por Taciana Oliveira__
Em Devo admitir que me dá um certo prazer, de Carol Sanches (editora Urutau, 2020), a autora costura fragmentos da memória afetiva, sinalizando perdas, despedidas e reconexões ao “recuperar” personagens e cenários de um passado-presente. A linha narrativa ressignifica o seu transitar no mundo em uma jornada corajosa e de autodescoberta feminina. Uma reconstrução do “eu”, algo constante em nossas vidas diante do que se morre não apenas fisicamente, mas principalmente no aspecto afetivo. Um exercício de sublimar os sentidos e oferecer coesão ao silêncio e à tormenta:
é isso que acontece
quando se lida com o lirismo
da engenharia;
a fatura dos fatos
os poemas vencidos
os boletos a pagar
casamento, Carol Sanches
A poeta “fotografa” a angústia e a solidão, e assim como Ana, personagem do conto “Amor”, de Clarice Lispector, “por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher."
empenhe-se
ao lavar as louças
ao dobrar os lençóis ao
estender as roupas
veja como o pó flerta
suspenso
com raios de sol
numa realidade mínima
atrás da mobília
permaneça, a todo custo,
debaixo da sua invisibilidade.
esconderijo, Carol Sanches
Como um fio que entrelaça um destino fugaz, seus versos cantam tristemente a nossa impotência: “mesmo os pássaros voltam ao chão.”
O diálogo maternal no poema “a tarefa” - mamãe, por que você/parou de trabalhar na sua poesia? - serve de também de contraponto a sua condição de filha. Não à toa escreve em “negação”: minha mãe não dizia não para o pai dela/não havia nela um lugar que ousasse discordar/de tamanha figura de autoridade
Em Devo admitir que me dá um certo prazer, a poesia é simbiose, como corpos que se entrelaçam para reverberar ou não a estática da sua existência, a lucidez do desejo e sua improvável finitude.
há quem conte fábulas
sobres afortunados
de um lugar, para sempre
chamado de passado
a lembrança, Carol Sanches
Carol Sanches não se define em normalidades e segue sem precisar entregar respostas:
devo admitir que me dá um certo prazer
quando ele nitidamente duvidoso
segue pensando sobre
possivelmente, talvez
o que, especificamente
seria isso
que eu chamo
de poesia
pergunta, Carol Sanches
A obra é dividida em duas partes: tudo potencialmente se inicia e nada potencialmente termina. Nesta conexão entre vida e morte, perdas e danos e experimentações sensoriais, a poesia de Carol Sanches escolhe brotar, espalhar sementes. Conversando com a autora sobre a fronteira do que é autobiográfico ou não, do reencontro e da morte que não é bem morte, mas a chance de recomeçar, a mesma cita os versos de Eunice Arruda em Predição:
O que não somos hoje
é o que há de nos
esmagar
amanhã
Vamos a colheita!
Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.