por Lilia Guerra__
Bigu
saracoteava com agilidade pelas ladeiras e escadões da redondeza.
Pernas finas lanhadas, cabelinho preso num cocó embatumado, olhos
arregalados e curiosos de seus oito anos. Levantava de manhã bem
cedo e nem se lavava. Freio de saliva grossa da noite descia pelo
queixo e a acompanhava o dia todo. Bigu levava os primos cada um num
canto. Na volta, vinha com dois pãezinhos. O avô a aguardava para a
primeira
refeição. Bigu botava água no fogo pra coar café e
erguia a cortina trapida que enfeiava ainda mais a cara triste da
saleta. Seu Genuíno se alimentava e partia para a labuta, em seu
ofício de amolador.
─ Ói, Bigu, eu venho almoçar em casa.
Todos
os dias, às onze horas, estacionava o carro de amolar no terracinho.
Encontrava feijão, arroz e qualquer misturinha sobre a mesa. Não
faltava seu pote de farinha, o vidro com molho de pimenta bem curtida
e o copo d’água fresca de moringa. Depois do almoço, seu Genu se
sentava para uma pitada no velho cachimbo, lascado já, de tanto uso.
Vinha economizando tostões para investir em um modelo novo.
Madeira
de lei, cabo especial. Toda a moeda que sobrava ia parar na lata de
biscoito enferrujada, que repousava sobre o guarda-louça. Bigu sabia
do esconderijo. A casa suspensa no grande terreno que seu Genuíno
adquiriu na juventude, em troca do trabalho como construtor, abrigou
todos os filhos. Quando o patrão entregou os papéis da terra, o
bairro nem existia. Um quinhão que não valia o mês de salário, e
que outros trabalhadores recusaram. O patrão comemorou quando se viu
livre do inconveniente de, vez por outra, monitorar o pedaço de chão
naquela lonjura. E ainda poupar a féria da empreita ajustada com o
empregado. Cabia nos dedos de uma mão o número de casebres
espaçados entre bocados de matagal. Seu Genuíno se mudou com a
esposa e uns barrigudos. Outros nasceram no novo lar. Nos arredores,
construções surgiram pouco a pouco. O preço alto dos aluguéis na
cidade empurrou muita gente como nós para Fim-do-mundo.
Crescida, a filharada de seu Genu foi se apinhando. Ergueram ninhos de pombo pelo quintal. Por isso, Bigu tinha tanta obrigação. Carregava a primaiada para cima e para baixo. Entregava meninos na escola e na creche. As tias, às vezes, compareciam com algum quebradinho, que Bigu depositava, muito contente, na lata de economia para o novo cachimbo. Mas, ai de Bigu se atrasasse um tiquinho que fosse! Houve um dia muito frio em que perdeu a hora. A coberta fina não aquecia o fiapo de corpo. Pela madrugada é que ferrou no sono, vencida pelo cansaço. Não deu conta de se levantar no horário. A creche não perdoou o atraso de um guri. Bigu voltou com o pequeno e a tia aplicou um tapa em sua carinha arrependida.
─ Agora tu vai tomar de conta deste peste! Tenho bem mais o que fazer.
Bigu aturou o menino por todo o dia, atrelado ao seu cangote. De tarde, quando devolveu o pequeno, a tia ainda estava irritada.
─ Amanhã, tu não te atrasa. Preguiçosa!
Cidália. Aborrecida de engolir, feito boldo macerado. Tia só de boca, amancebada com o Didi. Ele é que era tio de sangue. Seu Genuíno e dona Erotildes tiveram oito filhos. Três homens, cinco mulheres. A mãe de Bigu tinha problema na cabeça. O avô repetia a história enquanto fumava o velho pito, sentado no banco feito de tora.
─ De todas, tua mãe era a mais bonita. Mas já veio pancada, coitadica. De pequena, era uma florzica murcha. A gente achava que nem vingava. Caladica, zóio pendurado. Depois foi que criou força. Sempre esquisita. Quando Dirce ficou moça, embirutou de vez. Fugia. Passava a noite na rua. Voltava feito cão vadio. Até que apareceu embarrigada. Não se sabe quem foi o desgracento que fez mal a ela. Muito homem sem Deus se aproveita da loucura. Depois que pariu, Dircica ficou foi pior. Se eu não te arrancasse da unha dela, Bigu, tu tinha bem é morrido. De fome e frio. Mas não era por mal que ela te judiava, não. Era coisa da mente fraca, que não trabalhava direito. Só gente que tem o casco muito frouxo se joga na linha do trem, que nem fez tua mãe. Que Deus a tenha em bom lugar, junto de sua avó.
No começo, as tias auxiliaram nos cuidados com Bigu. Um bocado uma, um bocado outra. Quem enjoava, passava o abacaxi pra frente. Por fim, seu Genuíno e a esposa ficaram encarregados de Bigu. Mas dona Erotildes morreu pouco tempo depois da filha, vencida pela tuberculose.
