por Alexandra Vieira de Almeida___
A ambivalência do diálogo no romance de Luizza Milczanowski
O romance O diálogo (Penalux, 2020), de Luizza Milczanowski, já revela na epígrafe da escritora Marguerite Duras um convite, um chamamento, uma reflexão para o livro, que se traduz pelo seu viés analítico, mas pleno da dúvida e da ambivalência através da percepção de uma narradora que oscila ao longo da história. O belíssimo prefácio da jovem e premiada autora Aline Bei foi escrito em versos, um poema que discute a obra em todo seu vigor, marca de Aline, que esmiúça a partir da prosa poética a questão do abuso, do silenciamento, do segredo, daquilo que não foi dito, mas poderia ser, sendo o título do prefácio já uma metáfora para um diálogo que se cessa com a morte do abusador, mas que continua na imaginação latente da protagonista, que guarda o segredo das palavras não verbalizadas, a língua ferida pela argúcia do tempo. O diálogo se biparte em duas vias antagônicas: o silêncio de pedra, que sangra, corrói o ser e o diálogo ultrajante, que, também a carcome por dentro, no seu íntimo naufragado pelo desconhecido. Uma infância perdida em meio aos nós das cordas aprisionantes do mundo adulto. Escrita é libertação, a “Criação” dos diálogos possíveis e impossíveis é estrategicamente narrada por um monólogo em terceira pessoa, tessitura complexa, em que a protagonista se olha de fora como outro observador, se externaliza por uma narradora em off, trazendo marcas dúbias da pessoalidade e impessoalidade numa trama complexa e inquietante. A escritora é bem jovem e já tem um domínio inventivo das técnicas narrativas, com um amadurecimento incomum para sua idade.
O livro é dividido em cinco capítulos, numerados, mas não intitulados, numa artimanha em mostrar um silenciamento, um vazio, um clima de suspense ao leitor, não dando pistas, através desse esvaziamento no deserto das palavras. Os significados vão surgindo e se prolongando no corpo de cada capítulo. Logo na primeira seção, há um jogo textual entre os pares opostos do silêncio e do diálogo comprido. Isso revela a própria origem da escrita que reflete a dor e o sufocamento da protagonista, que não é nomeada. Seu sofrimento se transborda e se dilata no ato da escrita, a linguagem se inaugura a partir do branco da página, que é uma metáfora da sua inocência maculada, pela tinta negra e nefasta do abusador, que escreve um vão, um intervalo, entre as falas e a solidão da linguagem: “Ela sabe que primeiro vem o silêncio e depois o diálogo comprido. O que é dito termina aqui; o diálogo não. O diálogo é mais do que o diálogo. O diálogo é um sem fim”. No ato da escrita e da fala, se conjugam com a referência à existência, a um fato ultrajante, que deixou marcas na sua personalidade ansiosa, depressiva que até a faz pensar em suicídio. Temos a ideia de continuidade, do ad infinitum, aquilo que se quer expandir, que não quer viver na gaiola do aprisionamento das palavras. O diálogo tem que ter asas e voar, ser um pássaro liberto das amarras do passado. Mas será que isso é possível para a personagem principal deste enredo? Cabe ao leitor descobrir.
O título do romance se urde como uma ironia, pois revela um rico paradoxo na dupla articulação da língua e do silenciamento. O caos antes de uma ordenação simbólica, que se revela pelo processo de autorreflexão da narradora-protagonista que se observa em terceira pessoa, criando, ao mesmo tempo, uma cisão e uma fusão, entre o observador e a coisa observada. Há um distanciamento e uma aproximação, imbricados pela rede original de seu processo de narrar. Porque: “Há vozes entre dois silêncios”. O romance tem essa potência eletrizante do som em movimento e o vazio inaugural das palavras. Essas causam uma dor corrosiva e dilacerante na personagem que vive um dilema, uma dama da dúvida e não de certezas e verdades absolutas. O diálogo seria o reino do provisório e do fragmentário. O livro tem peso, é forte, potente, queimando os olhos do leitor, que se dilacera num enredo ácido, mas com momentos de leveza e poeticidade.
