Por Alexandra Vieira de Almeida__
O insondável mistério da vida no romance Vinte anos, de Pedro Torres Lobo
Ao lermos o excepcional e intrigante romance Vinte anos (Penalux, 2020), de Pedro Torres Lobo, podemos fazer várias comparações com os pensamentos de Freud, Jung, Edward Lorenz, Henri Bergson e os escritores Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Fernando Pessoa. As camadas invisíveis no livro nos deixam entrever o âmago das questões mais abissais dos seres humanos, traduzidas a partir da densificação psicológica das personagens. O inconsciente tal qual estudado por Freud é um processo no qual o indivíduo não tem consciência ou discernimento precisos. É como o avestruz com sua cabeça na areia ou como um poço, no fundo, em meio à superfície. O insondável mistério da vida permeia a experiência dos personagens desta fascinante história que tem muito a nos dizer pela voz do narrador. Ele é o sol, o guia que conduz à conscientização do leitor, para trazer à tona os mistérios do inconsciente. Na parte final do livro, o narrador diz: “O sol é dono do mundo”.
Todos os meandros e matizes, os vários ângulos possíveis dos personagens são revelados pelo narrador pelo processo de desocultamento do que está latente e não manifesto nos atores em cena. Freud nos falou do Unheimliche, do “estranho-familiar” que assola nossas vidas. E Jung nos trouxe o papel da sincronicidade ao relatar a relação não causal entre os acontecimentos, mas sim por significados, uma “coincidência significativa” que salta aos nossos olhos na relação oculta entre a mãe Luana e sua filha duplamente nomeada como Maria-Lígia, o indivíduo e a máscara que se imbricam num jogo simbólico. A prostituição, um dos temas da obra não é algo que se perpetua como uma herança genética, mas como um pertencimento simbólico que ultrapassa a compreensão. Para isso, Pedro Torres Lobo não faz julgamentos morais e maniqueístas dos personagens. Eles são o que são. Já carregam em si o drama da origem e dos significados como num fluxo do rio. O livro, extenso, 286 páginas, é dividido em três partes e mais um epílogo (“Separação”, “A reprodução” e “A redenção”).
O livro também fala da questão da maternidade e se inicia com o nascimento de Maria-Lígia, ou Lígia-Maria, no embate paradoxal entre legitimidade e adoção, pois a filha de Luana é retirada dela por adoção para que ela fosse salva de uma família degradante, decaída na bebida e na prostituição, segundo os pais adotivos que ganham um processo judicial. Isso se dá porque são feitas várias tentativas de que Bruno e Mariana gerassem um filho, o que não ocorre. A obra começa datada em 1º de dezembro de 1998, ano do nascimento e depois dá um salto de 20 anos. Daí o título do livro. A menina se torna adulta, convivendo com seus pais adotivos. São também fortes nas cenas os contrastes entre o claro e o escuro, nos mostrando o jogo de revelação e ocultamento, perdas e encontros. O retrato no início do romance é opressivo, misturando o tempo e o espaço. Há um tempo em cada ambientação. Na leitura, o início é enigmático com um final cheio de surpresas, com algo que não esperamos a partir de sua imprevisibilidade e do inusitado. Há uma intensa identificação mãe-bebê e o leitor é imerso nessa placenta simbólica da maternidade que é carne e espírito que dura na pele e deixa marcas inseparáveis.
Há algo de decifrável pela bela linguagem do narrador que nos emociona pelo pensamento. Como Fernando Pessoa, seu romance conjuga o pensar e o sentir num mesmo laço imagético e metafórico. Tem-se uma compreensão anterior à linguagem nessa relação da maternidade em que o narrador descreve cenas que beiram ao silêncio e ao esvaziamento de toda dimensão lógica e precisa: “A vida mostra-se a ela em sua inteireza, em sua grandiosidade inalcançável pela linguagem. Sua mente cala-se. Ela se cala. E apenas olha.” O livro pulsa vida, tem uma vitalidade imensurável. O médico e a enfermeira no hospital se reconhecem em suas paternidade e maternidade, relembram o passado do nascimento e se compadecem daquela mãe que vai ser separada judicialmente da filha. O pai-mãe se divide, se duplica no filho-filha, com um processo posterior de individualidade. A obra, ricamente, lida o tempo todo, com o conhecido e desconhecido, com o pensado e o ainda não-pensado. O interior e o exterior se combinam, o ambiente e o ser interno se estendem na cama elástica dos sentidos. O final é magmático, de uma simetria numérica impensável, um paralelismo que transcende a simples matéria, com a redenção pelo amor.
