Edifício Brasil | Conto de Yvonne Miller

 por Yvonne Miller__



A síndica fora informada sobre o falecimento do zelador no dia anterior e desde esse momento não existia outro tema no grupo de WhatsApp do condomínio com o ilustre nome Moradores do Brasil. Predominava a certeza de que ele havia morrido de covid-19 – como outros doze mil brasileiros até o momento – e não faltavam mensagens de lamento, de elogio para o seu bom (porém mal pago) trabalho e de palavras reconfortantes e bem-intencionadas para a mulher e os filhos do pobre Roberto (mulher e filhos que ele não tinha e palavras que, mesmo se tivesse, nunca chegariam até eles). Alguns moradores afirmavam que nos últimos dias tinham ouvido ele tossindo nas escadas enquanto recolhia o lixo ou que o haviam visto trabalhando sem máscara e luvas. Houve quem questionou a falta de compromisso com a saúde dos funcionários. “Não é responsabilidade da síndica”, defendeu-se a mesma, gerando uma pequena (muito pequena) polêmica sobre as condições de trabalho no Brasil, que logo virou uma polêmica maior em torno da questão do lixo e do uso da piscina daí em diante. Enquanto alguns argumentavam que o mais seguro era cumprir estritamente o isolamento social decretado pelo governo do estado para evitar outras infecções no prédio, outros opinavam que o condomínio não podia parar. Finalmente foi combinado que, até achar um funcionário novo, os moradores deviam levar seus sacos de lixo até a lixeira grande ao lado da antiga portaria cujos serviços tinham sido substituídos recentemente por um sistema “inteligente” e 100 % eletrônico. Todos concordaram, com única exceção do 403 (“Eu não pago 900 reais de condomínio por mês se ainda por cima tiver que cuidar do meu lixo. Tem que mudar isso aí!”), e o resultado já se fazia sentir na escadaria.


***

Seu César torceu o nariz assim que saiu da sua porta no quinto andar. Como podia o lixo do andar de baixo feder tanto após apenas dois dias? Não conseguia entender a oposição do vizinho à decisão do grupo de moradores. Não se tratava apenas de uma nova regra que havia que cumprir, gostasse ou não? Seu César gostava de regras. Seguir regras era fácil, bastava conhecê-las. E ele era um grande conhecedor e seguidor de regras. Sua área preferida eram as regras de trânsito; seu César orgulhava-se de que em 45 anos de carteira nunca havia recebido uma multa. Pessoas que não seguiam as regras o irritavam. Talvez fosse por isso que nunca sentiu vontade de ter filhos: onde tem crianças não tem regra que fique em pé. Ainda bem, pensava agora. Ainda bem que não tinha filhos nem era casado, pois era isso o que lhe permitia concentrar-se unicamente na própria saúde e sobrevivência. Saúde e sobrevivência – foi com esses pensamentos que tempos atrás, quando se fizeram públicos os primeiros casos de infecções no Brasil, ele enchera as prateleiras da despensa com álcool em gel, água sanitária, arroz, feijão, carne enlatada e papel higiênico para seis meses e se entregara ao confinamento, bem antes que a maioria da população. Para não deixar ninguém preocupado, avisou aos poucos amigos e ex-colegas do Detran, com quem de vez em quando se encontrava para jogar damas e trocar opiniões sobre o rumo do mundo e da civilização. Essa, aliás, andava péssima, como ele podia confirmar diariamente nos jornais nacionais e internacionais, que estudava com seriedade religiosa. A cada dia que passava estava a par dos números oficiais dos casos de covid-19, não somente no Brasil senão também na Itália, que atualmente contava com o maior índice de novas infecções e mortes por dia, e na China onde o vírus começara a se espalhar pelo mundo e onde finalmente tinham conseguido controlar as infecções novas. “Aqui”, pensava, “aqui ainda podemos evitar que se espalhe. É só todo mundo ficar em casa”. E ficar em casa era a regra à qual ele tinha se dedicado nas últimas dez semanas e que cumpria rigorosamente. Quase rigorosamente. De sete em sete dias, durante aproximadamente 20 minutos, abandonava a quarentena para cuidar da sua forma: vestia short e camiseta, calçava tênis, colocava uma máscara sobre boca e nariz e saia do apartamento. Nas escadas nunca tinha ninguém a essa hora de meia-manhã, o que lhe facilitava ficar longe do corrimão ou qualquer outra superfície que poderia incidentalmente tocar ou roçar com a mão. E tocar ou roçar qualquer coisa com a mão nestes tempos de pandemia podia ser uma sentença de morte.


