por Rafael Silva__
O mundo anda meio acelerado. De todos os lugares as exigências e convites parecem nos bombardear e nos colocamos na posição de ter que fazer algo. As informações nos atravessam sem nos dar tempo de compreendê-las bem por que se se demorar em alguma, perde-se a próxima: desatualiza-se. E desatualizados, quem somos?
Engraçado como a pandemia lançou-nos a proposta de parar, mas o mundo hoje é inimigo de tudo aquilo que pede descanso, tudo aquilo que pede demora, que pede presença. Não! O mundo não pode parar! Se não pessoalmente, arranjemos então outro modo de deixar essa grande máquina girando. Virtualmente. Dentro das telas o vírus não chega. E diante das telas vamos dando nosso jeito de seguir em frente sem deixar que esses tempos [loucos!] de pandemia não nos afete significativamente. É preciso se adaptar! É preciso manter-se produtivo! E assim vamos, mesmo quando “o mundo pede um pouco mais de calma, até quando o corpo pede um pouco mais de alma”1.
Seguir, seguir, seguir... esse é nosso lema! Vide as incontáveis maneiras que arranjamos para continuar nesse ritmo e o mundo foi se tornando definitivamente virtualizado: joga a vida para o formato online! Não vamos nos render! Bonito isso: o modo como a gente se reinventa; o modo como vamos driblando aquilo que se coloca como obstáculo e reinventando formas de continuarmos humanos. Estranho isso: de não querermos adiar a vida como se a vida tivesse um fim em si mesmo. Como se precisássemos bater meta. Para que(m)?
Estranho essas nossas tentativas de preencher o tempo porque “mente vazia é oficina do diabo”. E nesse cenário vamos construindo um arsenal de receitas, métodos, estratégias, recursos que não nos desampare. O que é o ser humano desamparado? E se não sabemos mais lidar com a incerteza da vida [que é misteriosa]? O que é que significa parar? E o que é que significa esse tipo de movimento que realizamos? Quem dita o ritmo? Quem consegue dançar a música? E quem não consegue, dança qual?
Esses questionamentos não soariam tão patéticos e desprezíveis se não estivéssemos habituados a sempre ter que fazer algo. Como assim se demorar? Como assim fazer nada? Como assim o descanso? Como assim a pausa? Como assim não ter resposta? Como assim?
Movimento. Movimento. Movimento. E quando vamos ter tempo de parar e olhar ao redor? Quando vamos nos demorar diante de uma paisagem e contemplar suas cores, seus ritmos, seus perfumes? Ah, deixemos essa discussão boba de lado! Essas coisas inúteis não nos pertence. É preciso mesmo reconhecer e prestigiar o modo como heroicamente não paramos e continuamos a seguir apesar de... apesar das dezenas de milhões de mortos por esse coronavírus. Apesar de não podermos nos abraçar, nos beijar e acariciar.
Ah... antes fosse só essa pandemia. Apesar das queimadas, dos bichos incinerados, das pobres árvores imóveis se desfazerem em cinzas... continuamos seguindo! E apesar das políticas grotescas que cerceiam a liberdade, que negam direitos, que cultuam a ignorância e fomentam o ódio... continuamos seguindo! E apesar da pobreza, da fome, da miséria, da exclusão escancarada, pintada nas ruas... continuamos seguindo! E apesar mesmo das altas taxas de depressão, ansiedade e suicídio... continuamos seguindo! E não sei se isso é virtude ou indecência nossa.
Seguindo para onde mesmo?
Bom, mas imaginemos se o trabalhador da saúde, por exemplo, resolve parar; se as informações deixam de circular e se produção da ciência se desse um tempo... Não! Seria uma CAOS. Parar não parece uma boa ideia. Não paremos! Continuemos dando o máximo de nós e quando acharmos que não conseguiremos aí é que superaremos nossos limites! Ufa... chega cansei.
Parar ou não parar: eis a questão!
Outro dia, no meio da confusão vertiginosa de um ônibus lotado de pessoas mascaradas avistei um cartaz da prefeitura que colado na janela do ônibus alertava: EVITE ALGOMERAÇÃO! Eu sorri sarcástico e me demorei para sentir esse humor ácido que brotava em mim. Mas ácida mesmo era a piada veiculada pelo cartaz. Nesses instantes de demora senti aquele calor incômodo dos corpos, a tensão da aproximação, os suspiros quentes mal bloqueados por aqueles panos de mil e uma estampas enquanto a advertência de não aglomeração pairava e pesava debochada sobre minha cabeça. Sobre a minha e sobre as cabeças de quase 100 pessoas que obrigatoriamente precisavam se aglomerar (pois a máquina não pode parar de funcionar) e obrigatoriamente deveriam evitar aglomeração (porque vai que morrem e a máquina para de funcionar).
Pois bem, me demorei para entender aquela situação. E o que descobri não foi somente como uma organização sociopolítica rege nossos modos de viver e nos tratam como maquinário. Eu percebi mesmo foi que quando a gente se demora, para e observa a gente se coloca na tarefa de refletir e sentir aquilo que se apresenta. E talvez nos falta isso mesmo. Talvez, não paramos porque não queremos refletir, sentir, porque essas coisas exigem nossa presença, demandam nossa implicação, nosso envolvimento; porque se demorar é um convite para esmiuçar a vida, é convite para construir uma narrativa muito singular sobre ela. E quem quer ser singular? Quem está disposto a tornar-se pessoa?
Então, perdemos a capacidade de parar ou perdemos a capacidade anterior de nos sensibilizar a ponto de nada nos capturar? Nem mesmo a piada que escancara o riso debochado do deus farto e acocorado, a quem todos nós damos nossa própria carne e que nunca vimos.”2
O que não queremos enxergar? O que perdemos quando a vida acelerada passa como um vulto?
Bem, esse é meio que um texto despretensioso e sem resposta. De certo, outra coisa inútil. Fora que acabou ficando grande demais e suspeito que uma ou duas pessoas chegaram até aqui.
Próóóóximo...
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1 Trecho da música Paciência interpretada por Lenine.
2 Referência ao trecho do livro GERMINAL de Emile Zola cuja descrição literal segue:
“Sua voz elevava-se com uma espécie de medo religioso, era como se estivesse falando a respeito de um tabernáculo inacessível onde se escondia o deus farto e acocorado, a quem todos eles davam a sua própria carne e que nunca tinham visto.”
* Fotografia: Michael Hay