por Vanessa Passos__
(Conto do livro “A mulher mais amada do mundo”)
Eu sei porque ela começou a se esquecer das coisas. Já estava com a idade avançada, mas eu sei que foi desgosto. Eu sempre falei que dava azar morar perto do cemitério e sempre riram de mim. Diziam que eu era a mais nova da família e a mais faladeira. Reclamavam que eu chegava com minhas teorias absurdas e superstições querendo mudar o que estava estabelecido desde que o mundo é mundo.
O primeiro a ir embora foi o avô. Mas a verdade é que ele já tinha ido faz tempo. Vivia nos bares. Não dormia mais no quarto que ela e, nem quando bebia, conversava mais com a gente. Da morte dele eu não vou falar em respeito a ela. Não deixava ninguém tocar no assunto do assassinato. Nunca deixou ninguém mencionar o sangue, a luta física, a tragédia. O infeliz foi preso, mas isso não trouxe o meu avô de volta.
Teve também minha tia que morreu de câncer. Vou poupar vocês dos detalhes da doença. Só vou dizer que ela se espalhou por todo o corpo e levou ela rápido, ainda bem, coitada, não aguentava mais sofrer.
A vó também sentiu falta dela perturbar por um cigarro, uma moeda, uma banana. De chamar ela de perrissa (eu nunca entendi bem o que ela queria dizer com isso) e de ouvir as maiores verdades dela, sem papas na língua, sem filtro, desbocada, a louca da família.
Pouco tempo depois foi o meu tio. Câncer na língua e cirrose. Era como se cada um que partisse voltasse pra chamar o outro. Não disse a ninguém minha teoria, nem sobre o medo que eu tenho da gente morar próximo a um cemitério e uma funerária.
Não me espantei quando ela começou a esquecer. Começou trocando os nomes de propósito, esquecendo as coisas pela casa, deixando o fogo acesso sozinho ou a panela no fogo, botando duas vezes sal no feijão antes de cozinhar. Pouco a pouco também deixou de falar. Só grunhia vez ou outra e chamava o nome deles, dos que se foram.
Ela pegava na minha mão como se dissesse “bem que você disse, minha filha, que a gente devia ter saído daqui enquanto era tempo”. Mas, no seu esquecimento diário, no Alzheimer de cada dia, eu tinha certeza de que ela sabia que só era possível trazê-los de volta esquecendo que eles tinham morrido ou eternizando suas histórias no papel. Por isso, ficávamos as duas sentadas na varanda todas as tardes. Ela chamando por eles com a voz e eu com o papel.
Vanessa Passos é escritora, professora de escrita criativa, consultora literária, pesquisadora, produtora cultural e mediadora de leitura. É Doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Teve textos vencedores em diversos concursos literários e participação em várias antologias. É autora dos livros Manual de estilo e criação literária com a artesã Lygia Bojunga e Fábrica de histórias. É idealizadora do Programa Formação de Escritores, fundadora do Pintura das Palavras, criou o curso 321escreva (curso online de escrita), dá consultoria literária e promove eventos literários. O Pintura das Palavras hoje já alcança mais de 12.000 pessoas nas redes sociais, aspirantes a escritores.