O poeta se encontra e emerge, sempre, do flagelo interior e social | Leo Barth

por Taciana Oliveira__



Conversei com o poeta alagoano, Leo Barth, autor de Garagem do Paraíso (Edições Parresia), dono dos versos:


Nada mais fazia sentido

O mundo era dívidas em cartão de crédito

Andar rezar dormir

Sempre em repetição

As mãos cansadas

Cabeça cansada

Falo morto e solitário

Constante queda no tatame

A lista telefônica matara antigos amigos

Por necessidade e cobrança

Seco como uma árvore empalada

Na circunstância exata

Brigava com as pedras

Lutava com as pedras e era pedra

Mesmo líquido

Como o que escorria de suas mãos cansadas

Ninguém gritava

Gritar era crime

O Super Irmão era o patriarca

Do saco sagrado

As prostitutas foram substituídas

Agora por garotas de telemarketing

Do abismo

Do salário

Dentes podres que não pagavam tratamento

Feijão de corda era o pão transubstanciado

Feijão com pouca carne moída de segunda

À segunda-feira

Bocas desoneradas

Livros que não diziam nada

Patos feios em águas caóticas

O jumento era a prova da criação errada

Nada poderia ser maior que seu pau

Seu pau era seu mais novo umbigo sujo

Grego hebraico latino latindo

Preces em MP3

Seu braço caído e dormente

Matara sonhos- visão tremenda de fracasso

Sem café preto de verdade



Consultava vinis em vão

Era a Verdade exata e imutável de cócoras

Tal qual dançarina de pagode

Com short antigo azul e grande

A voz do oráculo inconsciente apenas recitara o jargão de 20 anos atrás —

221 22 33- disk pizza, é só ligar!


Cabeça cansada , poema extraído do livro "Garagem do Paraíso".





1 - Como você classificaria a sua produção poética em Garagem do Paraíso?

O livro é simbólico, cheio de idiossincrasias. Traços distintivos boêmios, solitários e autodestrutivos esvoaçam em linguagens herméticas. Uma escritura obsessiva rumo ao desastre, sem caminho redentor direcionado aos deuses abrasadores-tentativa de recolher os próprios olhos dispersando-me em música de versos livres e brancos.

O lugar onde os portais dos meus infernos pessoais deságuam. Todas as crises, angústias em transcriação. Da não-conformidade com o modo de viver coercitivo e demais respectivas à fortes dores religiosas, ou antirreligiosas, à carruagem agnóstica. Abrindo então o Garagem, sentirás o ódio, sarcasmo bruto, galhofas e muito álcool: vodka barata que desce rasgando. E esse é um ponto muito singular: a maioria, ou totalidade, dos poemas foram confeccionados em um determinado estado que quando os relia sóbrio era um espanto. O de mal lembrar como foram tecidos, mas, de forma terapêutica, sentei no meu próprio divã de pregos afiadíssimos, ouvi-me e entendi as razões de tantas loucuras e desencontros em nome de Deus, do pretenso amor, amores e da falta de adequação à odisseia dos sãos. Creio que, como Maiakovski escreveu, de forma dolorosa e intensa, toquei flauta com a minha própria costela esfolada e arrancada no processo.

Um fato particular foi escrever ao lado de uma amiga, Lahlayara. Uma monstra belíssima, com cornos mosaicos elegantes, que chega de repente, silenciosa, atravessando paredes, portas, fluindo de nós avessos e gavetas de espelhos. Como anjo, demônio ou cão de guarda, capaz de engolir e dilacerar, pelos olhos multicoloridos, em sarcasmo, qualquer zombador. Se fluxo esquizofrênico, mediúnico ou místico, não sei…talvez, nem queira. Todavia, sempre me fez bem pela presença, fala e silêncios perturbadores.

Uma jogada em letras garrafais para ninguém e a todo mundo!


2 - Fala um pouco da tua trajetória biográfica. Onde o homem encontra o poeta?

Lembro que no ensino médio as artes me fascinaram pela apresentação do saudoso professor Antônio Leal, bem como a literatura. Amava viajar às construções poéticas das escolas literárias e seus respectivos desenvolvimentos históricos. A segunda fase da geração romântica, pessimista e satanista prendera-me a atenção. Bem como o realismo e o simbolismo, com respectivos contrastes e oposições.

Em tal época, sem pretensão alguma rabiscava versos e os guardava para, em seguida, ofertá-los ao deus do caminhão de lixo.