Ele fechou a porta, prendeu a respiração e começou a descer os cinco andares a pé. O sol da manhã entrava pelo cobogó estampando um desenho de luz e sombra sobre as escadas. No andar de baixo, seu César descobriu a origem do mau cheiro: um amontoado de sacos de lixo jogados sem ordem nem regra frente à porta do 403. Balançou a cabeça e apressou o passo. No terceiro andar não aguentou mais e inspirou profundamente o ar fedorento a lixo de banheiro e comida fermentada. Tossiu enjoado enquanto continuava seu caminho escada abaixo, descendo o mais rápido que a cautela lhe permitia: cair e ter que ir ao hospital com uma perna quebrada em plena pandemia era o último que queria. Lá ia contrair o vírus com certeza. Cinco minutos depois finalmente chegou ao térreo. Agora começava a parte mais difícil. Os pés na mesma linha do quadril, seu César fez girar seu torso de um lado para outro, despertando os músculos das costas e destravando a coluna. Uma, duas, três vezes. Depois inclinou o tronco para a frente, alongando a parte posterior das pernas e tentando tocar os pés com as pontas dos dedos. Com perseverança e determinação um dia chegaria lá. Ergueu-se e, finalizando, deu uns pulinhos no mesmo lugar.


Vamos lá, César, você consegue! – encorajou-se antes de subir novamente os cinco andares até seu apartamento e, como fazia sempre, contou os degraus em contagem regressiva: 100, 99, 98...


***

Daniel parou a moto em frente ao prédio, prendeu o capacete no guidom e abriu o zíper da caixa de isopor. Era sua primeira entrega do dia e a caixa vinha cheia. Pendurou a máquina do cartão em volta do pescoço e, com as duas marmitas nas mãos, se aproximou do portão. Marcou o número do apartamento – 601 – no sistema de interfone externo. Enquanto esperava o zumbido do abridor, espiou na marmita de cima. X-Combo. A água de condensação tinha molhado as batatas deixando-as molengas e pouco apetitosas. Mas o X-Burguer ele comeria. Nesse momento a porta abriu. Chamou o elevador com a ponta do cotovelo, lembrando as palavras de Chica que tinham virado um mantra: “Esqueça que você tem mãos. Melhor do que luvas é não tocar lugar nenhum” (beijinho na ponta do nariz). Sorriu ao lembrar o beijo suave de despedida. Os beijos, na verdade, que Chica nunca se contentava com um só.


Ao entrar no elevador, seu olhar caiu num papel que alguém tinha fixado na parede metálica: FIQUE EM CASA, OTÁRIO! Daniel revirou os olhos. Ficar em casa e passar o dia todo com Chica e seus beijos suaves era bem o que ele queria. Mas perder o emprego não era uma opção. Daniel se posicionou no meio da cabine, longe das paredes traiçoeiramente brilhosas, para nem cair no automatismo de se encostar. Enquanto subia, imaginava que Chica o observava pela câmera de segurança. Outra vez lhe veio à cabeça a voz dela: “Cuidado com as superfícies que parecem limpas demais” (beijinho no queixo). A porta do 601 já estava aberta; duas moças de pijama, a metade dos rostos cobertos por máscaras estampadas com pequenas flores, esperavam por ele. Entregou as marmitas e, sob o olhar fiscalizador delas, tirou um frasquinho de álcool em gel do bolso e molhou um guardanapo de papel com que limpou o teclado da máquina do cartão.


Na volta alguém tinha chamado o elevador. Para não atrasar a próxima entrega, Daniel optou pelas escadas. Descendo os degraus aos pulos, a máquina do cartão batendo contra seu esterno, ele sentia uma alegria quase infantil. Imaginava Chica no fim da escada e ele voava em sua direção, pegava-a nos seus braços, a levantava e a girava a sua volta como nos filmes. Pulou mais alguns degraus e já estava no ar – voando aos braços dela – quando um senhor com roupas esportivas apareceu atrás da curva do quarto andar.


