por Adriane Garcia__
O filósofo Gaston Bachelard nos diz que “o objeto nos designa mais do que o designamos.” Está com isso fazendo um alerta sobre a “imparcialidade científica”, mas, ao mesmo tempo, está afirmando a carga simbólica e subjetiva que os objetos que escolhemos para o nosso interesse trazem. Em A psicanálise do fogo, Bachelard elegeu o fogo um dos objetos mais dados a subjetividades que existem, daí a dificuldade que foi torná-lo objeto científico. O fogo é, por excelência, um objeto poético.
A poeta Natália Agra elegeu o fogo seu objeto central no livro Noite de São João. Desse centro, irradiado (de calor e frio), o livro se expande em duas partes, Fogo-fátuo e Reminiscências, e trata de memória e dor, vida e morte, lembrança e esquecimento. A forma na qual o fogo vai se materializar, na fogueira de São João, traz em si o paradoxo e a antítese. Se as fogueiras de São João se fazem associar com festa (conceito muito bem ilustrado na capa – fotografia de David Carneiro) em Natália Agra também se associam com os mortos.
Noite de São João retrata uma espécie de obituário lírico. Um a um, os que se foram. A lembrança, fogo-fátuo, é demonstrada nos seus limites, fagulhas. O que são as reminiscências senão fragmentos? A poeta reclama a voz que não ouve mais, o timbre que se perdeu: “tentei tocar também a voz de minha avó e de meu avô (que morreram tanto tempo antes). não consegui.”
No uso de algumas palavras, por vezes recorrentes, a força dos substantivos metaforizados, usados em profundidade, nas suas funções simbólicas: fogo, pássaro, trovão, orvalho, flor, nevoeiro, fumaça. Uma poética que busca no olhar a sua linguagem, nos elementos da natureza a conotação. Utilizando a força dos sentimentos relacionados a perda, Natália Agra mede os versos com um rigor tal que poderíamos atribuir ao seu poema Rigor, que trabalha com a condição de rigor mortis, a classificação de um poema metalinguístico. O poema é o próprio rigor poético.
RIGOR
de uma só vez empilhar
cuidadosamente
todas as mãos frias
de uma só vez chorar
O sofrimento perante a morte dos entes amados é grande e demorado, o poema sugere o desejo de brevidade do sofrimento, abreviando o tempo entre uma morte e outra. O próprio poema é breve. O verbo empilhar é de uma violência atroz; não empilhamos os que amamos, nós os enterramos, ou cremamos, um a um. Mas é cuidadosamente – a poeta invade de amor o poema com um advérbio – como se deve empilhar bons versos. A constatação de que estão mortos, “todas as mãos frias”, traz ao poema uma carga emocional altíssima e, por fim, a síntese esperada da emoção, “de uma só vez chorar”, é a própria síntese alcançada que, certamente, chora todos os mortos de uma só vez em quatro versos.
No ato de lembrar os mortos instala-se uma nostalgia da infância, as reminiscências apontam para objetos como uma caixinha de música, que silencia o mundo, ou as flores cultivadas pela avó Amália, por sinal o nome de uma espécie de antúrio; sugerem calma e segurança antes que a morte, este elemento de ruptura veloz, viesse se fazer presente. No poema Pavana para minha irmã morta, isso se mostra claramente; a antítese entre o mundo representado por uma dança com regras, em que todos os passos são calculados e não há surpresas e o mundo do caleidoscópio, onde as vidas e os eventos se recombinam no imprevisível, sem qualquer controle. A leitura de Noite de São João pode fazer acordar uma pergunta infantil: para onde é que as pessoas vão depois que morrem? Para o assoalho da memória dos que ficam é uma resposta possível, e o limbo, palavra também recorrente neste livro é a representação desse assoalho, em que cabem tanto o reviver de um tio amigo quanto a lâmina que dá fim à vida, extingue a pulsação e encaminha a tragédia. As festas de São João, deste modo, se fazem “festas submersas”, o que nos leva ao elemento antípoda do fogo, a água, matéria primordial e uterina.
Diante da morte dos seres amados tudo se torna constatação do esquecimento e tentativa de lembrar. Carl Gustav Jung, em O homem e seus símbolos afirma que o ato de esquecer “é um processo normal, em que certos pensamentos conscientes perdem a sua energia específica devido a um desvio da nossa atenção. Quando o interesse se desloca, deixa em sombra as coisas com que anteriormente nos ocupávamos, exatamente como um holofote que, ao iluminar nova área, deixa uma outra mergulhada em escuridão. Isso é inevitável, pois a consciência só pode conservar iluminadas algumas imagens de cada vez e, mesmo assim, com flutuações nessa claridade. Os pensamentos e ideias esquecidos não deixaram de existir.” Noite de São João faz o esforço de procurar este lugar onde o que foi esquecido não deixou de existir e por isso seus poemas constatam que “o passado é uma casa abandonada de onde nunca conseguimos sair” e que essa casa (precário edifício da memória) está “cheia de fantasmas”, afinal, as coisas guardamos é em nós.
Quanto ao fogo, continuamos em Bachelard: “O fogo é, assim, um fenômeno privilegiado capaz de explicar tudo. Se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo. O fogo é ultravivo. O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e se oferece como um amor. Torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança. Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal.”
Em Noite de São João, o fogo revive e consome, empresta aos versos a qualidade do vermelho (chás de hibiscos, noites púrpuras), sua eternidade não é a eternidade das pessoas, é tanto o crepitar das noites mais bonitas, que acenderam os dias, como o incêndio destruidor e a confusão. O fogo é o estalar da madeira queimando e também o silêncio ensurdecedor que habita o desaparecimento das pessoas. Natália Agra nos faz entrar nos quartos escuros das casas assombradas, os quartos que requerem claridade, luz, fogueira, fogo carregado de simbologias primitivas, tecnologia e mistério. Seus poemas deixam um rastro inteiro de amor: o fogo habitou – e pode arder – onde existe fumaça e cinzas.
EVOCAÇÃO
Para o tio Jonas que, assim como São Francisco, foi um grande protetor dos animais (in memoriam)
alguém
dizia: “pula a fogueira!”
no fim da tarde
fechava-se a ciranda
ainda respiro
aquele contorno cigano
como vapor na chaleira
espeto o milho na brasa
deixo que ardam nos olhos
os últimos anos felizes da família
mesmo que nunca sobrevivam à fumaça
sempre que retorno
encontro as janelas cobertas
o jardim vazio, as festas submersas
no esquecimento
de novo a criança soluça
o silêncio absoluto da navalha
***
Noite de São João
Natália Agra
Poesia
Ed. Corsário Satã
2020