por João Gomes__
Na seção Falatório de outubro conversei por e-mail com a escritora mineira Mô Ribeiro, que está publicando o seu primeiro livro de poemas, Paganíssima Trindade (Editora Penalux). Falamos sobretudo da dor não-romântica, de como a poesia pode ser confessional e coletiva e do enfrentamento da depressão por meio da arte. “Penso que sua influência no que escrevo se dá pela revelação do subjetivo, do simbólico, do que há de interior em cada pessoa e também nas coisas.”, conclui.
Paganíssima Trindade, seu primeiro livro de poesia, começa com um poema da escritora Mell Renault seguido de uma apresentação. Logo em seguida, vem a epígrafe reproduzida do livro Só garotos, da também artista Patti Smith: “Sempre trabalhei em surtos.” Qual a participação das duas autoras em sua criação poética?
A escrita da Mell Renault foi uma surpresa para mim. Sempre que a leio, me sinto transportada para outro ambiente. É como se eu fosse levada para dois mundos simultâneos: o mundo do aqui e ao mesmo tempo outro, este longínquo, onírico, ancestral. Há um dentro e um fora que se fundem em sua escrita. Chega a ser difícil descrever a sensação que me vem durante as leituras. Ela tem uma escrita muito própria, e penso que sua participação na minha criação tem relação com o buscar aqui dentro sem perder a dimensão do lá fora.
Quanto à Patti Smith, sinto um encantamento por sua forma de expressar o viver por meio da escrita. Os dois livros de sua autoria que li, Só Garotos e Linha M, têm um forte tom autobiográfico, no sentido da narrativa do que viveu. Ao contar suas histórias de vida, ela revela muito sobre como vê o mundo, como age, não apenas no que diz respeito ao “fazer coisas”, mas também no que se refere a sua subjetividade.
É um ensinamento belíssimo sobre o viver. O simbolismo, a devoção (aliás, ela tem um livro que se chama Devoção que pretendo ler em breve), a vida que ela aplica a coisas aparentemente banais me encanta. Podem ser uma mesa e uma cadeira de um café, ou as pedras de onde esteve preso Jean Genet, pedras que ela buscou nas ruínas do cárcere para dar ao autor – ela queria entregá-las pessoalmente mas, como ele morreu antes que isso fosse possível, ela as colocou em seu túmulo. Eu diria que Patti Smith é, entre tantas belezas, uma animista. As coisas adquirem vida por meio de suas experiências.
Já minha escrita tem outro tipo de autobiografia. Falo basicamente de meus sentimentos. No caso da Patti Smith há também a expressão da dor, mas ela não é o foco de sua escrita. Há uma expressão de vida muito forte. Penso que sua influência no que escrevo se dá pela revelação do subjetivo, do simbólico, do que há de interior em cada pessoa e também nas coisas.
Sinto que sua poesia tem o poder de fortalecer o pensamento de quem sofre com algo, mas não por falta apenas de respostas. O quanto há de autobiográfico em Paganíssima Trindade e até que ponto você percebe a grandeza de lidar com a dor não-romântica na poesia?
Paganíssima Trindade é um livro autobiográfico, com raras exceções. A lida com a dor não-romântica diz respeito a uma dor muito pessoal que, embora se conecte com o mundo, é algo que pertence basicamente a mim mesma, não se centrando em alguém (fictício ou não), mas ao que sinto frente a mim mesma e frente ao mundo. Quanto ao início de sua pergunta, em que você fala em “não por falta apenas de respostas”, sinto que a experiência de escrever o livro fez com que eu percebesse que tenho algumas respostas pessoais, mas que ao mesmo tempo são respostas-dúvidas.
Os
poemas publicados neste seu livro mostram ao leitor um estilo afiado
por meio do verso. Ao mesmo tempo, há dois poemas em prosa no livro.
Como se deu o processo de seleção, uma vez que inicialmente suas
publicações na rede eram mais narrativas?
Eu tenho um arquivo aqui no computador chamado “meus escritos”, a partir do qual selecionei os poemas. Penso que foi uma seleção mais inconsciente do que planejada. Porém, ao ler o livro (ler a si mesmo é uma experiência curiosa, coisa que fiz com mais afinco na revisão da obra) percebi que havia mais em comum entre os poemas do que eu imaginava. Os poemas em prosa eu resolvi colocar no livro depois de pronta a seleção. Pensei que talvez ali não coubessem mas, ao perceber que tinham relação com outros poemas, decidi adicioná-los.
No seu poema Timbre indefinido lemos uma prece direcionada ao outro: “Me leiam/Me ouçam/Me digam/que voz eu tenho”. Para quem escreve Mô Ribeiro e como percebe o retorno do público leitor e da crítica literária em geral?
