por Quiercles Santana__
O que é viver dez décadas?
Aos 46 anos, frente a frente com a minha avó, quando fomos visitá-la (meus irmãos, meu pai e eu, semana passada), me percebi perguntando a mim mesmo: como é isso, vó, de viver cem anos? O que é atravessar um século? Não qualquer século, mas exatamente o séc. XX, suas guerras, suas fomes, suas pestes? O que é nascer em 1920 e durar até aqui, até o dia de hoje?
Nanan, certa feita, me chegou em casa com as gravações do primeiro ultrassom que fez de Dante, nosso caçula. Era uma fita VHS com um filme cheio de chuviscos, para mim indecifráveis.
“Olha, aqui é o coração dele batendo, tá vendo? Não é lindo?”
“Vendo eu estou, não estou é entendendo”.
“Hummm! Mas está aqui.”
“Deve estar.”
“É lindo”
“Deve ser”
O coração batendo é um sinal de marcação de tempo, não é? Algo deu partida. Algo está a caminho. Um relógio a marcar os segundos, a dizer os compassos, a imprimir uma cadência, sístole e diástole, expansão e recolhimento, tique e taque.
Em cem anos, quantos batimentos terão sido? E o que isso importa, afinal?
A minha avó foi uma pessoa forte. Alguém de vida longeva inspiradora e de fé inabalável em Deus, companheira inseparável de meu avô, até o dia em que ele partiu. Foi ela quem o vestiu de camisa branca de linho, quando pouco antes de falecer em casa, na cama de casal, ele solicitou: “Antônia, me veste logo, que me chegou a hora”. Pensamos que sem ele, ela o seguiria na sequência. Não seguiu. Mesmo depois do AVC. Mesmo depois que tia Socorro teve sérios problemas de saúde e não resistiu. Mesmo quando a casa onde viveu, no Alto do Capitão, foi interditada por causa do risco de desabamento no inverno de 2011. Ela permaneceu, a minha avó, a nossa avó, a dona Tonha, e seus traços de índia.
Sempre que ia visitá-la (e não fui tanto quanto deveria nestes últimos anos), ela puxava um “E Agora, José?”, a música que Paulo Diniz compôs a partir do poema de Drummond. Isso porque não esqueceu de um período em que eu, ainda adolescente, num trabalho escolar, fiquei responsável por falar do poeta mineiro, em um seminário de Língua Portuguesa. Achei que podia impressionar a professora e ganhar uma nota melhor, se cantasse a música. A estratégia não era ruim. E eu precisava.
Então investi tempo nisso. Consegui um LP emprestado com uma amiga e durante quatro dias seguidos, manhã, tarde e noite, botava a música a tocar na radiola CCE (3 em 1). A letra era longa e eu tinha que decorar para não passar vergonha.
Nessa época vovó estava morando com a gente. E o que não faltou foi reclamação.
“Pára com isso, Preto, pelo amor de Deus, menino!!”
“Mas, vó. Não posso. É trabalho da escola”.
“Jesus, não tem cão que aguente mais isso!”
A questão grave é que fui aprovado, mas mesmo não precisando mais ouvir a canção, não conseguíamos mais parar de cantá-la. Ao longo das décadas que se seguiram, daí em diante, era só pôr os olhos em cima de mim, que ela puxava a toada.
Semana passada, ao visitá-la pela derradeira vez, por que estava já bem abatida, ainda se alimentando, mas falando quase nada, fui eu quem cantou no pé de seu ouvido:
“E Agora, José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou…”
E quando não esperávamos por algum retorno, ela, na sua vozinha miúda de 100 anos, completou:
“Você que é sem nome,
Que zomba dos outros,
Você que faz versos, que ama, protesta?
e agora, José?”
Pelo que foi ovacionada pelos presentes. E sorriu.
Hoje pela manhã me veio a notícia amarga: “Voinha se foi”. E ficou esse eco aqui dentro, um nó na garganta e uma vontade incrível de cantar, mesmo que meio entalado, um pedacinho de canção para ela, de algum lugar invisível, completar e rir junto comigo. Fantástico mesmo é como o deus das pequenas coisas marca nas pessoas em nosso entorno uma passagem tão banal, mas de cintilante atravessamento, não é?
E agora, Antônia? E agora você? E agora nós sem você?
Beijo grande. E obrigado por tudo, de coração.
Quiercles Santana é arte-educador, ator, encenador, dramaturgo e professor de teatro, formado em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas pela UFPE. Foi diretor artístico da Trupe Circos, da Escola Pernambucana de Circo (Circo Social). Trabalhou seis anos na Diretoria de Políticas Culturais da Fundarpe. Dirigiu diversos espetáculos entre eles: Olhos de Café Quente, do Nútero de Criação Artística; Alguém Pra Fugir Comigo, do Resta 1 Coletivo de Teatro; e Espera o Outono, Alice, do Amaré Grupo de Teatro; Berço Esplêndido, do Grupo Panorama de Teatro; e Balbúrdia, da turma profissionalizante da Companhia Fiandeiros de Teatro. Foi gerente do Teatro de Santa Isabel de 2015 a 2017. Estreou como documentarista em 2013, no filme “Contos Ruas Casa & Quintais”, filme que registra fragmentos de memórias de pessoas idosas, residentes em Recife. É analista de projetos culturais.