Não queremos nada que não seja nosso | Adriane Garcia

por João Gomes__




Na seção Falatório de dezembro, mês em que o Mirada completa dois anos de resistência cultural, entrevistei a poeta, escritora e historiadora mineira Adriane Garcia. Com um trabalho literário consistente na poesia contemporânea, Adriane publicou recentemente Eva-proto poeta, um livro de poemas curtos e afiados que celebra a voz das mulheres sob o ponto de vista bíblico. Conversamos, além da realização de sua mais recente obra, sobre a importância de ter uma voz ampla, da participação feminina no mercado literário e de como a exclusão é capaz de desagregar o ser humano. “Eu vim do mundo dos excluídos – por classe social e gênero – e sou uma mulher que abomina a exclusão”, afirma.


1 - Adriane, no seu primeiro livro Fábulas para adulto perder o sono, obra que embala poemas que dialogam entre si, há toda uma pesquisa envolvida no núcleo da obra. Agora com Eva-proto-poeta, antecedido por Arraial do Curral del Rei: a desmemória dos bois e Só, com peixes, que são respectivamente livros temáticos. Trabalhar com um tema específico guia melhor seu fazer poético ou é apenas uma forma de organizar cada livro?


Eu adoro trabalhar com livros temáticos. Para mim é muito mais fácil. Eu gosto da ideia desafiadora de esgotar um tema (não no tema em si, obviamente, mas no tema em mim). Fazer um livro temático me direciona, me deixa obsessiva e o exercício da pesquisa é fascinante. Eu sempre gostei de estudar; estudar é uma das coisas que mais gosto de fazer na vida. Depois, como fazer um livro temático não ficar repetitivo? Como encontrar a linguagem daquele livro, encontrar sua própria narrativa? Eu faço poemas avulsos, claro, e tinha tantos que os coloquei no Garrafas ao mar, mas tenho um prazer imenso em trabalhar um tema.


2 - Eva-proto-poeta parte da narrativa bíblica dos acontecimentos no Jardim do Éden. Popularmente repleto de questionamentos quanto a natureza de seus personagens, como foi resgatá-los para dialogar com o contemporâneo? Você realizou pesquisas para a escrita dos poemas?


Resgatá-los para dialogar com o contemporâneo foi na verdade o meu objetivo, mas não o resgate de algo que está lá atrás, no passado, que está esquecido; mas o resgate de algo muito atual que usa a linguagem para reforçar problemas muito graves em nossa sociedade. Claro que a narrativa bíblica não é a fonte de todo machismo e misoginia, mas ajuda bastante a se perpetuarem. Aliás, costuma acontecer em religiões monoteístas.

Li toda a Bíblia, a de estudos de Genebra; li alguns livros considerados apócrifos. Li livros sobre História das mulheres, um estudo sobre arqueologia antiga no caminho do Antigo Testamento, li algumas teólogas feministas e livros de exegese.


3 - Ainda sobre os personagens, há um enorme interesse em Lilith, que não aparece na Bíblia mas, de acordo com mitos surgidos na Idade Média, ela foi criada antes de Eva e, após se rebelar, é expulsa do Paraíso. Na narrativa do seu livro, a presença de Lilith e Samael é constante. Na sua apresentação, lemos: “Essa história não era para ser contada.” Por que então você decidiu contá-la e como a Bíblia e todos esses mitos contribuem para a sua criação literária?


A Bíblia, livro de forte tradição oral, feita em escrita coletiva de tantos anônimos, reescrita, traduzida, cortada, alterada, censurada, pelo tempo de séculos, a gosto do poder e dos seus interesses não mostra a personagem Lilith, no máximo, em Isaías, mostra uma “íbis” ou “coruja”, que provavelmente se perdeu do hebraico para a Vulgata. Mas os ecos permaneceram. A personagem Lilith não interessa ao patriarcado. A personagem Eva interessa ao patriarcado enquanto mulher submissa e pecadora, que traz a ruína ao mundo. É um modo de culpabilizar a mulher e, mais tarde, já noutro Testamento, usar Maria para redimir as mulheres. Mas só redime porque se torna santa, mãe, com função específica, sem sexo e, principalmente, sem gozo. Uso Lilith e Samael porque são as antíteses de Eva e Deus. Na verdade Eva pode ser Lilith e Deus pode ser Samael. É um mundo melhor, é uma mulher em igualdade com o homem e um deus que ama o prazer, que se relaciona com as mulheres sem sadismo. Eles não abominam o corpo e nem usam o controle sobre o corpo para manter meia humanidade em situação de risco e humilhação. Adão poderia ser um homem melhor, mas nós que temos medo de andar em qualquer rua erma ou escura sabemos: Adão ainda não é.