Pequenina, Bigu ia sentada no carrinho de amolar que o avô empurrava debaixo de sol, garoa ou vento. Crescidinha, acompanhava o velho na caminhada. Aprendeu logo a tomar conta do negócio. A fazer troco e separar encomenda. Matriculada no primário, detestou a escola. O agasalho gasto da caixa de doação, a pesada mala antiga que seu Genuíno encontrou no lixo numa de suas andanças, a separação do avô durante o período da aula… todas essas coisas a afligiam. Tinha também Georgiana. A menina de longas tranças louras e olhos azuis. Metida num uniforme novo em folha, se exibia com seus lápis bem apontados e cadernos forrados de xadrezinho. A mestra trazia a lourinha em excessivo chamego. Era toda elogios para qualquer gesto de sua favorita. Mas, atrás dos óculos enormes, seus olhos chispavam faíscas para qualquer suspiro de Bigu. A repreendia sempre que havia oportunidade. Bigu se sentava encolhidinha num canto, no fundo da sala, tentando ficar invisível. Por vezes, cochilava e despertava com as batidas da régua de madeira da professora sobre a carteira. Só nas aulas de leitura é que Bigu se avivava. As figuras coloridas da cartilha a deixavam encantada. Um belo bebê e sua boa babá. Leila, que olhava a lua. Ivo, que via a uva. Para espanto da mestra, Bigu ligou lé com cré rapidamente. Aprendeu a ler primeiro que os outros colegas de classe. Mesmo assim, preferia ficar encarregada da casa, da comida e dos favores que fazia para as tias.
A maior alegria de seu Genuíno foi ver Bigu dominar a leitura. Logo ele, que mal assinava o primeiro nome e era incapaz de ler uma só palavra. Assim que a menina desatou a ler tudo o que aparecia pela frente, seu Genu passou a fazer uma extravagância. Nas manhãs de domingo, permitia que Bigu dormisse um bocadinho mais e se encarregava de comprar o pão. Mas, antes, se achegava à banca de jornal. Franzia a testa, namorando as letras das manchetes que se embaralhavam à frente de seus olhos. Solicitava um exemplar do Diário de Notícias.
Com o embrulho debaixo do braço, seguia para a Birosca. Ocupava seu assento reservado à mesa da esquerda e compartilhava uma talagada de veneno com a camaradagem. Em seguida, escolhia pãezinhos de torresmo e tomava rumo.
Depois do café, Bigu se acomodava no degrauzinho desnivelado na porta da cozinha. Lia todas as sessões do periódico para o avô. Seguia muito séria, narrando as notas numa entonação grave e solene. Esgravatava cada centímetro das páginas. Seu Genuíno ouvia a tudo, atento às novidades. Da política aos classificados. Mas avô e neta se deparavam com alguns obstáculos. Bigu traduzia os sinais, mas não compreendia o significado das palavras. Começavam as questões:
─ Vovô, o que é latifúndio?
─ Ói, Bigu… parece doença ruim.
Passavam uns minutos discutindo.
─ E anistia, vovô? O que é que é?
─ Uai, Bigu! Isso eu não sei. Mas soa bonito.
Um dia, Bigu ouviu dizer de um livro que explicava a definição de todas as palavras. A professora recomendou que cada aluno adquirisse um exemplar. Georgiana foi a primeira a aparecer com seu dicionário, encapado de xadrezinho. Bigu contou a novidade para o avô. Mostrou o endereço da loja onde a mestra disse que vendiam o tal livro sabido, mesmo ciente de que não haviam de ter dinheiro para comprar o bendito. Mas não se passou muito tempo, até o final de tarde em que Bigu, chegando da escola, encontrou um pacote sobre a mesa da cozinha.
─ O que é isso, vô?
─ Ói, Bigu, é pra ti.
Bigu desfez o embrulho e logo reconheceu o livro que desvendava o mistério das palavras. Se lembrou da cara entojada de Georgiana, exibida que só ela. Pena não ter plástico xadrezinho para resguardar o novo amigo. O papel pardo da embalagem mesmo serviria. Bigu se agarrou ao pescoço do avô e lhe deu um beijo estalado. Tomou o dicionário, sorteou uma página.
─ Olha, vô! O senhor sabe o que é abnegação? Renúncia da própria vontade; desapego do interesse próprio; generosidade com sacrifício.
Se sentou à soleira, aproveitando a iluminação. Explorou o presente como se fosse brinquedo. Não se deu conta da lata de economia para o cachimbo novo vazia. Como também não pôde notar o coração do avô, repleto de ternura.
* O conto Bigu, extraído do romance Rua do Larguinho, que será lançado em breve pela Editora Patuá, foi adaptado pela autora para a livre publicação.
Lilia Guerra é paulistana, ariana de abril. Apaixonada por samba, plantas, flores e pela gatinha Madalena, boa camarada. Publicou seu primeiro livro Amor avenida em 2014. O segundo, a coletânea de contos Perifobia, pela Editora Patuá, foi finalista do prêmio Rio de literatura.