Luizza nos apresenta, nesse romance, o paradoxo do discurso, pois o silêncio também é linguagem, carregada dos sentidos ocultos e implícitos: “O diálogo continua naquilo que não é dito”. A linguagem corporal também está presente. E o livro é um misto entre o cerebral e o sensível, com perplexidades filosóficas, mas também, suores, lágrimas e suspiros. Há toda uma poética da gestualidade e de seus significados diversos: “Um responde ao outro no calar dos lábios, no dizer dos olhos. Dentro de si ainda falam, mas não têm força alguma para dizer”. Ela expressa em poesia o que está na prosa, versos como extensões das frases, o anterior e o posterior, como no poema que vem logo a seguir ao texto narrado. Temos, assim, uma história da memória e do esquecimento, um apagamento que quer se buscar, mas que não se acaba e continua, numa roda de carruagem que não para de correr na duração do tempo. O diálogo não se exterioriza, havendo um choque entre o dentro e o fora, há um adentramento do diálogo no ser. A narradora reproduz na sua visão o diálogo interno da protagonista, fundindo a contadora do enredo e a personagem. Nessa relação entre a personagem e seu interlocutor há um discurso fechado, um segredo, algo hermeticamente preso num frasco. Com a morte do abusador, seu interlocutor, há a possibilidade da externalização? Ela só se dá como invenção, como criação, como matéria narrada: “Com sua morte, nasce a voz que agora a permite dizer”.
A morte de seu algoz, faz da vítima uma porta voz da libertação da fala, do diálogo. Mas o segredo se exposto no terreno na referência, traria uma violência, uma agressão. Como seria a reação dos outros? Quais seriam as consequências? Dizer ou não dizer, eis a questão que percorre todo o esqueleto do livro. A narradora mede os trajetos futuros. Olha com olhos de indagadora, as questões adentram seus poros. Além do tom analítico do romance, há todo um teor psicológico sendo exposto, através das personagens que compõem o livro, como Leonardo C., o interlocutor, sua mãe, entre outros. E o discurso cresce de forma gradativa, tornando-se cada vez mais reflexivo, mas cheio de ambiguidades. Expor a fala, contar o segredo, poderia gerar o caos e a desordem, algo que já existe interiormente na protagonista. A importância do outro repercute nas suas ponderações, fazendo-a ondular entre e verdade e a omissão. A verdade em si é guardada como num cofre. No mito de Pandora, a abertura da caixa traria as mazelas, o mal. Isso tem de ser exposto? É a interrogação que advém das suposições da narradora. Suas memórias são feitas daquilo que é abjeto, o escarro, o sangue, as nódoas, uma mancha que a narradora tenta extirpar a partir de uma história contada, sendo a morte “o fim de um diálogo impossível”. Nisso, temos os elementos do discurso tão bem estudados por Jakobson, como o emissor, a mensagem e o receptor, aqui, numa dinâmica conflitante e ácida.
E num processo engenhoso, a narradora-protagonista, em terceira pessoa, transforma o monólogo em diálogo, um diálogo ressignificado pelas lentes do passado, a partir da memória, da dor que a aprisiona num tempo que não pode ser modificado. A doença é consequência do ato abusivo, mas, ao mesmo tempo, em sua incompletude e incompreensão do mundo adulto, a protagonista amou e se tornou dependente de Leonardo C, seu interlocutor, que tem outra versão dos fatos.
Há outras estratégias narrativas, como depois de uma longa explanação reflexiva da narradora sobre a personagem se estender na ambientação, num cenário, criando-se, assim uma pluralidade no ato da escrita. O romance é concentrado, porém, nas reflexões dialógicas, no discurso. Há também a descrição da fisionomia das personagens, com descrição de elementos que vão aparecendo num crescendo e não tudo ao mesmo tempo, simultaneamente, seguindo uma sequência natural do desenvolvimento do enredo. Esse é muito bem tecido, bem costurado entre as partes, que se encaixam perfeitamente. Além dos componentes narrativos e descritivos, se revelam as ações em sua dramaticidade e impacto no leitor. A narradora revela a rotina da protagonista, com seu enfado e repetição, para representar sua insatisfação com o trabalho que ela exerce. Isso se mostra pelo ritmo repetitivo para representar sua dor aviltante. Numa cisão entre a fala e o ato, o discurso e a ação, ela diz: “É difícil dizer. É fácil teclar”.