O tronco inclinado levemente para a frente, a cabeça vermelha e respirando pela boca, seu César acabava de completar 80 degraus, quando de repente viu pelo canto do olho algo grande voando em sua direção. O esbarrão derrubou os dois. Provavelmente seu César teria quebrado não só uma perna, mas a nuca, se não fosse pelo lixo do vizinho que amorteceu sua queda. Ploft!, soou pela escadaria do Brasil quando os sacos rasgaram e começou a chover papel higiênico.


***

Fazia anos que ele não usava a varanda, a não ser como vitrine para a bandeira, e não estava com intenções de mudar o hábito. Sempre fora o lugar preferido da ex-esposa – “03”, como costumava chamá-la – e após o divórcio ficara associado à imagem dela. Só que mais cedo ele tinha feito uma descoberta na castanholeira, cuja copa verde se estendia majestosa por cima do muro e chegava perto do prédio: vira um bem-te-vi pousar num galho na altura da varanda, o peito amarelo fazendo contraste com a cor das folhas. Logo em seguida ouvira o piar estridente dos filhotes. Foi nesse momento que descobriu o ninho, uma espécie de tubo de ramos secos, encaixado entre os galhos a poucos metros dele. A construção parecia-lhe tão fraca que, pensava ele, uma brisa ou umas gotas de chuva o fariam cair no chão da garagem em questão de segundos. Azar o deles. Não ligava para pássaros. Criaturas obsoletas, igual à maioria das espécies exceto o ser humano. Alguns seres humanos, para ser exato, porque eram poucos os que prestavam mesmo. Imaginou a cena em câmera lenta: o ninho chacoalhando e finalmente se desprendendo dos galhos, caindo inteiro pelo ar, perdendo uns raminhos aqui e outros acolá, se desfazendo pouco a pouco, os raminhos se espalhando pelos ares enquanto os filhotes, ainda sem penas, seguiam agora em queda livre, até que, um atrás do outro, batiam sobre o chão duro da garagem. Plaf! Plaf! Plaf! Era como se estivesse vendo a imagem na sua frente: os pintinhos nus e esquálidos, apenas pequenos vultos imóveis sobre o asfalto. Se seu carro não estivesse na oficina, desceria à garagem na hora, se sentaria atrás do volante e ... Será que ficaria o relevo do pneu impresso na pele azulada? Ou ficariam apenas os corpos amassados, grudados no chão como um chiclete velho? Mas o carro estava na oficina desde antes desta maldita quarentena, e a oficina estava fechada. Fechada como o self-service da esquina onde ele costumava almoçar, fechada como a banca onde comprava sua revista, fechada como o clube e fechada como a barbearia onde cada semana fazia a barba e cortava o cabelo – o único barbeiro da cidade que sabia cortar o cabelo exata e milimetricamente como ele gostava e que raspava a barba a modo antigo com espuma e navalha. Agora ele mesmo fazia a barba a contragosto com a máquina. Na primeira semana do isolamento social inventara também de passar a máquina pela cabeça. No fim das contas não podia ser tão difícil. Nunca mais! Após duas horas e várias tentativas de conserto aqui e acolá parecia que seu neto de cinco anos tivesse lhe cortado o cabelo com a tesoura do jardim, o que fizera com que seu constante mau humor se tornasse péssimo cada vez que se via no espelho do banheiro. Mas hoje tinha tomado uma atitude. Logo depois de devorar seus ovos com bacon e pão torrado – “toast” como tentava ensinar ao seu neto quando esse pedia pão de forma com requeijão (“cream cheese, Pedro”) – tinha ido até a varanda, tirado a bandeira das grades e coberto o espelho com o tecido verde, amarelo e azul. Agora podia voltar a frequentar o banheiro em paz, o que melhorou consideravelmente sua digestão e seu humor.


