Por Adriane Garcia__
Coletânea com vinte e sete contos, O sêmen do rinoceronte branco, de Cinthia Kriemler, lança luz sobre histórias de breu, apagões de humanidade. É interessante, inclusive, que a primeira história que nos narra se intitule Chiaroscuro. Nesse conto de abertura, que fala sobre racismo, violência policial e estupro, podemos perceber que a autora não organiza o livro em uma gradação confortável; não vai conduzir suas histórias protegendo as sensibilidades, preparando-as para um adiado momento trágico ou um relato de grande degradação; pelo contrário, é desses relâmpagos sobre o breu, desde o início, que todas as narrativas irão se compor.
O rinoceronte branco era o último. E foi extinto. Por trás da extinção dos animais está a forma predatória, capitalista, da insanidade pelo consumo a que a humanidade se submeteu, destruindo sua própria espécie, enquanto pensa destruir “apenas” os outros seres do planeta. Uma gota do sêmen do rinoceronte branco poderia ser uma esperança para os utópicos (ou para os cínicos), aqueles que acreditam que a tecnologia trará de volta não apenas o rinoceronte, mas uma humanidade capaz de consertar os seus erros quando já pareça tarde demais. Recriar, pela engenharia genética, o animal extinto significaria que nosso dano é menor. Porém, nem isso; sobre o sêmen do rinoceronte branco, Cinthia Kriemler nos acende um lampejo de paliativo sonho.
Nesse livro os contos abordam, principalmente, temas que se desenvolvem nas sombras das relações econômicas, da injustiça social verificada na quantidade de miseráveis. O destaque é para os mais fragilizados: crianças, pessoas negras, mulheres, velhas. No conto Vigília, a morte aparece na vida de uma mulher como uma possibilidade de dignidade jamais alcançada em vida. Em 12h28, outra mulher traz um comportamento de abandono sobre si parecido com o da personagem de Vigília, sua dignidade foi usurpada durante um crime ambiental, quando uma das tantas barragens prestes a estourar em Minas Gerais estourou.
Como o alcoólatra do conto Garrafas no jardim, a sociedade, viciada e adoecida, tenta esconder a própria realidade. Ao trazer essas situações e personagens para o foco de sua escrita, Cinthia Kriemler chama para ver o que está diante dos olhos de qualquer um, mas que de tão naturalizado, se ocultou. Se podemos passar pelos moradores de rua e seguir com indiferença à miséria material dos outros, a autora nos coloca, individualmente, diante de alguns deles e nos conta que são humanos. Há um engajamento de alguns narradores que não tem a menor intenção de se disfarçar, “Mas hoje não é a barbárie da indiferença social que me preocupa. É alguma coisa mais evidente, mais urgente”, não querem ser imparciais e julgam a paisagem de ruínas que os cerca. Os personagens narrados não buscam uma identidade individual, porque já a possuem, mas está invisibilizada. A outra identidade, aquela pela qual são reconhecidos, veio de fora; por isso, mais importante do que uma construção psicológica de suas características – os contos se centram muito mais na construção das situações –, os personagens de O sêmen do rinoceronte branco buscam a construção de uma identidade coletiva e, no ápice, um lugar dentro da categoria que se define como humanidade. Quando no emocionante conto “Não é” a mãe, no necrotério, em negação para reconhecer o corpo do menino assassinado pela polícia, revela seu próprio nome, o nome do pai e o nome do filho, com sobrenome e tudo, está dizendo de suas existências civis, cidadãs, excluídas; está afirmando sobre suas identidades ignoradas pelos outros, porque dentro da coletividade são marcadas pela negação: “Sim, Maria do Amparo da Silva sou eu, sim, senhor. E o meu esposo é o José dos Santos. E o nome do meu menino é José Eustáquio da Silva Santos.”
Outros temas que se destacam nos contos dessa coletânea são a crise dos relacionamentos amorosos do ponto de vista da mulher e o abandono sentido pelas velhas e velhos. Não raro, as tragédias amorosas em O sêmen do rinoceronte branco estão ancoradas na cultura do amor romântico – cujo destino é sempre a falência – e do machismo, resultando em solidão extrema, como em Bípedes, em que o excesso de sexo (ou o sexo direcionado a qualquer um) aparece como um desequilíbrio, um sintoma da infelicidade (ponto de vista que autora trabalhou no romance Todos os abismos convidam para um mergulho). Em Mesa posta, a comodidade que os parentes encontram no abandono dos velhos, o arrependimento inútil, “a alma arranhada”. Em Assim, o suicídio como solução para os afetos fracassados. Mais uma vez o alcoolismo aparece como problema social destruindo relações familiares, fomentando a violência doméstica, servindo de lenitivo diante das dificuldades da vida e criando outras. Em Aposentadoria, a impossibilidade do sonho de finalmente se aposentar e a pergunta implícita: Quem aposentará a violência ceifadora do Estado?
No contexto planetário de degradação do meio ambiente e, no nível brasileiro, de crescente pauperização do corpo social, precarização do mundo do trabalho, extermínio e adoção da necropolítica como gerência de Estado contra os mais vulneráveis, a obra de Cinthia Kriemler vem narrando o seu tempo com as preocupações que o permeiam. Seus contos enfatizam a continuidade das mazelas. O que denuncia é uma imobilidade social – e cultural – em um mundo regido pela lógica capitalista, herdeira do escravismo e da misoginia, pela estética e pela ética do consumo. Ser é ter. E é sobre essa base que os seres que não têm são esmagados e, portanto, não são. Para muitos personagens de Cinthia Kriemler o consumo não é pelo supérfluo, ou pela escalada de status – a que é tão afeita a classe média – mas pelos itens de necessidades mais básicas. Os personagens de O sêmen do rinoceronte branco são subcidadãos, quer pela sua renda, quer pela sua cor, quer pelo seu gênero, quer por sua aparência física, quer por sua idade. Estão situados em uma sociedade padronizadora, que odeia diferentes e os extingue, como fez com o último rinoceronte branco.
