por
Valdocir Trevisan__
— Mamãe! Mamãe!
— Que é
minha filha?
— Não somos nada nessa vida.
Assim termina o romance de Lima Barreto
"Clara dos Anjos", a triste realidade do preconceito racial que ainda
vigora em nossas sociedades.
A mestiça mulata Clara descobre que está
grávida de um sedutor loiro, que covardemente foge, e ainda é acobertado por
uma mãe que não admite um casamento de seu filho com tal "raça".
Não bastasse tais humilhações, o cínico sedutor
tinha a seu favor a benevolência de juízes e delegados, pois as autoridades
julgavam como inapropriado essa união devido às diferenças culturais, de cor e
de nascimento. Era o Brasil República do começo do século XX. Lima Barreto, o
autor chamado de Bruxo do Cosme Velho, abordou em quase todos seus romances
essas desigualdades sociais com críticas ferozes, mesmo usando sarcasmos,
ironia e humor.
É justamente nesses quesitos que transparece a
sua literatura diferenciada. Sérgio Miller comenta sobre Barreto:
"admirávamos sua irreverência fria, a quase crueldade com que analisava um
personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos
caracteres". Na verdade nua e crua, não tem como ficar indiferente diante
das denúncias e suas críticas, elas nos forçam a pensar, refletir...e refletir.
Barreto revelou as facetas dos mecanismos das sociedades e suas diferenças
sociais com as injustiças raciais.
Esse é o terceiro texto sobre Lima Barreto, e
em minha modesta opinião, é o escritor mais relevante da nossa literatura
clássica, junto com Machado de Assis. Repito, em minha opinião. Não sou crítico
literário, apenas um rapaz latino-americano, jornalista e blogueiro.
Lembro que obras como O Ateneu, de Raul
Pompéia, ou O Cortiço, de Aluísio de Azevedo também me fascinam...mas Lima
Barreto é o cara...
Raul Pompéia escancarou atos extremos, afinal
quem não teve vontade de botar fogo em suas escolas como em "O
Ateneu?" Calma né amigos, são as fases de rebeldia de adolescente...
Mas, voltamos a Lima Barreto, não tem como não
ficar incomodado com seus livros, a luta de Policarpo Quaresma e sua revolta,
contra a política agrícola nacional e as aberrações raciais que Clara sofreu.
E ainda tudo que enfrentou, as duras críticas da
elite e das próprias empresas jornalísticas quando os intelectuais do início do
século XX, os "franceses", viviam sob influências românticas e
parnasianas e condenaram o bruxo ao ostracismo.
Mas enquanto teve forças, denunciou o que
pôde, ele sentia a necessidade de mostrar as falsas crenças do modernismo que
custou caro às classes menos favorecidas.
As lindas avenidas do Rio de Janeiro
empurraram a maioria da população para os morros e comunidades distantes, e no
romance Clara dos Anjos, Barreto registrou a feiura e sujeira dos subúrbios,
bairros periféricos com extrema pobreza.
Era um refúgio da infelicidade, segundo ele,
onde a sobrevivência era muito difícil e a miséria deflagrava o abandono dos
poderes públicos. Da mesma forma diante das questões raciais, pois quando Clara
vai encontrar a mãe do rapaz que a engravidara foi humilhada e massacrada. Sua
"sogra", dona Salustiana, que de dona não tem nada, interpela Clara,
"que é que você diz, sua negra?", quando a mulata reivindica
casamento.
Salusti;ana vai além, e fala que
"queixam-se de que abusam delas...é sempre a mesma cantiga..."
Esses são os personagens de Barreto, vítimas
que denunciaram os preconceitos com seus sabores amargos. Normalmente a crítica
e seus comentaristas costumam afirmar que esse era o contexto da Nova República
recém-saída da escravatura, porém, o tema ainda é recorrente em nossas
sociedades.
É notório que a escravidão nunca foi
totalmente superada, ela persiste e todos os dias acontecem fatos graves
referentes ao racismo.
Sociólogos argumentam, que uma parcela da
atual classe dominante, não tem capacidade de assimilar um rompimento com
origens ainda do Brasil Colônia. Deveriam ser agradecidos por uma vida em
abundância e ser generosos não colocando
o dinheiro sempre em primeiro lugar. Santo Inácio ensinou os "três
degraus" da obsessão pelo dinheiro: o primeiro é a riqueza em si, o
segundo a vanglória de alguns ricos e terceiro, a soberba. Evidente que também
gosto de dinheiro, mas sabedoria e humildade deveriam ser elementos compostos
dos afortunados. E gostaria mais ainda, que muitos vivessem essas boas
condições financeiras evitando a opressão que o superior submete ao inferior.
Simples. Não é espantoso como pessoas que não conseguem dar sentido à sua
própria vida, acham que tem o direito de orientar vidas alheias?
Lembro que outros segmentos recrudescem tais questões, pois em vinte anos, vários movimentos foram demonizados e sofreram mais de cinco mil assassinatos entre índios e sem-terra, enfim, pessoas marginalizadas. São histórias do cotidiano de racismo, poderes, concorrências, desafetos, tudo pela glória. Além de seus livros, Barreto escreveu dezenas de contos nos jornais da época relatando histórias de poderes. Uma que gosto muito foi publicada em 1915 com o nome de "Era preciso". Conta a história de um indivíduo ávido pelo poder, queria porque queria subir na vida e prometeu a si mesmo que faria o que fosse necessário. Não se sabe como, mas conseguiu o título de Dr. Mas queria mais e se aproximava daqueles que precisava, e quando não "precisava" mais desses, abandonava e partia para outras necessidades. Seguindo seus trilhos, pesquisou como poderosos chegaram ao extremo.
Examinando assembleias e câmaras, descobriu que um senador assassinou um concorrente, outro matou dois numa briga e um outro respondia processos por suspeição de assassinar um competidor. Nosso querido rapaz chegou a conclusão que precisava matar alguém e na primeira discussão alvejou o "inimigo" com três balaços. Depois de conseguir tudo na vida, quando lembrava do incidente, dizia: "Era preciso..."
Assim eram os livros e os contos de Lima Barreto, denunciando injustiças com veemência em toda sua literatura, considerada por muitos, como militante. Mesmo que seja uma utopia, quem sabe ainda poderemos mudar o título desse texto através palavras mais humanas com um real amor ao próximo. Lima Barreto e a Clara agradecem...
Valdocir Trevisan é gaúcho, gremista e jornalista. Escreve no blog Violências Culturais. Para acessar: clica aqui