Já um pouco depois do ingresso ao curso de licenciatura em História, comecei uma produção poética encorpada, mais reflexiva. As figuras de linguagem, reflexões e o germe estilístico começavam a fluir.

Sobretudo, quando me mudei do sertão para Maceió, migrando ao curso de bacharelado, o sentido de deslocamento poético foi intensificado: novas pessoas, novos olhares, uma cidade abandonada ou a pluralidade de cidades dentro de uma só e suas contradições. Refiz contato com os poetas marginais, conheci os beats e a coisa jorrou como mijo. Mijo quente, extremamente amarelado e fétido. O poeta se encontra e emerge, sempre, do flagelo interior e social, do desespero, angústia e escárnio das algemas, sobretudo divinas, demarcações firmes para a vida material.


3 – Em Garagem do Paraíso, (Edições Parresia) há uma visceralidade que em alguns instantes ecoa em mim as primeiras leituras que fiz das obras de Ginsberg, Ferlinghetti e Corso. Quais nomes você destacaria na sua formação artística?

Há anos uma colega me emprestou Misto-Quente do Bukowski. Lembro da explosão visceral que tive, tão intensa quanto minhas primeiras 93 mortes! Li compulsivamente a maioria da sua obra. Toda aquela singularidade tríplice- os romances, os contos em interconexão e o lirismo poético. Um velho nostálgico e anti-social com amores sem cobranças e padrões. Em seguida, parti a outros beats, como o Kerouac com seu misticismo oriental voltando-se aos haicais…assim como o samurai curitibano Leminski, intelectual imenso, gritando a falta de utilidade da poesia e, posteriormente, levando-me à prática da filosofia japonesa do Caminho Suave pelo Shihan Jigoro Kano, onde retenho o maior conceito de cair, cair e cair amortecendo minhas quedas, o "ushiro".

O Burroughs deu-me uma propulsão, sobretudo, aos cut ups, recortes, o qual delineei minha própria forma que denomino self cut up, a escrita frenética, fluida e auto-reflexiva-de-divã mais que presente na obra Garagem. Sobretudo, o contato com a obra de Albert Camus iluminou minha conduta: viver não possui qualquer sentido, salvo o que construímos, de forma única, assim autêntica e sempre uma resposta ao suicídio. Costumo afirmar que sou um suicida sem qualquer pretensão ao ato.

Uma das pedras fundamentais- o poeta insone, romeno radicado na França, Emil R. Cioran. Um ingresso em um niilismo potente, a revolta contra os assassinos profetas, pretensos de verdades, da razão e da fé. O alemão Nietzsche também é poste-ídolo. A transformação do camelo ao leão e criança que brinca sozinha destruindo e reconstruindo seu mundo.

O livro Eles eram muitos cavalos do Ruffato, além de trazer contos bem construídos, propiciou-me muita liberdade estética...o uso de espaços, grifos, símbolos, travessões, reticências longas, estão presentes por todo meu limbo; Rimbaud, Uma temporada no inferno, abertura ao meu flagelo poético, anos antes mesmo de sonhar com tal possibilidade! As figuras, alusões, espasmos viscerais, são-me essenciais; Baudelaire com musicalidade soturna e sombria me prendeu. Sua pluralidade com escolas poéticas, boemia, métrica e liberdades de versos; Mallarmé na estética e espaços denotando mistérios indecifráveis e respirações/ressonâncias. James Joyce, de Dublinenses com seus contos autoficcionais retratando o cotidiano de uma Dublin crua à Ulysses com uma construção que quebra toda uma narrativa convencional. Chegando em Epifanias. Singular por imagéticas urbanas rápidas com variações espaciais e estéticas de construção.

Acredito ter olhado muito tempo em paralaxe para o abismo, e depois de muito, ele olhou e continua olhando para mim. Sempre brincamos, solfejamos e trocamos reticências com algum afago…


4 - Nos versos de Micro-putaria você afirma: Senhoras e senhores/A vida passa/ A revolta permanece /Como vodkca infinita. Há uma ironia ácida que transita nas mesmas águas que batizaram a narrativa de Bukowski e Machado?