Mas quanto à sua pergunta sobre o livro, sim, a Bíblia é um livro de mitologia fenomenal para estudar o que temos hoje, que mundo é este. Ela participa ativamente deste estado de coisas. Ela registra o tempo e esse registro diz que o mundo patriarcal é um verdadeiro desastre humano e ambiental. Nem o Deus da Bíblia está satisfeito com o homem que criou. É um Deus que não conseguiu controlar sua criação nem quando tinha só duas pessoas. Quando você lê do Gênesis pra frente o que você vê é um deus que não desiste de ser renegado, é impossível ler o Antigo Testamento e não concluir que os homens querem adorar Baal e não Jeová, querem adorar deuses que gostam de festas, mas Jeová não aceita um não como resposta. Ele destrói o mundo dos homens e o refaz. E o homem continua adorando outros deuses. Se deu livre-arbítrio não respeita, não aceita um não como resposta, mata dizendo amar: é o comportamento de um abusador.


4 - Confesso que só pude saber de Lilith pela primeira vez através da poesia da poeta pernambucana Cida Pedrosa no livro As filhas de Lilith — que inclusive venceu como melhor livro do ano e também na categoria poesia o Prêmio Jabuti com a obra Solo para Vialejo. Tendo você organizado uma antologia poética exclusivamente de vozes femininas — Contemporâneas (Vida Secreta, 2016) —, como percebe premiações, participações em antologias e interesse das editoras brasileiras em publicar mulheres? Eva-proto-poeta, selecionado pela revista Quatro Cinco Um entre os melhores livros de 2020, é sua maneira de responder a esse silenciamento secular às mulheres?


Veja que interessante, meus interesses temáticos se encontram muito com os da Cida. Ela tem As filhas de Lilith, eu fiz Eva-proto-poeta; ela tem Solo para Vialejo e eu Arraial do Curral del Rei, que explora a narrativa de um lugar e de sua comunidade. Nossos interesses se encontram.

Gosto muito do fato de haver premiações, elas são ótimas para estimular a criação de trabalhos, dar visibilidade a escritoras e escritores, permitir publicações e dar algum dinheiro. As antologias com mulheres mostram a grande diversidade de temas e formas trabalhadas por mulheres de todo o país. Vejo que nós mulheres estamos aumentando nosso espaço, pois estamos escrevendo mais, publicando mais, ganhando mais prêmios, e principalmente, não estamos nos calando diante da exclusão no meio literário, que ainda é muito machista (repare nas listas, repare nos meios de divulgação). Vez em quando você questiona e ouve um papo sobre mérito literário, como se todos os homens que escrevem e publicam fossem desde sempre uma maravilha. Há trabalhos magníficos, ótimos, médios, ruins e péssimos. Com as mulheres pode se dar o mesmo, não venham dizer que uma revista cheia de homens, na atualidade, só olhou o mérito literário; ninguém mais acredita nisso, acho que nem quem fala. Há pouco tempo não podíamos frequentar escolas, mal podíamos aprender a ler e a escrever (com as mulheres negras isso é ainda pior). As mulheres que se deram a escrever e publicar sofreram todo tipo de discriminação e até violência, mas abriram caminhos. Hoje, temos mais mulheres resenhando livros de mulheres, mulheres fundando revistas literárias, mulheres editando, mulheres que criaram canais de vídeos para divulgar a produção de mulheres, mulheres trabalhando literatura de mulheres nas universidades, clubes de leituras geridos por mulheres lendo mulheres. Não estamos sentadas esperando nenhum favor. Queremos participar porque é legítimo. A literatura também conta e contará cada vez mais a nossa história, a nossa imaginação, o nosso ponto de vista. Não estamos querendo nada que não seja nosso. Nós fomos proibidas de fazer isso pela força e muita violência psicológica. Estamos pegando o que é nosso de volta.