Numa repartição, as ações da personagem engatam após o início analítico sobre o diálogo, numa estratégia primorosa de Luizza. Mas, de forma complexa, há uma suspensão da ação do trabalho, da mecanicidade, num processo de desautomatização pela inação, uma pausa, uma estaticidade, que a invade. Por outro lado, existe o movimento, a comoção interna, que se expressa externamente pelos gestos, como o ato de chorar, ação recorrente na protagonista, aquática, marítima, em seus afetos, que contradizem seu tom analítico. A ação produz uma falta, uma ausência, uma dúvida, um titubear, uma oscilação: “Os olhos ardem, a visão se turva, mas não pode chorar”. Há a ambivalência nos reflexos do corpo, o pensar no sentir, com o extravasamento e a contenção do choro. A ideia de culpa, num processo de autorreflexão é um ato de autoconhecer-se ou desconhecer-se o tempo todo? Há as páginas em branco de um tempo que poderia ser reinventado. As dubiedades no seu corpo são ritmos ondulatórios que se traduzem na sua escrita carregada de ambiguidades como em branco e preto ao navegar nas águas turbulentas do conhecido da superfície e do desconhecido das profundezas. Os abismos intransponíveis do ser. A terra ainda não conquistada, o diálogo impossível. Mas ela precisa da exposição, elevar-se das águas, do pranto, dilatando seus sentimentos, sua fragilidade, para ter o amparo humano, do outro como cúmplice, testemunha.
Ela busca terapias, médicos, para o anestesiamento da dor, através de remédios indutores do sono. Mas eles não resolvem suas questões internas. E há um retorno, as imagens do círculo retomam frases anteriores: “Esse diálogo impossível, interrompido por essa morte.” No romance O diálogo, encontramos a gradação e a circularidade na escrita de Luizza. E na dúvida shakesperiana do ser ou do não ser, a jovem e potente escritora retraduz o enigma da ambiguidade do ser a partir do ato de ver: ver ou não ver Leonardo C morto. Ir ou não ao enterro. A narradora é um ser cindido, dividido, com fragmentações na sua personalidade. Será que a manhã da escolha é possível? Hoje ela tem 37 anos e reflete sobre o passado pela memória que quer esquecer, mas ser exposta. O livro todo é construído de forma dialógica, como no título muito bem escolhido por Luizza, em que vida e morte se opõem e se enroscam, com o afeto e aversão pelo mesmo personagem, que a protege e a macula, Leonardo C. Ela não se conhece totalmente, há zonas inexploradas no seu interior, bem desenvolvidas pela percepção narrada. Ela procura, ao mesmo tempo, silenciar a própria vida, buscando o soterramento do próprio ser, de sua essência perdida. Entre o imaginário e o real, ela queria uma justificativa, um motivo pelo ato, por ter sido escolhida. A imagem é bem estruturada. O campo da imaginação da protagonista é explorado ricamente e soa tão real como a existência vivida. Há voltas ao início do romance, dando ênfases, através da circularidade, às problemáticas do repertório da memória, do acúmulo que não quer calar e adquirir voz. Mas que, pela dubiedade da narradora, revela a impossibilidade de “tornar real todo o diálogo comprido”. Pois o diálogo é a voz da vítima e não de Leonardo C que está morto e não tem fala. Será um diálogo criado pela protagonista. O segredo tem de ser exposto ou não exposto no terreno da referência? E nesse jogo textual, há um duplo sentido, o segredo está no que não pode ser dito e no corpo do abusador, linguagem e corpo num mesmo instante: “Não é justo que ele tenha morrido com aquele diálogo aprisionado em seu corpo”.
Além do ontem e do hoje, do passado e do presente, da juventude e da vida adulta, sendo comparadas, há reflexões sobre a morte de Leonardo C. Ele já estava morto como representação simbólica antes de sua morte física. Mas, contrariamente, ela diz: “...é como se ele estivesse vivo, constante na memória”. Há todo um jogo de presença e ausência do corpo de L.C. Porém, a ausência do corpo dele está presente dentro dela, numa tensão entre silêncio e linguagem, incorpóreo e corpóreo, o imaculado e a mácula. E ela vai especulando, até pensar que existem dois L.C. Como se os dois estivessem mortos. Dessa forma, seu discurso narratológico rompe com o princípio da não contradição da lógica clássica, formulado primeiramente por Aristóteles. Seu discurso se apresenta pela simultaneidade de ideias. Para esse princípio, uma proposição não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente, mas na imagem poética é possível, como nos revelou Octavio Paz no seu ensaio “A imagem”. Luizza faz reflexões brilhantes com a quebra da lógica racional. Enquanto os capítulos são bem distribuídos, com uma quantidade de páginas análogas, dando simetria à forma no conjunto, o conteúdo causa uma ruptura com a ratio, porém é analítico, mas de uma análise tensa e cambiante. Isso cria uma urdidura amplamente complexa e desafiadora para os leitores. A palavra “talvez” comparece em sua narrativa, assim como outras de mesmo teor desestruturante. Entre a pureza e a sujeira, ela sente pela memória, presentificando as sensações, dando-lhes vivacidade e corporeidade. Como se pudesse sentir no ato os odores, os cheiros, o tato, todos os sentidos.