Com uma escrita ágil, preocupada em dar a conhecer que lugar o indivíduo ocupa na pirâmide social ou a que rótulo está condenado dentro da estrutura capitalismo/patriarcado, frases curtas, fala direta, sintaxe simples, vocabulário atualizado, a autora também indica a preocupação quanto ao acesso de seu texto: é para o maior número possível. Forma e tema, situando-se na máxima de Graciliano Ramos, mestre do escrever com simplicidade, que afirmou que “a palavra foi feita para dizer”.
O que a obra dessa autora vem dizendo, com uma luz incômoda, a exemplo do que pode ser verificado indubitavelmente no conto que dá nome ao livro – é: Se não protegemos nem os filhotes de nossa própria espécie, como protegeremos a nossa casa?
“Não é
Não é ele, doutor. Tenho certeza. O senhor me trouxe até aqui à toa. Isso tudo é um engano. Uma perda de tempo. E eu com tanto trabalho pra fazer. Tenho chão de cozinha pra lavar, casa pra varrer, quarto de criança pra limpar, cachorro pra levar pra passear. Tem louça do almoço na pia, tem lixo no banheiro. Eu não posso ficar aqui, doutor. Ainda mais pra ouvir o senhor dizer besteira. Que o meu menino morreu. Que ele levou tiro da polícia. Que ele tava roubando carro junto com bandido. Bandido fichado. Mas o que é isso, doutor. O meu menino só tem doze anos. Doze. Eu deixei ele dormindo lá em casa. Como eu deixo todo dia. Quatro e meia. É a hora que eu levanto. Pra sair de casa às cinco e pegar dois ônibus até essa casa onde eu trabalho. O meu menino só levanta às sete. E vai direto pra escola. Vai, sim. Ele adora a escola. A professora me disse que ele é bom aluno. Só tem dificuldade em matemática. Como é que ela ia me dizer isso se ele fosse menino de matar aula? Acredite em mim, doutor, o meu menino está em casa. Ou brincando na rua. De pipa, de bola de gude. Ou jogando videogame. Porque hoje não tem aula. É feriado na escola. Verdade. O meu menino não mente pra mim, doutor. Ele não é vagabundo. Ele sabe que tem que estudar. Que não é pra se meter com bandido. Nem com droga. Ele sabe que eu me mato de trabalhar pra dar as coisas pra ele. E não é só comida, não, doutor. É tênis, é camiseta, é bermuda, é óculos de sol, é corrente, é boné. Dei até bicicleta e videogame. Ele tem de tudo, doutor. Ia roubar carro pra quê? Eu já disse que ele só tem doze anos? Não é ele, não, com certeza. Então por que é que o senhor me trouxe pra este lugar horrível? Por que é que eu tenho que olhar pra esse menino aí deitado? O cheiro aqui é ruim. Eu quero vomitar. Eu quero ir embora. O meu menino está lá em casa, doutor. Lá em casa. Eu já disse. O senhor não quer ouvir. Que merda. Presta atenção no que eu tô dizendo, pelo amor de Deus! Eu sei que parece. O meu menino tem uma marca de nascença na coxa. Igual a essa aí. Tem uma tatuagem de caveira que ele fez escondido de mim. Igual a essa aí. No mesmo lugar. O meu menino tem as unhas roídas. E um dedo torto que ele quebrou no futebol. E uma cicatriz de tombo. E o dente da frente com a ponta quebrada. E as orelhas de abano. Como esse aí. Mas esse não é o meu menino. Não importa se os vizinhos viram o roubo, e a viatura que apareceu cantando pneu, e a troca de tiros, e os bandidos que foram todos mortos. Não importa quem disse que era o meu menino que tava lá com uma arma na mão. Não importa se esse daí tinha duas pedras de crack no bolso. Nem sei quem deu o meu nome para o senhor, doutor. Gente má. Sim, Maria do Amparo da Silva sou eu, sim, senhor. E o meu esposo é o José dos Santos. E o nome do meu menino é José Eustáquio da Silva Santos. Mas me escuta, doutor, por favor. O meu menino não tem esse olho arrebentado de bala. Não tem essa cara inchada. Não é gelado assim. Não rouba carro. Esse aí é bandido. É ladrão. É menino que engana a mãe que trabalha fora o dia inteiro. Mãe que sai de casa antes do dia clarear que deixa o filho dormindo que não sabe o que ele faz quando acorda que acredita que ele tá no colégio que pensa que ele é bom aluno que jura que ele é feliz com o tênis, a camiseta, a bermuda, o videogame. Como é que eu vou reconhecer o filho dos outros, doutor? Tá surdo? Eu tô aqui repetindo que esse aí não é o meu menino, caralho. Não é, não é, não é, não é.”
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O sêmen do rinoceronte branco
Cinthia Kriemler
Contos
Ed. Patuá
2020
Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de O sêmen do rinoceronte branco (Contos, 2020). Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz a convite da Editora Penalux, em 2017. Tem textos e poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias.
Adriane Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da primeira cidade planejada da República, com destaque para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros Fábulas para adulto perder o sono (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Ed. Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018) e Arraial do Curral del Rei: a Desmemória dos Bois, coleção “BH: A Cidade de Cada Um” (2019).