Sem Relva, Carlos Eduardo Amaral

 por Rebeca Gadelha__



Sem Relva (edição do autor, 2020) aborda a ação dos Black Blocs em um protesto na cidade do Recife, protesto esse motivado pela insatisfação com o transporte público da cidade. O Prelúdio começa a partir do ponto de vista de uma gata e, em primeiro momento, não dá quaisquer pistas de seu desenrolar. A partir da tranquilidade e da indolência felina em uma casa e depois, da saída dessa mesma gata para as ruas onde, desavisada, se vê em meio ao caos e a violência dos black blocs e da chegada da polícia. Nisto, são presos - presos não, detidos e convocados a colaborar com a polícia - jovens universitários que lideraram a ação: dentre eles, o filho de um pastor evangélico, sua namorada e colegas que participam do Diretório Acadêmico (DA). É a partir da detenção destes jovens que a história de desenrola, entrelaçando as motivações do protesto (a questão da mobilidade urbana no Recife, a necessidade de cotas de contratações nas redes de restaurante que se estabelecerão na cidade, o mito da democracia racial), o abismo geracional e as desavenças nos relacionamentos entre pais e filhos, os mau tratos aos animais,o sucateamento, a perda de credibilidade e os acordos extra-oficiais nas instituições estatais (como a polícia), as agonias da existência humana em uma sociedade desigual e que sofre com o avanço do conservadorismo religioso que invade as várias esferas da vida social - tudo isso entrelaçado com reflexões filosóficas, como no momento em que dois personagens discutem sobre a natureza de Deus, da justiça e do perdão.


Com narrativa documental de ritmo próprio e constante, Sem Relva surpreende por sua hábil mudança de narrador - de primeira para terceira pessoa - que contribui para tecer a história, unindo pontos de vista e os acontecimentos descritos e/ou vividos pelos narradores nesta ópera contemporânea “travestida de romance” (como afirma o autor). A obra se divide em 11 partes, sendo a primeira “Prelúdio” e as demais em italiano, seguindo a estrutura de uma ópera, a seguir, em tradução livre*:


Cena - Nella chiesa gridavamo assai (Na Igreja gritavam muito)
Coro - Perché siamo qui, alla prigione? (Por que estamos aqui, na cadeia?)

Aria - Padre mio, non mi hai imparato ancora! ((Pai, você não me conhece ainda!)

Cena - Pensate che potete mentire? (Pensaram que poderiam mentir?)

Ária - Le cose che han visto non son quelle che bo fatto (As coisas que vocês viram não foram aquelas que fiz)

Cena - Un accordo tra poi (Um acordo entre nós)

Trio - La città della quale usciremo (A cidade do qual sairemos)

Arioso - Esco di questa stanza adesso (Saio agora deste quarto)

Dueto - A chi chiedo aiuto, se non a Dio Santissimo? (A quem peço ajuda, se não a Deus Santíssimo?)

Cena Final - Ne vengono due uomini... (E vem dois homens...)



Embora os acontecimentos narrados em Sem Relva guardem semelhanças com acontecimentos reais, notadamente os da Jornada de Junho, o autor nos afirma que não é este o caso, o que há são referências, meramente. Não é novidade, claro, que a realidade seja, de alguma forma, apropriada e (re)significada pelo autor no ato da escrita, penso que esta obra não é uma exceção: o que vemos em Sem Relva são estes fragmentos de realidade que, por muitas vezes, nos dizem muito sobre a sociedade em que vivemos e sobre a responsabilidade que guardamos, como seres sociais, para a manutenção ou transformação desta sociedade e sobre os meios que podem ser usados para que haja mudança, afinal, como diz a pergunta que ecoa no livro:


Quebrar, quebrar mesmo o comércio dos outros, é certo?!”


O leitor é livre para decidir.





Carlos Eduardo Amaral (Olinda, 1980) é jornalista, crítico musical, escritor, compositor, arranjador, pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE como bolsista da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe). Na mesma universidade, graduou-se em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo e concluiu pós-graduação lato sensu em Jornalismo e Crítica Cultural. Como pesquisador, foi agraciado com prêmios da Fundação Nacional de Artes (Funarte), da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e do Ministério da Cultura; organizou a Coletânea de crítica musical – Alunos da UFPE (produção independente, 2010); colaborou com o livro O ofício do compositor (Editora Perspectiva, 2012) e apresentou trabalhos acadêmicos sobre música e ativismo político em Ottawa, Canadá, e sobre música armorial em Buenos Aires, Argentina. Escreveu para Cepe Editora cinco livros-reportagem, que têm como protagonistas compositores referenciais da música pernambucana (os quatro últimos compõem o selo Frevo, Memória Viva, idealizado pelo autor): Clóvis Pereira – No Reino da Pedra Verde (2015), Maestro Formiga – Frevo na tempestade (2017), Maestro Duda – Uma visão nordestina (2018), Getúlio Cavalcanti – Último regresso (2018) e Jota Michiles – Recife, manhã de sol (2019).Como compositor, escreveu mais de trinta peças para instrumentos solistas, conjuntos de câmara e orquestra sinfônica, incluindo o Noturno de consagração, op. 19, utilizado como trilha sonora dos teasers do lançamento do livro, em interpretação do pianista pernambucano Gabriel Fernandes.





Rebeca Gadelha
nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na companhia dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista digital, é apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem medo de avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é fígado. Foi responsável pela diagramação, ilustrações e concepção visual em Manifesto Balbúrdia Poética: 80 tiros (CJA Editora), Coordenação, Designer e ilustrações em Laudelinas (Editora Nada Estúdio Criativo), Organização e Conceito Visual na coletânea A Banalidade do Mal (Selo Editorial Mirada), participa da publicação Paginário (Editora Aliás). Atualmente escreve para as revistas do Medium Ensaios sobre a Loucura e Fale com Elas sob o pseudônimo de Jade.