E num momento de suas questões sobre a morte de L.C, a chuva cai. Entre nicotina e memórias, as lembranças vêm com o cheiro do asfalto molhado. Em meio às reflexões e sensações, o intelectual e o sensível se tensionam numa mesma trama. A vontade pelo álcool também é presente na protagonista que relembra pelas lentes da narradora em terceira pessoa, sua “Criação”, levando-a à melancolia. A e B são contrários numa mesma equação igualitária. E o pensamento que quer se tornar ação, futuro. Comparece: ir ao enterro? Seu livro é feito de luzes e de sombras, numa dinâmica do chiaroscuro. Na frase do romance “Nosso corpo, dúplice assimétrica”, temos a síntese de sua estruturação narrativa e reflexiva. Mistura a linguagem seca, ácida e rascante com momentos de lirismo profundo. Lembra-se de detalhes do corpo de L.C nessa noite chuvosa com cigarros. Mas tudo é distorcido, difuso e cintilante. O claro e o obscuro são conjugados. Temos em seu interior, o que se sabe e o que não se sabe, zonas claras e escuras em sua existência. Com a irreversibilidade dos fatos, a narradora questiona por que foi dessa forma e não e outra, a realidade não se poderia mudar, como no tempo da história. Mas, ela diz, num jogo de via entrecruzada: “A verdade, como verdade, tampouco existe”. Por outro lado, utilizando um vocabulário pleno de conflito, como a palavra “entretanto”, ela diz que há uma Verdade, com “v” maiúsculo, “que é a Verdade pessoal de cada um nessa narrativa de rodapé da existência”. Assim, o ficcional revela uma verdade sequer imaginada no campo do real. Há também o jogo entre mentira e verdade (a violência e o ato repugnante e o expor, narrar, falar). O choro da protagonista, recorrente ao longo do romance, é uma dor atroz que precisa ser expelida para a terapêutica do corpo, um processo catártico.
Se tudo é encadeado com exatidão entre as partes, formando uma unidade, há um discurso dividido, um monólogo interior e um diálogo exterior. Há todo um processo de aprendizado nessa história. E, ao mesmo tempo, a “vergonha do sexo”. E a vida é o Agora, fazendo-nos lembrar do instante já, da agoridade clariciana. Nesse aspecto, Luizza faz uma reflexão sobre o tempo. Um tem universal e caro aos filósofos e escritores. Para ela, na morte não há consciência. Não há nada metafísico ou transcendente em sua obra. Sua visão é a do corpo e não de um além. E a morte de L.C é um leitmotiv para se refletir sobre esse tema tão intrincado. A morte seria o fim da memória, a finitude das reflexões e ela passa a mudar de ideia, não sabe se irá falar de sua vida. Há um diálogo imaginário entre os dois, em torno dela e de L.C., neste momento. Não sabemos nada do que acontecerá depois da vida. Aqui se faz um parêntese e ela reflete sobre os escritores mortos, que só tiveram o reconhecimento após a morte. O que importa, ela questiona? Cita Franz K. e, também, Hilda H. Tudo isso para exemplificar o personagem Leonardo C. O livro nos leva a questões sem respostas. O diálogo, na verdade, ocorre entre ela e seu alter ego literário, a narradora, e entre a contadora de histórias e o leitor, num processo inventivo.