Henri Bergson nos revelou uma noção-chave que ele trabalhou inteligentemente que foi a intuição. No jornal “Estadão”, Catarina Rochamonte diz sobre a intuição bergsoniana: “Trata-se da dimensão da experiência interior. A intuição pode, no nosso entender, ser interpretada como uma conversão ou inversão da atenção capaz de ultrapassar o âmbito meramente cognitivo, alcançando camadas pouco acessíveis da psique, mobilizando a vontade, iluminando o inconsciente, liberando a memória, mergulhando, em suma, na profundidade de um eu que se desconhece porque aquilo que dele conhece só se dá à inteligência, à consciência reflexiva que, refletindo-o, o perde.” Por isso, Bergson ultrapassa o meramente factual para falar de uma experiência espiritual, experiência essa que perpassa a obra de Pedro Torres Lobo. O escritor paranaense critica o materialismo ao abordar problemas não resolvidos pela lógica racional, pois se dá numa outra dimensão mais ampla e transcendente.
Temos o esmiuçar denso da psicologia dos personagens, nos fazendo lembrar de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, citados anteriormente. O interior dos caracteres é escavado através do rito palimpséstico, retirando as camadas que escondem as peles com a vestimenta do ocultamento. A realidade aparece de forma crua e dura, sem enfeites. Por exemplo, Luana tem o mundo infantil roubado dos sonhos da criança e isso é muito forte, expondo toda a nudez da fragilidade dos seres. O sagrado e o mundano também se combinam com doses de complexidade, revelando a prostituição como algo indiscernível na vida de certas personagens, como um sacrifício não percebido aos olhos da razão. Apesar das durezas, há cenas tocantes, de grande sensibilidade a partir de imagens belas e originais. A professora que Luana teve é uma esperança em meio ao caos da violência familiar e escolar: “Essa professora representava para ela uma ilha de sossego e descanso em meio ao mar revolto da sua existência”. Aqui ela encontra a inocência, o frescor da singularidade, coisas que lhe foram negadas. Há momentos únicos na obra de Pedro que não podem ser substituídos por outras experiências. Ele traz uma luz em meio à escuridão. E Luana, assim como outras personagens, são iluminadas por essa luminescência. A humanidade tão caótica precisa de um alento, de uma chama viva de amor e afeição para que não se esfriem seus ossos mortais. O amor da professora foi a semente da redenção vindoura.
Em certos momentos, percebemos a incomunicabilidade das situações, imperando o silêncio e o indizível da poesia. Há até um outro viés, que é um clima de suspense, na perseguição policial no início da narrativa, criando-se um clima claustrofóbico. Outro elemento importante que percorre o enredo são as várias sensações dos seres numa tomada sinestésica. E assim, também se pergunta, a paternidade ou maternidade na adoção é legítima? No final do livro isso será elucidado belamente. E há algo também inusitado na relação entre nascimento e informática, entre o natural e o artificial quando fala da criança meio Lígia, meio Maria, que teve seu “Download concluído”. Há também um véu de desconhecido entre as personagens, o que se sabe e o que se não sabe. Às vezes, as vozes dos atores em cena são mescladas na voz do narrador, revelando uma simbiose e empatia entre eles.
Há também uma temática fulcral na narrativa, o meio jurídico, como há uma fina ironia no narrador com relação à suposta ordem e equilíbrio ao mostrar que também a desordem e o caos podem ser seus inquilinos. A importância do espaço exterior revela também isso, o deserto do hospital, com a situação de tristeza para Luana e a “formação geométrica” que se dá com a presença do oficial de justiça entre outros. Se revela aqui a frieza da ordem triangular, diferente da disposição em triângulo no final do livro que terá belamente uma conotação afetiva. No início da narrativa, também há um corte abrupto na história para se falar do passado de Mariana, a mãe adotiva. E para isso, há também um paralelismo, uma simetria geométrica ao se narrar também o passado de Luana, a mãe verdadeira. Se na família de Mariana há uma firmeza, um alicerce familiar, há um desequilíbrio nessa suposta ordem.
Com relação à estrutura formal, notamos frases interrogativas sem ponto de interrogação. O leitor construirá essa resposta às questões que estão implícitas pelo narrador. Outra questão linguística é utilizar o símbolo para o percurso imaginário do leitor que completará os vazios textuais deixados pelo narrador. As frases também são longas se densificando em períodos maiores. Isso revela uma construção pautada pelo aprofundamento narrativo que não deve se dar rapidamente, mas com o desenvolvimento alongado das situações e mostrando um complexificar psicológico. O romance fala dos laços, dos pertencimentos e despertencimentos, dos elos e separações, do esquentar e afrouxar, das uniões, encontros e cortes abruptos ou extensos. Na narrativa, Lígia-Maria, no lar adotivo, se sente uma alienígena, num não-lugar, mesmo sem saber que é adotiva. Ela se aproxima e se afasta dos pais adotivos num processo desconhecido. Como disse Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
Os casais unidos pelo amor Luana e Antônio e Bruno e Mariana são confrontados entre eles num processo catártico e de conhecimento. Mas o desconhecer também os enigmatiza. O narrador os adensa, percebendo suas inconsciências e caminhos de descobertas. As coisas não são tão vistas com clareza, as percepções sobre o próprio ser deles. Mariana é psicóloga e sua filha vai seguir o mesmo caminho, estudando em São Paulo e se afastando dos pais em Porto Alegre. Bruno tem uma situação financeira excelente e eles dão uma vida digna à menina. Além disso, há ricas metáforas para se falar de coisas triviais, de coisas do dia a dia dos casais.