5 - De uma forma encantadora em seus poemas há o cuidado absoluto com cada verso. Os títulos certeiros também contribuem para nos situarmos no hoje, como se Adão, Eva e Lilith estivessem na nossa frente, de maneira que não sabemos o que é um passado distante. Sabendo o quanto a Bíblia é um livro altamente patriarcal e misógino, mas uma vez que sua escrita é humanística e crítica, a voz que narra, como no poema Eva insone: “Fora/Tudo cala/Dentro/Tudo fala”, seus poemas são como pílulas de ironia dadas para despertar? A concisão é o melhor caminho para este tipo de poesia?


Bom, a ironia é um gozo malvado da inteligência (risos). Para esse livro achei a concisão o melhor caminho, mas há algo no que escrevemos que não é totalmente consciente. Eu busquei a forma concisa conscientemente só após o primeiro poema se dar de forma concisa. Mas o nosso inconsciente, onde guardamos símbolos, participa muito da poesia, que trata de símbolos. Algo em nós sabe antes. O segundo, o terceiro, o quarto momento é trabalho. Mas o primeiro, confesso, foi intuição. Tive dúvidas se com tanta síntese e uma personagem que nem todos conheciam o livro funcionaria, então o inscrevi no I Concurso Literário da Editora UFPR, sem a apresentação, que fiz depois, com o pseudônimo de Lou Salomé, em 2018. O Júri era Guilherme Gontijo Flores, Hertz Wendel de Camargo e Luci Collin. Ganhei uma menção honrosa e isso me confirmou que a linguagem funcionava. Creio que tendo poucos versos com a intenção de dizer muito, utilizar o título como chave foi um ganho fundamental.


6 - Em entrevista ao Jornal Cândido, do Paraná, você cita o poema Autodidata, da poeta Leila Míccolis: “Sofri/a influência de muitos poetas /que nunca li”. Ao mesmo tempo, você também resenha cada vez mais suas leituras e compartilha páginas de livros de poesia. Sendo da falta a origem do que você escreve, como respondido em entrevista ao escritor Escobar Franellas — e neste livro há o desaparecimento de Lilith —, então como consegue lidar com a influência literária em sua criação poética?


Eu lido bem, João, eu não me preocupo muito com isso. Eu sei que tudo que nos rodeia, tudo com o qual tomamos contato nos toca de alguma forma, para o bem ou para o mal. Nós não somos algo que por si só existe, puro, apesar de únicos. Até os mais originais tiraram os meios de erguer o novo no contato com o mundo, com os outros; muitas vezes, como bem diz a Leila Míccolis nestes versos certeiros que adoro (aliás a Leila é rainha da síntese) as influências não são todas conscientes e se misturam. Claro que falamos de influência, não de imitação.


7 - Eva-proto-poeta nasce do financiamento coletivo realizado em conjunto com a pré-venda da obra. Com o livro impresso e entregue a cada leitor e leitora que apoiou a iniciativa, dada a qualidade que se alcançou o projeto gráfico e editorial realizado pela Caos & Letras, como você percebe e recebe a repercussão do livro diante da resposta dos seus leitores? Você retornará a publicar dessa forma, mesmo que nunca tenha publicado seguidamente por uma mesma editora?


Uma pequena correção: eu publiquei dois livros seguidos com a Confraria do Vento, Só, com peixes e a segunda edição do Fábulas para adulto perder o sono. Publiquei Garrafas ao mar com a Penalux e foi uma edição muito feliz e profissional; tenho um relacionamento excelente com o Tonho França e o Wilson Gorj.

Resolvi publicar com a Caos porque eles estavam iniciando uma editora nova na região metropolitana de BH; eu já era amiga do Cristiano Rato e do Eduardo Sabino, pessoas em quem já confiava e não tive dúvidas em participar com eles publicando um livro meu. Na época, inclusive, expliquei para o Tonho que não era por nenhuma insatisfação, afinal não há qualquer problema com relação ao trabalho que fizemos na Penalux, muito pelo contrário, só tive alegrias.

A Caos gostou do livro que enviei, já tinha conversado informalmente sobre ele algumas vezes e então levamos o projeto adiante.