Foi na hora de tirar a bandeira que descobrira o ninho do bem-te-vi. E agora estava empolgado. Foi até o quarto, onde tirou seu velho binóculo – não o usava desde sua época no exército – da gaveta da cômoda. Levantou-o aos olhos, virou-se para a janela e procurou o horizonte. Sim, lá estava: o que à vista pura não era mais do que uma estreita faixa azul onde o acaso tinha deixado um pequeno espaço entre os prédios da Beira-Mar, lá enxergava agora claramente os barquinhos coloridos dançando nas águas azuis. Perfeito! Pendurou o binóculo em volta do pescoço e saiu do quarto de passo rápido, os lábios quase formando um sorriso. No caminho à varanda apanhou uma cadeira da mesa de jantar. Lá fora abriu também a mesinha desdobrável, onde 03 gostava de tomar o café da tarde e que desde sua saída tinha ficado sem uso. Colocou a mesa ao lado da cadeira e, assoviando, foi à cozinha, preparou um litro de café, verteu-o na garrafa térmica, acrescentou o adoçante e voltou à varanda. Colocou a térmica em cima da mesa e sentou-se na cadeira, de frente para a castanholeira.


Let the show begin! – murmurou ao mesmo tempo que levantou o binóculo e procurou entre as folhas. Ali estava o ninho! Estalou a língua, satisfeito, serviu-se uma xícara de café e reclinou-se na cadeira. Agora era só esperar. Mal se passaram cinco minutos quando ouviu de novo aquele burburinho excitado dos passarinhos. Levantou o binóculo e, sim, lá estava a fêmea, levando uma minhoca grande que ainda se revirava no bico que a prendia. Voltou a atenção para o ninho. Três biquinhos agudos emergiam dele, exigentes. Ele conseguiu enxergar a pele desnuda e feia com seu aspecto grudento. Esperou o momento exato, justo antes que a mãe entregasse a presa às crias. Então se levantou. Rapidamente e sem desviar o binóculo da fêmea. Com uma sensação de triunfo observou como ela, assustada pelo movimento brusco, congelou no meio do movimento. No próximo momento desviou a anelada minhoca dos bicos famintos e saiu voando. Ele a perseguiu com o olhar até que a viu pousar em cima do fio da luz, do outro lado da rua. Então pegou a cadeira, que caíra pelo movimento brusco, e se acomodou novamente nela. Jogou o restinho de café frio no vaso da samambaia – outra sobra da convivência com 03. Agora, dois anos após o divórcio, não restava mais nada de verde sobre a terra seca e rachada. Serviu-se outra xícara fumegante da garrafa térmica e olhou de novo pelo binóculo. A fêmea continuava no fio, girando sem parar a cabecinha de um lado para outro, a minhoca pendurada do bico. Ele desviou o olhar para o ninho. Depois que a mãe saiu de perto, os filhotes tinham primeiro aumentado e depois diminuído sua estridente sinfonia. Agora estavam escondidos e quietos dentro do ninho. Na varanda reinava o silêncio.


Fazia tempo que não falava com os filhos. As últimas vezes que ligara, as crianças não estavam em casa, estavam na festa de não-sei-quem, na aula de não-sei-o-quê, passando o fim de semana com os primos em não-sei-onde. Como se ele acreditasse em qualquer palavra que 03 dizia! Devia ligar agora na quarentena, ver se ela tinha coragem de inventar uma história dessas! Ele tomou um gole de café. Talvez deveria reduzir a pensão. Nem para a escola as crianças estavam indo; depois da pandemia provavelmente todo mundo ia ter que repetir o ano. Os professores também não estavam indo trabalhar, então por que continuar pagando? Estava decidido, ia... Um novo chilreio tirou-o dos seus pensamentos. Sobressaltado, ergueu-se na cadeira e pegou no binóculo. Justo na hora que a fêmea, sentada em frente ao ninho, aproximou novamente o bico aos filhotes. As três cabecinhas esticavam-se em direção a minhoca gorda. O barulho deles parecia mais estridente do que da primeira vez. Será que já começavam a se desesperar de fome? Criaturas fracas! Faltavam poucos milímetros. No momento certo, ele se levantou mais uma vez, empurrando a cadeira para atrás. E mais uma vez a fêmea pulou para trás e saiu voando. Mais uma vez também o concerto irritante aumentou. Esta vez a revolta dos filhotes era tanta que faziam tremer o ninho todo. Será que, se se mexessem bastante, conseguiriam derrubá-lo?


