por João Gomes__
Na
literatura contemporânea, a prosa do escritor carioca
Mike Sullivan
se debruça com maestria em mais um livro sobre a morte. Mas não é
apenas mais
um
e nem também apenas sobre a morte. Como autodefinição, logo na
abertura, lemos: “Sou
doença, vírus, veneno, suicídio, loucura, crime. Sou também a
salvação dos que têm dores e pressa por alívio imediato.” O
sentido e o fim,
publicado com qualidade editorial de excelência pela editora
Reformatório, é um livro de contos capaz de inquietar o leitor pela
sua assombrosa realidade cotidiana. Sua escrita não faz apenas uma
abertura para que se caia como arapuca, é o próprio túnel da vida
em sua busca por sentido. Não pretende salvar ninguém, o que seria
impossível, e tampouco ser didático com os fatos. É a vida exposta
por sua força arrebatadora através da criação literária.
Sem
titubear, o autor começa com uma certeira epígrafe do escritor
holandês Arnon
Grunberg:
“A
morte talvez ponha fim a todas as coisas; o tempo, não.”
A estilística perfeita desta epígrafe é o aviso do que aguarda o
leitor que não se põe no fim de si mesmo sem antes atravessar este
livro. Os contos não desejam ser apenas simples narrativas para o
esquecimento, conseguem marcar por sua perfeição de estilo
realístico. É a própria morte quem fala antes do primeiro conto:
“Estou
dentro de cada um de vocês. Sou apenas o seu fim. Teu futuro tão
distante e também tão próximo. [...] Não precisa ter pressa. Eu
te espero.”
Esta é a pegada trágica de um autor, psicólogo de formação, que
obstinado no assunto publica sem medo seu quinto livro, sempre com a
mesma audácia dos peritos criminais.
As palavras nos
dizem muito através da escrita direta de Sullivan, não desejam ser
floreios literários ou frases que se emolduram. O autor, que é um
leitor público e voraz de literatura e não apenas colecionador de
livros, maneja bem suas tramas, faz da pontuação o ritmo
cinematográfico com personagens bem construídos. No conto de
abertura, Dentro
de mim há um tempo se esgotando,
há um psicólogo que dá apoio a pessoas que estão próximas da
morte quando recebe o diagnóstico de um câncer. Entre um presente
bem sucedido e um passado bem distante, uma criança, ele mesmo,
presencia sua mãe ser presa por assassinar pelas costas seu pai, que
o violentava sexualmente. Pela forma como são narrados, ambos em
primeira pessoa, podemos talvez pensar em personagens distintos. Mas
como narrativa de abertura, já nela podemos entrever o que seria o
“sentido” e o “fim” da história de alguém que superou o
abuso sexual na infância.
O enredo de alguns contos me
fazem recordar séries conhecidas pelo público e disponíveis em
serviços de streaming. Mas tudo não passa de coincidências, afinal
as histórias da vida contemporânea se cruzam em variados formatos e
gêneros. Mike
Sullivan
consegue ter a mesma atenção do público de obras cinematográficas
com sua diversidade de temas sempre amparado pela finitude, essa
certeza mortal de todos nós. É como se tudo fosse um grande
entretenimento, ou às vezes somente a luta para evitar a dor, antes
da chegada final. Mas por que ler sobre a morte de uma maneira
fictícia, quando na vida real já a presenciamos tanto? Porque a
beleza da vida está, também, no fato de que “Um
dia você acorda e não tem mais vontade de morrer para esquecer”,
que é o final da obra narrada sem romantismo sobre a superação do
fim de um amor. Temos sim, com a literatura, mais vontade de viver
para sempre lembrar.
No
conto “A um passo da imortalidade”
é possível observar a destreza do autor em escolher tão bem as
falas de seus personagens, como também as quebras no tempo. Uma
jornalista, Tereza, tem um filho com o publisher
de uma revista, que não reconhece
como seu. Por ter passado parte de sua vida num convento, lembrou da
possibilidade de deixar, por um tempo indeterminado, seu filho, que
ela não sabia de todos os problemas que o aguardava, a ponto de ser
um segredo maior que uma gravidez indesejada. Então a Irmã
Catarina, responsável pelo convento, junto com o médico César
Medeiros salvam da morte o filho-segredo de Tereza, que vai
“solucionando” com a compra do silêncio de ambos. Como terminar
uma vida sem sentido?
Como o espaço do conto nem sempre
é longo, em “Seus olhos de
azeviche” há novamente uma ponte
entre dois tempos, o da infância do narrador e o presente, quando
estão adotando uma criança e buscando argumentos para ter êxito.
“Tem seis anos e não vê problema
em ter dois pais.” Porque só após
10 anos de casados, decidem entender o “sentido” de todo esse
processo, buscando seu “fim”, que seria trazer para casa Sara.
“Não fazíamos ideia de quão
penoso seria.” São histórias que
nos inquietam pela carga de emoção e sensibilidade, mas sem perder
a formalidade da língua e nem cansar pelo perfeccionismo ético
quase sempre como regra. O estupro de uma moça num morro do Rio e a
justiça local, o abandono de uma idosa pelo seu filho mas que, uma
vez narrada em primeira pessoa é possível perceber rastros de
lucidez e de resistência.
E como escreveu Carlos de Brito e Mello, na orelha do livro: “Pois Mike Sullivan tem a audácia e o talento de dizê-la. E mostra, com isso, que a morte, ao preceder o ato de criação, pode nos fazer acordar.” Desde Corpo sepulcro, já é perceptível o fascínio pela poética da morte em seus desdobramentos. Há também o Ninguém me ensinou a morrer, Atire a primeira pedra e O inferno é logo ali, títulos fortes que agregam um público leitor que acompanha a obra do escritor com muita vivacidade. Afinal é possível ser um escritor best-seller sem perder o enfoque na qualidade literária de sua obra. Com este livro, somos presenteados com a possibilidade de um passeio pela vida segurando nas mãos desse “temor universal” que nos ensina a cada dia o valor de estarmos vivos. Mas não apenas isso, tudo o que desencadeia essa certeza.
João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.