Outro conflito inextrincável na sua narrativa é a questão da solidão, recorrente em sua vida. Ela deve viver para si e dispensar o outro? Ou deve buscar a outridade? Difícil resolução. Ela foi uma menina pobre, escolheu uma profissão que odeia por subsistência, para não viver na pobreza e tem uma mãe violenta. O seu amor seria pela arte, que ela considera “subversiva”. O que ela tinha eram “abstrações solitárias”. E ela reflete que Leonardo não merecia a posição dada por sua “mania de Criação”. Porque o literário tem que trabalhar com questões, complexificar com perguntas e não respostas prontas e acabadas. Tudo começou num “cômodo vazio”, metáfora para o que tem frescor, virgindade, inocência, o primevo. Há os amores na infância, as brincadeiras, o “mundo das crianças”, o “quase-beijo”. Mas ela diz: “O crescimento é feito na violência”. E, depois, o encontro com o mundo adulto: “No início L.C tinha nome. Seu nome era apenas Homem”. Mas: “Quando conheceu Leonardo, não foi no sexo que o amor se constituiu”. Há uma dicotomia entre o interlocutor a partir da “criação” e do “real”. Ela também tinha medo da mãe em sua agressividade, o refúgio era seu quarto. A mãe sempre culpava a menina. Com uma infância complicada, a protagonista vive situações-limite.
Em um momento do enredo, há um processo meta-narrativo, no desejo da narradora da representação imaginária do leitor, presentificando-o. Na relação entre o escritor e o leitor, há a busca do encontro, da presença. Procura-se uma resposta física do leitor, uma corporeidade, uma relação amorosa com o leitor, como no conto de Clarice Lispector, em que o livro é um objeto, um amante. Mas na relação com Leonardo, o beijo apresenta inocência, mas quando ele a olha com desejo, “seu corpo se contrai de medo”. Para ela, é algo abstrato, para L.C é concreto. Ela não compreende o que é. Ela tem um amor infantil, um “amor que não é amor”. Ele é contraditório, trata e destrata a protagonista sem nome. As cenas eróticas causam uma confusão na menina. E os contatos vão se tornando cada vez mais íntimos, gradativamente. Ela passa a tomar remédios e ansiolíticos da mãe, deixa de comer várias horas. Num itinerário de muita tortura e sofrimento tem uma relação difícil com a mãe, que é agressiva. A filha se fere, numa cena de violência dilacerante e que nos impacta profundamente: “Arranha o próprio corpo até que a pele sangre”. Mas o que ela queria era o afeto da mãe nesse mundo de aridez: “foi com a mãe que primeiro aprendeu a se odiar”. Há também a violência vindo de fora do ambiente familiar, de Leonardo. A menina cria suposições, de formas de existência imaginadas. E a relação entre a protagonista e LC é desproporcional, o corpo-menina e o corpo-homem. Uma “relação aberrante”. Um “ato criminoso”. No momento presente, já adulta, ela tem dificuldade de compreender o passado, o que se deu entre os dois. A inocência, o paraíso em sua candura se perderam com Leonardo. Mas ele se justifica, dizendo que é tudo “normal”. E versão do abusador cria um desconforto, um incômodo, sempre se justificando que protege uma menina desamparada e sofredora, sendo um pai para ela.
Ela quer apagar a dor da memória, quer esmaecer a lembrança. A referência ao livro “Alice no país das maravilhas”, de Lewis Carroll, não é gratuita. E após uma longa narração do passado da menina, se volta ao presente, já adulta. Há essa alternância ao longo do romance. Há uma narração no presente que tem forte teor lírico, após o tom pesado de grande parte do terceiro capítulo. Escreve sobre cidade livre do passado, quer encontrar a cidade ideal, fora do tempo. Lembrar, inserir-se no mar do tempo, com suas ondas de idas e vindas, é um processo de dor: “Um abismo feito especialmente para si”. Na relação do corpo da menina há uma tensão entre transgressão e interdito. A menina imagina se haveria outros corpos destruídos, outras meninas. Em Lolita, de Nabokov, há o desejo de um adulto por uma menina de doze anos. Esse escritor utilizava uma linguagem complexa, com jogos de palavras e metáforas originais com lirismo. Luizza tem essa referência, mas dá um aspecto diferenciado na sua história. No início do romance de 1955, temos: “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lolita: a ponta da língua descende em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo.Li.Ta.” Há, aqui, a fusão entre o ingênuo e o erótico pela escrita do narrador. O professor Humbert Humbert tenta se justificar o tempo todo, mas carrega conflitos na sua existência. Na obra de Luizza, ela trabalha esse tema, na sua forma particular, dando outra dimensão à trama, mas se valendo da fonte literária do passado.