Há um tempo de maturação da escrita de Pedro Torres Lobo, que já começa densa e vai cada vez mais se complexificando num drama meteórico. Ele faz finas e profundas observações sobre a psique das personagens, com reflexões elaboradas da mente delas. Dando uma verdadeira aula sobre o “comportamento humano”. O jogo de luzes e de sombras é enfatizado, apresentando o paradoxo dos processos de inconscientização e conscientização das personagens. Elas são iluminadas pelo narrador, apesar das sombras internas. Há pureza e delicadeza nos seres, apesar da dureza do inumano. O asco é substituído pela leveza. O livro vai abordar a decadência e a saúde. Na obra, não há culpados, todos são vítimas de uma teia insondável que os permeia. Edward Lorenz mostrou ao mundo sua Teoria do Caos, nos apresentando o efeito borboleta, onde há uma dependência sensível das condições iniciais. Ele desenvolveu suas teorias na década de 60 e a borboleta se apresentava como metáfora, pois “o simples bater das asas de uma borboleta no Brasil pode ocasionar um tornado no Texas”.
No capítulo II, 20 anos se passaram, em julho de 2018. Lígia sente este vazio, esta angústia inexplicável. Ela não sabe a causa da amputação: “da saudade que sente de um passado que não existiu”. Na relação pai/filha, ele tem certa reserva e cautela. A mãe adotiva é mais próxima, emotiva. Há o poder de imaginação do narrador. Como poderia ser a vida da mãe verdadeira e da filha? O romance revela o próprio de cada um, de cada ser, a diferença em meio à repetição. O narrador é contra a massificação da sociedade, mostrando um processo de individuação. O narrador não julga o casal pela adoção. Sem julgamentos, ele vem falar também do amor nesses lares. Há um laço, uma família. O romance fala o quanto os personagens mergulham num todo, numa unidade, conectando vidas pela regeneração humana. Apesar de tudo, há a vida e seus duplos. A dupla maternidade. A dupla paternidade. A dupla filiação. A dupla personalidade. O homem e sua dobra se densificam em toda sua potência. Mas o sol apresenta o “desnudamento”, a nudez em toda sua essência é descoberta.
Além da interiorização, há uma universalização, Torres faz reflexões aprofundadas sobre temas universais como o perdão. A família tem sua importância, a raiz e a fonte geradora são relevantes. O narrador vai reescrever a história das personagens, criar um reconto. Há um “rearranjo dos destinos”. Mas há algo de insondável no romance que não se mostra facilmente. O mistério da vida de Lígia a liga à mãe verdadeira de forma silenciosa e imponderável. Há uma reconstrução psico-corporal das pessoas na história. Há uma unidade entre a alma e o corpo. O livro também é pleno de revelações ao longo do enredo. Quem é o ser? Quem sou eu? Quem é o outro? São indagações que percorrem a obra. Há silêncios e comunicações, o vazio e cheio, o implícito e o revelado. E assim, perguntamos, há relações de continuidade no parentesco ou mais de descontinuidades? Vinte anos aborda essas problemáticas com a maestria do escritor. Tudo é genético ou há um processo psíquico maior? Parece-nos que o simbólico ultrapassa o meramente parental e determinado pela lógica e pela biologia dos seres. Há uma ironia trágica no romance em que no mito Édipo tenta escapar ao seu destino e se volta ao ponto inicial. Lígia será tragada pelo destino? Há revivescências imprevistas. O destino é cíclico, ronda a esfera dos princípios ou nada numa corrente em espiral? Portanto, Vinte anos vem nos falar de cura, de “purificação” e “regeneração”, um rito iniciático pelo qual todo ser humano deve passar. Finalizamos com uma frase do belíssimo romance de Pedro Torres Lobo: “a luz pode ser mais cruel do que a escuridão”.
SERVIÇOS
Vintes anos, Pedro Torres Lobo – romance (288 p.), R$ 42 (Penalux, 2020).
Link para compra:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/vinte-anos
Pedro Torres Lobo é escritor e Defensor Público. Em 2018, publicou seu primeiro romance, As Aves que Conduzem o Barco.
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux. Contato: alealmeida76@gmail.com