Quando estou escrevendo eu o faço para mim mesma, sem pensar em quem irá ler. Ao ter o retorno do público leitor e da crítica literária, sinto que cada poema se recria, que cada poema vira cria também de outras pessoas. Tenho a sensação, quando isso ocorre, de estar lendo pela primeira vez o que escrevi. Sua pergunta, e a citação do trecho do poema, me fizeram perceber como isso se dá. É uma experiência muito rica.
Quando escreve: “Sou refém de mim mesma/Cuido bem da sequestradora/Estranha autoestima”, no poema Síndrome de Estocolmo atípica, você percebe que a ironia, ou humor ácido, por meio da autocrítica na condição de ser humano é um dos grandes achados que se encontra na obra? Você anota esses insights, ou eles vêm fáceis no seu ato de criação?
Obrigada por me dizer que este é um dos grandes achados da obra. Às vezes eu anoto os insights, mas geralmente os poemas vêm de bate-pronto, e só depois eu os reviso. Quanto a virem facilmente ou não, trata-se de uma situação dúbia: eles vêm fáceis quando resolvem aparecer. Mas não é frequente este acontecimento, ou ao menos não tem sido. Penso em experimentar escrever de forma planejada, a partir de um tema que me venha à cabeça, a partir de algo que eu veja em meu cotidiano. Vamos ver como será a experiência.
Sua poesia lida também com os momentos mais atordoantes do eu consigo mesmo, quer seja no escuro do quarto ou no âmbito social. Há tristezas, mas também uma vontade imensa de rir de tudo isso, apesar de tudo? Rir continua a ser o melhor remédio?
Muitos poemas são pesados, reconheço. Ao mesmo tempo, acho que há de se ter humor mesmo frente à dor. Nem sempre isso é possível, mas às vezes o riso irrompe e, penso, embeleza o sofrimento, dá a ele um encanto, um charme, a visão de que há uma saída ou de que, mesmo que não haja saída, é possível um atrevimento diante da dor.
A depressão é uma doença silenciosa por ser incompreendida inclusive por quem a sofre. Você quando escreve sobre a melancolia se vê na missão de algo ou isso lhe ocorre de forma tão natural que o confessional acaba por dizer de todos?
Não chego a me sentir diante de uma missão, até porque a depressão, como você disse, é difícil de ser compreendida. Entretanto, quando releio o que escrevo penso em outras pessoas que também sofrem com a doença, mesmo que, como disse anteriormente, escreva basicamente para mim mesma.
Mô, com que periodicidade você escreve? Seus poemas são revistos muitas vezes para chegar no que lemos por meio da trindade: “pensar/digitar/ressignificar”? E o que teria da pagã nessa trindade?
Não tenho uma periodicidade específica. Escrevo quando a trindade aparece. Às vezes passo muito tempo sem conseguir escrever, embora sinta falta do processo. O que teria de pagã nessa trindade? Bom, ela se dá dentro de mim de uma forma que não se relaciona em nada com algo santo, esta seria a resposta básica, mas devo dizer, para completar o raciocínio – não sei se a palavra ideal é raciocínio, pois se trata de algo meio intuitivo –, que o termo “paganíssima” veio como um contraponto ao “santíssima”, pois minha escrita trata, de forma bastante pessoal, de minha presença no mundo, mesmo quando lido com questões existenciais, abstratas.
Seu livro chega ao público dentro de um ano atípico, de isolamento social, com milhares de mortes causadas pela crise do novo coronavírus. Sendo sempre um momento necessário tratar de nossas fraquezas, você acredita que a poesia possa salvar por meio da linguagem, do diálogo?
Realmente, vivemos tempos difíceis e inéditos. Quanto à poesia, não sei se esta salva em definitivo. Acho que alguns poemas nos salvam de nós mesmos por meio do encontro marcante do eu com a palavra do outro, mas trata-se de um salvamento efêmero, a ser repetido na releitura do poema. É como nascer, morrer, renascer, morrer, renascer. Os poemas são, por excelência, obras literárias de releitura, pelo menos para mim. Trata-se de repetir o espanto que sentimos ao reler um poema que mexe com nosso indizível.
Quais seus projetos para o futuro, a partir deste primeiro livro? Há contos ou outros poemas inéditos?
Não tenho um projeto específico mas, a partir da leitura de um texto meu, a Maria Valéria Rezende sugeriu que eu fosse escrevendo o que poderia se tornar um romance pós-moderno. Eu contaria os episódios da vida de uma mulher que só entende e explica as coisas através da comparação com objetos concretos (e aí me lembro de novo da Patti Smith, embora seu entendimento da vida não seja apenas a partir dos objetos). Achei a ideia excelente e pretendo dar continuidade ao texto ao qual Maria Valéria se referiu. Eis o que escrevi: https://bityli.com/rsya0
João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.