Para sua decepção, os passarinhos logo se acalmaram, o ninho continuou encaixado entre os galhos da castanholeira e o gorjeio parou. Vão esperar a mãe aparecer de novo, pensou. Desviou o binóculo para o fio e – bingo! – lá estava a fêmea. Desta vez, supunha ele, ia demorar mais tempo antes de se aproximar novamente. Mas tempo ele tinha. Tempo era o que não faltava nessa maldita quarentena. Concentrou-se de novo na imagem frente ao binóculo. Visivelmente aturdida, a fêmea voltava a cabeça para um lado e para o outro, para cima e para baixo, para trás e para frente. Ele estalou a língua. Quando se é passarinho, o perigo pode vir de qualquer lado, pensou. O que seria mais forte? O instinto de alimentar suas crias ou o medo? Quantas vezes mais ia tentar levar o alimento aos filhos, antes de desistir deles? E quanto tempo eles iam resistir à fome? Devagar, sem desviar os olhos, abaixou o binóculo. Esticou o braço direito para a frente, em direção ao lugar onde a fêmea estava sentada sobre o fio. Formou uma arminha com a mão e apontou o peito amarelo. Ela continuava girando a cabeça, a minhoca gorda balançando no bico, já sem oferecer resistência. Ele apertou os olhos e a mirou por cima do dedo indicador. Pei!



***

Célia olhou a patroa por cima da máscara. Hesitou.


Dona Regina – disse finalmente, estendendo o papel. – Meus pequenos me deram isso pra entregar à senhora.


O que que é?


Uma carta.


Estou vendo que é uma carta. Mas o que... ah, deixa pra lá. Me dá.


Impaciente, dona Regina pegou a folha da mão da empregada, desdobrou-a e, com os olhos apertados, começou a ler as palavras escritas a lápis com mão inexperiente:


Dona Rejina, favor deixa minha mãe votar pra casa. Você e ceu marido foi pra Oropa e temos medo que a sinhora passe o virus pra mamãe. Por favor! Não fala nada pra mamãe. É nosso segredo.

Asinado: Rômulo e Wellington



Durante uns instantes, parada no meio da sala iluminada pelo sol da manhã, dona Regina perdeu sua cara de dor de barriga. A ruga vertical entre suas sobrancelhas desapareceu, e seu rosto longo de lábios e nariz finos adquiriu um toque meigo. Olhava para aquelas palavras que dançavam desengonçadas e em linhas onduladas sobre o papel pautado e para aquelas letras que variavam em tamanho e espaçamento – os as e os mais retos do que redondos, os efes se confundindo com os esses – e durante alguns momentos ficou sem jeito. De repente se sentiu de volta na casa da sua mãe, ainda com a farda da escola, sentada à mesa da sala e inclinada sobre o dever de casa. Lembrava claramente como ia completando linhas e linhas do papel à sua frente com as, os e es, enquanto Mirla (não era esse o nome da menina?) lavava a louça do almoço, parada de ponta de pé em frente à pia. Alguns anos mais tarde sua mãe enxotaria a moça de casa, nessa época já no meio da adolescência, sob xingamentos nunca ouvidos e com a barriga já se evidenciando no corpo magro. Ela tinha esquecido desse episódio e da própria Mirla. O que teria sido dela?


Célia começou a preocupar-se de tanto que dona Regina olhava para o papel sem falar nada. “Meu Deus”, pensou. “Meu Deus, será que foi um erro?”


Foi a vizinha e assistente social que poucos dias antes, durante uma conversa na calçada, tinha lhe recomendado falar com sua patroa e pedir que a dispensasse durante o tempo da pandemia.


Vê com ela se não pode continuar pagando o salário ou pelo menos uma parte – lhe dissera.


Claro que Célia nunca ia pedir tal coisa a dona Regina: e se a dispensasse para sempre, sem salário nem nada?!


Mas na noite que seguiu a essa conversa ela não pregou os olhos. E se dona Regina aceitasse? Mal conseguia imaginar como seria ficar em casa, cuidar de que os meninos lavassem as mãos direitinho, que não saíssem do quintal, que a mãe bebesse suficiente água. E se...?