Fizemos a campanha no Catarse, que foi um sucesso e devo agradecer às pessoas que confiam no meu trabalho e foram lá e pediram o livro, sem saber o que viria dentro, afinal o livro era todo inédito. Agora os retornos me mostram que estão gostando e fico feliz.

Tem sido muito bom também o meu relacionamento com a Caos & Letras, o livro ficou lindo e os editores são muito dedicados.

Se eu voltaria a publicar desta forma? Sim.


8 - A arte da capa e ilustrações do livro foram feitas por sua filha, Micaelle Ariel, que também ilustrou a capa do seu Garrafas ao mar para a Penalux. Somou beleza à concisão dos poemas, e cada vez que chegamos a uma nova ilustração ficamos como no poema Da natureza divina e humana, que diz: “Depois/Atrás da moita/Aquele prazer/De espiar as quedas”. Como aconteceu o trabalho ilustrativo feito exclusivamente para a obra?


A capa foi feita pela Micaelle, que é uma artista do desenho maravilhosa. Ela cresce a cada trabalho e seria eu suspeita falando, mas quem pega a capa deste livro vê por si mesmo. As ilustrações internas são um trabalho digital do Cristiano Rato, que cuidou de todo o projeto gráfico. Desde que eu falei do livro para a Micaelle e li alguns poemas, ela me falou das frutas, da ideia de fazer um mundo vegetal feminino, vaginal. Depois ela criou essa Eva maravilhosa, negra, com essas mãos (repare que uma delas faz uma posição clássica da mão de Jesus) finas e uma perna de homem, branca se intromete no desenho. Há algo no desenho que é incômodo, que é amorfo, porque essa história é também uma história de violência e crueldade. Eu vejo que a Micaelle conseguiu realizar a síntese do livro, na linguagem dela.


9 - A organização do livro, junto com a brevidade dos poemas, faz com que a releitura seja alcançada sempre mais uma vez. A linguagem proposta também é acessível a qualquer público, leitor ou não de poesia, facilitando o interesse por esta celebração da voz das mulheres. Ao desenhar a estrutura do livro, em algum momento foi pensado em como o público receberia cada variação de tema e maneira única de cada poema?


Eu sempre me preocupo com a linguagem ser mais ampla. Eu vim do mundo dos excluídos – por classe social e gênero – e sou uma mulher que abomina a exclusão. E a linguagem muitas vezes exclui, de antemão. Eu sei que a literatura, com raras exceções, pode não mudar numericamente muita coisa num país de não leitores ou de poucos leitores. Eu sei que estou em um país em que a maioria das cidadãs volta pra casa no transporte lotado às oito da noite e chega em casa exausta para a segunda jornada, mal tendo tempo de se dedicar a si ou aos seus filhos. Eu sei que a chance de alguma dessas pessoas pegarem um livro meu é raríssima, quase nula. Mas se ele chegasse, eu gostaria que elas fossem capazes de lê-lo. Eu gosto da linguagem que preza por simplicidade. Eu gosto da clareza porque ela não empobrece a linguagem, ela democratiza o acesso. A língua permite usar toda a capacidade das palavras, metafórica, de ambiguidades, objetiva, simbólica para ganhar muitas camadas. Nestas camadas, pode caber todo mundo.


10 - Você tem compartilhado o retorno de seus leitores, e isso mostra o quanto é possível formar uma legião viva, por meio de um trabalho consistente e atuante. Citando o poeta Tarso de Melo, que brinca com o título do livro se referindo a você como “Adriane-pronta-poeta”, o que os leitores podem aguardar para um próximo projeto, ou quais projetos você tem se dedicado no momento com prontidão?


Vou aproveitar que você falou do Tarso de Melo e reforçar o que ele já sabe, que admiro muito o trabalho dele não só de poeta, que também odeia a exclusão, mas de ativista cultural, que procura ocupar para a mudança. Fiquei muito feliz com o retorno do Tarso sobre meu livro.

Meu próximo projeto é um livro do qual já venho divulgando poemas nas redes sociais e que teve uma tradução de cinco poemas por Manuel Barrós na revista Latin American Literary Review, da Cornell University em Nova Iorque. Chama-se A bandeja de Salomé e também parte de minha pesquisa bíblica. Neste a palavra corre mais solta, mas quando eu assovio, ela vem.




 





Adriane Garcia
, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020




João Gomes
(Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.