A protagonista de Luizza vive um dilema, uma tensão dramática, que percorre todo o fio narrativo do romance. Por isso o diálogo, que é a tentativa de compreender o real por meio da linguagem, das palavras. O confronto se dá entre ela e Leonardo, ao refletir sobre ele, o que aconteceu, se adentra no seu ser, num campo inexplorado que precisa ser descoberto e verbalizado. A palavra tem o dom de trazer à tona seus medos, anseios e enfrentamentos. O “encontro-diálogo” com L.C tornou a narrativa possível. No capítulo quatro, encontramos, novamente, uma reflexão sobre a escrita, com poeticidade, em que ela diz: “escrever é recriar a VIDA incessantemente. Recriar a si”. O que importa é o mundo dos vivos e, aqui, ela retoma questionamentos anteriores com outras palavras sem ser redundante, mas criando elos com reflexões cada vez mais plenas de profundidade. Há considerações sociais sobre o mundo através do interlocutor, com a questão das eleições e da greve. Faz análises sobre a arte e a literatura, citando Camus e sua estética do absurdo. E o não-diálogo são coisas que ela não conta para Leonardo. Podemos perceber momentos na narrativa, em que há uma maior contação da história, um enredo, enquanto em outros, encontramos digressões reflexivas e filosóficas, filtradas pelo viés da imagem poética. Isso cria uma multiplicidade de estilos, ricamente trabalhada. Leonardo não se culpa por manter uma esposa e uma menina ao mesmo tempo, não vendo nada inconciliável nessa atitude. Ele vê a protagonista como uma menina que “ele resgatou, negligenciada por uma família terrível e abusiva”. Mas, ele mesmo, é um abusador. Há a mistura entre a figura do pai e do sedutor.
O último capítulo começa com a luz solar adentrando o quarto da personagem já adulta, revelando o contraste entre luz e sombras, pois, ironicamente, na claridade, temos a morbidez, o dia do enterro de Leonardo. Há uma indiferença, o indivíduo é um número em meio ao coletivo. A morte provoca a unidade, a imersão no caos. Numa caracterização trivial, há o contraste com o início do capítulo, que traz uma poeticidade grandiosa. Uma apoteose para o belo em sua vida ou a libertação? O dia ensolarado é uma ironia, o fim do diálogo, sua clarificação e exposição? Ou seu soterramento? Há um questionamento. Há a diferença entre a menina de ontem e a mulher de hoje? Uma diferença física e psicológica? E logo no início do capítulo, ela derruba no chão um copo. Seria o símbolo do que ficou partido? Que não tem mais conserto? A fragmentação de seu íntimo?
Portanto, seus questionamentos são cheios de dubiedades e dúvidas, criando um universo de possibilidades e alternativas, cabendo ao leitor escolher seu caminho interpretativo, assim como a protagonista, opondo-se à falta de escolha de Camus. Entre o prazer do café e a dor do álcool, ela não sabe se irá ao enterro ou não. O leitor saberá no final do enredo, não cabe aqui explicitarmos. A narradora alonga o tempo da narrativa do romance até chegar o momento da decisão final do enterro, com digressões e fatos, unindo o passado, o presente e o futuro. O tempo menor é distendido pela força estrutural do romance. Temos o diálogo, não dos mortos, mas dos vivos. Com o fim da relação, há o fim do diálogo. Quem abandona a relação? Ele ou ela? Deixo o desnudamento derradeiro para os leitores. O que o crescimento da menina provocou nos dois? Qual a verdadeira identidade que se cria nesse dito e não dito? No diálogo e no silêncio? Há contrastes de percepção num mesmo ser. O diálogo comprido realmente existiu ou é apenas imaginado?
Nesse sentido, temos uma provocação de Luizza, a discussão entre o ficcional e o real, o verdadeiro diálogo da potência literária, que faz a ponte entre a imaginação e a existência.
Disponível em:
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E-mail: vendas@editorapenalux.com.br
Luizza Milczanowski é escritora, nasceu no Rio de Janeiro. Escreve poesia, prosa e ensaio, participando de coletâneas e colaborando com diferentes revistas literárias. Escreveu O Diálogo [Ed. Penalux, 2020]
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux. Contato: alealmeida76@gmail.com