Depois que soube da morte do Roberto, no fim do expediente do dia anterior, tomou uma decisão. Chamou Rômulo e lhe pediu para escrever a carta. Seu medo de perder o emprego e não ter como alimentar sua família era grande demais para falar diretamente com dona Regina. Mas se Rômulo escrevesse uma carta em nome dele, dona Regina não teria como ficar chateada com ela. Ou teria? Agora não tinha mais certeza.


Quantos anos seus filhos têm agora, Célia?


Rômulo tem 7 e Wellington vai fazer 5, senhora.


Estão estudando?


Rômulo está no segundo ano e o pequeno no jardim de infância. Mas agora com essa pandemia, os dois ficam em casa com minha mãe.


Eles gostam da escola?


Gostam sim, senhora. Rômulo adora os números. Diz que de grande quer ser astronauta.


Célia, já tem mais de 4 anos que você trabalha para nós. Permita-me uma pergunta pessoal.


Sim, senhora?


Por que você não pede ao seu filho para lhe ensinar a ler e escrever?


Célia apertou os lábios e olhou para o chão. Se dona Regina soubesse que ao chegar em casa após varrer, limpar, lavar, passar e cozinhar o apartamento dos patrões, ela ainda tinha que varrer, limpar, lavar, passar e cozinhar na casa dela, dar o jantar para os meninos e cuidar que tomassem banho e escovassem os dentes antes de botá-los para dormir. Se tivesse meia hora sobrando antes do dia acabar, preferiria ocupá-la vendo os meninos brincarem no quintal, ouvir suas histórias do dia ou jogar aquele jogo de mesa que a vizinha tinha lhes presenteado no último Natal e que eles amavam. Dona Regina suspirou. Não havia jeito; ela fazia mais do que era da sua conta para ajudar à empregada, mas se a outra não se deixava ajudar, ela não podia fazer nada. Sem um mínimo de vontade para aprender coisas básicas como ler e escrever, Célia não ia chegar a lugar nenhum nesta vida, nem merecia. Um pouco de disciplina era o mínimo que se pode esperar de qualquer pessoa, não é verdade? Bom, pelo menos as crianças ainda tinham jeito. Se era verdade que estavam estudando, como Célia disse, e não vendendo balas num sinal de trânsito. Pobres! Não sabia quase nada sobre eles, mas com certeza não tinham uma vida fácil. Mas tinham jeito. Era só estudar e um pouco de boa vontade. Ainda bem que eram meninos, assim não corriam o risco de levar a mesma sorte que Mirla. Pobre Mirla, tão jovem, sem escola, sem emprego, sem nada! Mas também... quem mandou ela engravidar?!


Pode começar pela cozinha – disse dona Regina antes de virar as costas e desaparecer no escritório, com a carta na mão. Célia passou o dia sem voltar a ver a patroa. De vez em quando aquela frase ecoava na sua cabeça: “Por que você não pede ao seu filho para lhe ensinar a ler e escrever?” Será que a patroa ficou desconfiada? Será que intuía que foi a própria Célia quem havia pedido ao filho para escrever a carta? E aquele jeito, como Dona Regina lhe virou as costas... será que estava chateada? Será que devia chamá-la e pôr as cartas na mesa? Mas: e se tudo isso era coisa da sua cabeça e dona Regina não tinha percebido nada?


