por Taciana Oliveira__
A narrativa intimista do documentário Narciso em Férias é construída a partir de um longo depoimento de Caetano Veloso em um único cenário de cores neutras e enquadramentos pontuais. Uma proposta que por vezes remete a linguagem documental do saudoso cineasta Eduardo Coutinho. No filme o cantor descortina um dos momentos mais tristes da sua trajetória quando viveu algo muito próximo ao universo kafkiano de Joseph K, em O Processo. Ele é preso pelo regime militar sem nem mesmo saber qual crime tinha cometido.
Nos dias como prisioneiro em um quartel no Rio de Janeiro, o artista é submetido a uma rotina de desumanização. Trancado em uma solitária, convive com o constante medo de ser morto ou torturado. O compositor nessa perspectiva cria os versos da canção Irene, expressão maior do desejo de reencontrar no sorriso da irmã mais nova o significado da liberdade: Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui/Eu não tenho nada, quero ver Irene rir/Quero ver Irene dar sua risada
Depois de ser solto, mas ainda antes do exílio na Inglaterra, já não se reconhecia na imagem refletida no espelho. Dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, Narciso em Férias é uma obra minimalista no aspecto da concepção visual, mas visceral na reconstituição de uma período onde a democracia se destacava somente como verbete do dicionário. Caetano, aos 78 anos, impressiona pela lucidez e coerência do discurso. Ao cantar Hey Jude, ressignifica a canção dos Beatles e nos acalenta com a esperança em dias tão sombrios.
Assistir Narciso em Férias é um exercício de cidadania, um contraponto ao recente panorama de intolerância e cerceamento das práticas culturais e humanitárias impostas pelo atual governo. Enquanto as florestas queimam e o líder do caos celebra a ignorância, Caetano sempre nos revigora evocando o belo:
Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens..
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria
(Terra, Caetano Veloso)
Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.