior
Melodia da ira, publicado pela editora Penalux (2020) é um belo exemplo de uma romance bem arquitetado, não só devido à sua estética, mas por conseguir unir ficção e ambiente histórico. Luciane Said, em seu livro de estreia, propõe em sua narrativa elementos do seu próprio fazer profissional: as artes visuais e o jornalismo, ditando, assim, o caráter veloz e recortado de suas imagens narrativas, características e traços da Literatura pós-moderna. Já pelo título da obra, podemos perceber uma esfera ambígua Melodia da ira. Sendo assim, as melodias propõem-se a aguçar algo suave, de fácil penetração, no entanto, essa melodia caracteriza-se pela ira, algo denso, conflituoso por assim dizer... Por que não pensar num Brasil dicotômico em tempos de chumbo? Indo além, a autora mostra um microcosmo fabular: estamos diante dos dias difíceis da ditadura militar, sobretudo, os anos 70, com todas as suas contradições e idiossincrasias. O estilo da autora, nesse romance, de 198 páginas, faz-se veloz, numa terceira pessoa que não se importa muito com os ditames da narrativa clássica, optando por uma espécie de narrador-câmera. Não tem como passar incólume a aproximação do estilo de Luciane ao de Saramago, ao optar por abolir a paragrafação e amalgamar os discursos das vozes das personagens. O histórico aqui se faz presente, outra marca de Saramago, à medida que o mote central da obra são os conflitos gerados pela luta de classes e os ideais democráticos, minados pelo regime ditatorial. Vale ressaltar também algumas referências às composições de Chico Buarque que versam sobre esse tema e seus desdobramentos. A obra aborda o microcosmo dos desmandos e injustiças advindos da ala mais radical da ditadura: torturas, arbitrariedades, falta de liberdade de expressão etc. Esse livro, como um todo, é uma tentativa de um suspiro da democracia, afeiçoando, assim, um grito de protesto e denúncia que a Literatura pode oferecer, função primordial da representação estético-artística. Os capítulos são seriados, assim como subdivididos em marcações temporais, ainda mais para ressaltar a angústia de quem vive na clandestinidade. E para finalizar essa breve crítica colaremos aqui o tom que dita a obra, certo clima de tensão que pervagará a narrativa como um todo: “Arnaldo acorda assustado e sacode levemente a mulher. Acorda, amor. Tive um pesadelo. Sonhei que tinha gente lá fora. Que eram os cana. Todos em viaturas escuras. Põe a mão no meu coração. Sente só. Minha Nossa Senhora. Que susto!” (p. 10). Uma ótima e densa leitura a todos.
SERVIÇO
Melodia da Ira, romance (p. 198 – Ed. Penalux) – Luciane Said.
R$ 42,00
Disponível em:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/melodia-da-ira
Luciane Said é carioca da gema. Nasceu e cresceu no Rio de Janeiro, morou por muitos anos em Tóquio e alhures. Atualmente vive em Londres. Egressa do jornalismo, doutorou-se em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professora de literatura, roteirista e produtora. Divide sua paixão pela literatura apenas com a moda. Melodia da Ira é seu romance de estreia.
Edner Morelli é mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e atua como professor de Teoria da Literatura e Literatura em Língua Portuguesa. Líquido, seu quarto livro de poemas, foi lançado neste ano pela editora Penalux.