Nove horas mais tarde, Célia finalmente terminou o serviço e se livrou seus dedos enrugados das luvas amarelas. Nem precisava aproximá-los ao nariz para sentir o cheiro de água sanitária que trazia impregnado na pele. Lavou as mãos e os pulsos com bastante sabonete, esfregando a espuma entre os dedos e embaixo das unhas, assim como tinha ensinado aos meninos. Secou as mãos na própria roupa e passou álcool em gel. Só depois abaixou a máscara e enfiou um chiclete na boca. Conforme ia mastigando sentia o sabor da menta se espalhando pela boca, garganta e nariz. Pouco a pouco a menta se sobrepunha ao cheiro da água sanitária. Célia respirou fundo, quase aliviada. Colocou a máscara de volta no seu lugar. Os elásticos a incomodavam atrás das orelhas e agora, com o movimento do maxilar, começava a sentir um leve ardor. Mas tudo era melhor do que o cheiro da água sanitária. Ficou parada durante mais uns segundos com os olhos fechados, massageando a região com os dois dedos indicadores. Depois tirou um par de luvas de plástico novas da bolsa e se dispôs a sair pela porta. Já estava com a mão na maçaneta, quando seu olhar caiu no envelope em cima da mesinha do lado. Um envelope branco fechado, com as letras miúdas e ornamentadas da patroa. Era o mesmo envelope com as mesmas letras miúdas que ela encontrava na mesma mesinha cada último dia útil do mês, com as dez notas azuis que ela costumava tirar do envelope aí mesmo e contar uma por uma antes de dobrá-las e enfiá-las no sutiã. Mas não era nem metade do mês ainda. Desconcertada, olhou em sua volta. Não havia rastro de dona Regina nem de seu Oswaldo. Sem coragem de bater na porta do escritório, Célia pegou o envelope com mãos ansiosas e o apalpou. Deteve a respiração: o envelope era fino e leve. Dinheiro não era – ou então poucas notas. Seu coração começou a palpitar-lhe no peito. Se não era dinheiro, só podia ser a carta de demissão. Ou uma coisa ou outra. Com certeza a patroa havia percebido tudo e havia se incomodado. Por que ela se deixara seduzir pelas palavras da vizinha? Não estava bem nesse emprego? Usava luvas e máscara, e isso teria que ser suficiente para proteger-se. E depois do expediente, um banho com bastante sabão. Era o jeito; fazer o quê? Para que reclamar? Para que pedir mais? Nunca devia ter escutado a vizinha! Queria mais do que tinha, queria ficar em casa, receber salário sem trabalhar, vê se pode! Isso era o que acontecia: acabava de cavar sua própria cova. Ia ficar sem trabalho e sem salário. E agora? Onde arrumar outro emprego, no meio da pandemia? Não, isso não podia estar acontecendo. “Deus Santo”, pensou. “Por favor! Por favor, não deixe que isso aconteça!” Com o peito doendo de tão forte que lhe batia o coração, Célia tentou abrir o envelope; ainda lhe restava uma faísca de esperança. Mas as mãos lhe tremiam e o papel deslizava entre o plástico das luvas. Impaciente, arrancou luvas e máscara, deixou cair tudo no chão e rasgou o envelope com os dentes. Dentro havia um papel dobrado. Só. “Meu Deus”, pensou. “Meu Deus.” Uma tontura se lhe espalhou pelo estômago; precisava sair daí. Não percebeu que o envelope caiu no chão. Nem lembrou da máscara e das luvas. Abriu a porta com o corpo trêmulo e tropeçou para fora do apartamento. Só parou de apertar o botão do elevador quando as portas se abriram. Ofegante, entrou na cabine com sua luz forte e artificial. Assim que o elevador se pôs em marcha, sua vista ficou turva. Célia cambaleou até a parede, e lá ficou ainda muitos minutos após chegar no térreo; suas costas, ombros, braços e palmas das mãos nuas e suadas encostadas na superfície metálica, brilhosa e gelada.


Um pouco mais tarde dona Regina saiu do escritório para esquentar a janta. Ficou surpresa ao ver as luvas e a máscara de Célia jogadas no chão ao lado da porta, junto com o envelope que continha a resposta para Rômulo e Wellington.


***

Quando a pandemia finalmente passou, Roberto jazia sob a terra fazia um ano, junto a Célia e 200 mil outros brasileiros. A maioria dos moradores do ilustre Edifício Brasil mal se lembrava dele. Mas nunca, nem após anos, nem depois de contratarem um novo zelador, nunca conseguiram se livrar do mau cheiro que ficara impregnado nas paredes internas do prédio.





Yvonne Miller nasceu em Berlim em 1985, mas considera-se cidadã do mundo. Atualmente mora, namora e se demora no Nordeste do Brasil desde 2017. Escreve contos, crônicas e literatura infantil em alemão, espanhol e português. Tem textos publicados em coletâneas, como Paginário (Aliás Editora) e Histórias de uma quarentena (Expresso Poema Editora). Escreve regularmente para o perfil do coletivo sócio-literário @bora_cronicar e para o blog Escritor Brasileiro. Instagram: @yvonnemiller_escritora