Nos dois autores há uma grande agonia/ironia/denúncia em respectivos locais distantes no tempo e espaço. Machado, um autor marcante, zombeteiro, farto em erudição e construção narrativa, costurada e ao mesmo tempo quebrada, como percebemos em Memórias póstumas de Brás Cubas; Bukowski, uma fala nada formal apontando a ilusão do sonho estadunidense em fracassos de vidas às margens. Bebo muito dos dois. Já que o mundo não tem sentido ou salvação, resta-nos gargalhar perante a morte, como afirmou Wellington Amâncio em As fiandeiras tramam cores que doem nos olhos: "no fim do mundo há uma gargalhada descomunal". A única promessa concreta existencial- a morte- gera vida, o enfrentamento nos faz dar uma resposta ao que denominamos viver. Este que sempre cruel, estamos abandonados, sem compaixão, afago e providência. Deus, costumo repetir, é uma construção e projeção inversa do homem imperfeito, como declarou Ludwig Feuerbach. Caso ele exista, seria muito tosco, pela limitação humana, conhecê-lo, já que grandioso. Uma grande desonra e estado de humilhação, ao mesmo, apreender os homens em seu suposto livre-arbítrio que não serve para muita coisa, salvo oscilar entre o obscuro e o tijolo.


5 - Você está trabalhando em novo projeto?

Tenho o desejo hercúleo de publicar dois livros simultaneamente, creio, ao final de dezembro. Um de poesia, abrangendo esse período de pandemia e perdas humanas, bastante influenciado pelo niilismo (julguem depois se reativo ou ativo!). Muito mais ácido que Garagem, com uma maior diversidade estética em dispersões de versos e espaços brancos em aforismos. Creio que intensamente firme na ausência de um Sagrado, sem qualquer gota de álcool, recheado de muito ódio. Retratando também todo um período reflexivo do luto de um divórcio…

O outro, muito influenciado por James Joyce, sobre aparições ou manifestações da linguagem. Espelhando diálogos e os milagres polissêmicos que produzem, como assombros bestiais, dois mundos: sertão e capital.

Ainda, juntamente com Wellington e Cícero Maik, poetas de fôlego, estamos produzindo um manifesto sobre nosso grupo, o Arborosa. Por fim, tenho desejo próximo de publicar um livro de contos e comecei um romance com previsão de lançamento ao fim da vida, onde cada dia, em grande exílio, escrevo uma página, apagando duas, uma linha ou uma palavra


6 - Que nomes você destacaria no cenário artístico e literário de Alagoas?

Alagoas, por falta de políticas públicas, padece de um profundo abandono em relação ao fomento às artes e cultura. Avisto e denomino como guerreiros, todos aqueles que, por incansável teimosia, permanecem e desabrocham de suas almas aquilo que é vital: a poesia, em todas as suas formas de expressão.

Na fotografia, indico o fotógrafo, e também historiador, Roger Silva com seu trabalho Banzo que se dispôs a problematizar o espaço do negro em tempos de pandemia, faturando um grande concurso do El País.

Destaco duas poetas singulares que robustecem a Edições Parresia: Bárbara Assim, que tive o prazer de confeccionar o posfácio do seu Palavras pesadas carregadas por borboletas, bem soturna, emblemática em caos e fogo altíssono; Clara Costa, no marginal, febril, caótico, sensual e libertário O choro, a mancha, a descida. Acho fantástica a obra do escritor Dr. Alberto Lins Caldas, hoje residindo na França. Geovanne Otávio Ursulino com suas alusões contra totalitarismos em Os gigantes atravessam o Eufrates. Jean Albuquerque com olhares sobre o cotidiano e suas nuances. Maik Oliveira em sua poesia que trafega pelo cotidiano com nuances líricas, com livro no prelo.

Agradeço muito o espaço e desejo muita poesia e vodka infinita, por mais que esteja longe da mesma, a todos. Badá!






Leo Barth, nasceu em 1984. Delmirense dividido entre sertões e capital do caos. Começou a escrever por causa da Teologia. “Homem que nasceu morto, e que se acha em cada esquina, poeta de bêbados e esquizofrênicos, delimitado pelo caos particular, e autor de nada”. É notável entre os novos poetas trágicos-febris, um dos nossos maiores poeta do underground alagoano. Tem uma filosofia existencial-literária parecida com o grande Macedônio Fernandez, que escrevia compulsivamente sem muito importar-se com publicações. Boêmio, Machadiano e acadêmico, o autor possui centenas de poemas inéditos, produzindo-os desde 2001. É co-fundador do grupo “Arborosa”, de poesia, arte visual e fotografia, e editor do staff da Edições Parresia. Publicou na Utsanga (Itália) revista de poesia experimental, e em revistas brasileiras.





Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.