por Alexandra Vieira de
Almeida__
A tríplice chama da
mente, do corpo e da palavra em
Paganíssima Trindade, de Mô Ribeiro
O livro de poemas
Paganíssima trindade (Penalux, 2020), da poeta mineira Mô Ribeiro, apresenta
textos teóricos de escritores de peso que o balizam, enaltecendo os aspectos
mais importantes da obra. A apresentação é da escritora Mell Renault, que
explana sobre a “escrita confessional” de Ribeiro. O posfácio é do poeta,
escritor e editor, João Gomes, que enfatiza o caráter autobiográfico do
processo de escrita da autora, além da melancolia e tristeza, que perpassam
seus versos. As orelhas, da consagrada e premiada educadora e escritora Maria
Valéria Rezende, revelam, também, a dor aguda que trespassa os poemas de Mô,
“como diamantes lapidados à custa de duros golpes!”. Por fim, temos a quarta
capa da escritora Arlene Lopes, que mostra que, além da dor, Mônica Ribeiro
utiliza, como condimento, “pitadas de humor e sarcasmo”.
A palavra “paganismo”
vem do latim paganus, que significa “camponês”, “rústico”. Anteriormente, não
tinha um significado ligado à religiosidade, mas secular. Depois, foi
adquirindo outras conotações, se referindo àqueles que cultuam vários deuses e
a natureza. No poema que abre seu livro, “Ânima”, Mô Ribeiro diz: “As coisas
têm vida/se vida damos a elas”. Mas não é de uma simples simbiose entre o ser e
a natureza, o próprio e o alheio, que a comunicação se dá. É necessária uma
perspectivação, um adentrar o que está à volta, com o olhar magnético do
interior. Assim, o observador e a coisa observada se diferenciam. Com suas
analogias e diferenças, a partir da transformação da subjetividade, o real
ganha novos contornos. No fim do poema, encontramos o arremate, que revela a
perspectiva inaugural da mente ao demonstrar como o interior ressignifica o
exterior: “Para tanto/é preciso saber ouvir o dentro//As coisas não se ouvem de
fora”. E, assim, para além da religião, Mô Ribeiro utiliza o viés filosófico em
seus versos, para se fazer pensar sobre a dimensão entre o sujeito e o objeto.
Nesse sentido, podemos pensar na reflexão do filósofo Schopenhauer, em sua
principal obra filosófica, na qual disse que: “O mundo é a minha
representação”.
No poema “Pernas”,
seguindo sua obra de poesia, Mô Ribeiro quebra com a divisão tradicionalista
ocidental que separa a mente e o corpo. No campo da religião mais rígida,
percebemos sempre a divisão binária e estruturalista entre a alma e o corpo.
Mas, buscando uma perspectiva mais antiga, do universo mítico, que faz a junção
entre as esferas que foram seccionadas, pela elevação de elementos superiores
na nossa composição mais engessada, de uma cultura que divide, separa e
fragmenta tudo, Mô Ribeiro escreve: “As pernas da cabeça/bambas e trêmulas”. E
continua: “Machucaram-se/as pernas da cabeça/Foi ataque dos pensamentos:
chutes, rasteiras, chaves de perna”. Utilizando, aqui, uma linguagem
mente-corpo surrealista, ultrapassa as medidas da realidade, fazendo uma
parodização da frase emblemática do poeta romano Juvenal, que procurava a
virtude acima de tudo, quando disse: Mens sana in corpore sano (“uma mente sã
num corpo são”). A poeta mineira vem nos alertar sobre as dores, sofrimentos de
um corpo. Não é de um corpo sadio e uma mente sã que ela vem nos falar, como
consta na epígrafe de seu livro, da poeta e musicista norte-americana Patti
Smith: “Sempre trabalho em surtos”.
No poema “Sapiência”,
encontramos uma ironia ácida, com humor e sarcasmo, com relação ao nosso
suposto conhecimento de tudo, voltando-se para uma posição socrática do
não-saber, em que o indivíduo não pode ter o controle da totalidade do
conhecido, algo impossível. O saber é algo que só se construiria pela dúvida,
sem ter uma resposta definitiva. Ela finaliza o texto poético, com os seguintes
versos: “Como é/que ela vai saber?”.
No poema “Inverno”,
temos a comparação entre o corpo do ser e o corpo da natureza, em que partes do
corpo de uma menina interagem com o que está na grama, nas árvores,
metaforizando a natureza a partir da corporalidade da menina, para finalizar,
num tom poético e lírico, que não é apenas o corpo que se modifica, assim como
as estações da natureza, mas a mente, unindo assim, mais uma vez, em sua
temática especial: “corpo-mente-natureza”, sua “paganíssima trindade”: “A
menina olhou e viu o alçar voo/de uma passarada/densa como sua cabeça/E
aprendeu um novo som/E viu pela primeira vez/as cores do céu daquele fim de
tarde/Era inverno”. Assim, as percepções de uma linguagem corporal são
compreendidas pela transformação perfeita, que se dá entre o ser e o exterior,
na percepção primeva da menina com relação ao que está fora. Para isso, utiliza
a figura de linguagem da comparação, com o recurso à palavra “como” que se
repete, dialogando entre o interior-exterior da menina e o interior-exterior da
natureza.
Nesse sentido, temos, na
poética de Mô Ribeiro, o olhar inaugural da criança, em face do mundo adulto,
que pode muitas vezes ser embaçado pela bagagem cultural cristalizada. Dessa
forma, a poeta mineira dialoga com um dos heterônimos do poeta português
Fernando Pessoa, o mestre Alberto Caeiro, que procurou desvestir-se do olhar
muito intelectualizado, muito racional.
No poema “Samba”, Mô
Ribeiro joga com os sentidos das “pernas”, palavra recorrente no seu livro,
entre a parte e o todo: “Embalava todas as pernas/as todas que eram só duas/as
apenas duas que eram suas todas”. Aqui, ela brinca com a figura de linguagem da
metonímia, a partir da ressignificação linguística nos próprios versos com a
temática do samba, indicando movimento, transformação, que alça seu voo numa
bela metáfora-metamorfose, que faz uma ponte entre as figuras de linguagem, por
ora aqui trabalhadas, de forma potente e inventiva: “Quem sabe sambar
multiplica as pernas/e vira centopeia”.
No texto “Pó de
estrela”, a poeta faz uma personificação de um conceito abstrato “o tempo”, mas
que percebemos pelas transformações que ocorrem exteriormente, revelando-se,
assim, sua dimensão de concretude, de carnalidade com o real: “Na mobilidade do
tempo/caminha a passos largos/com os da velocidade da luz/aquela moça que/não
satisfeita com a finitude/de suas pernas/corre montada em pernas de pau/feitas
da luz de estrelas”. Através da temática do tempo, da finitude, Mô Ribeiro quer
alcançar o inatingível, montar o tempo e fazê-lo alçar a celeridade e
ultrapassagem das medidas, através do dom de criar, da invenção. Sua poesia,
assim, não é feita só de dor, mas da sua superação a partir do imaginário. E,
num outro poema, “Estátua de sal”, percebemos, novamente, a concretude do tempo
pela visão das coisas externas, se modificando: “O que ela foi/ficou
carimbado:/sombra móvel/no chão do tempo”. Mas, tudo pode permanecer imóvel e
estagnado, com a audácia de olhar para trás, como a mulher de Lot, em sua
esfera bíblica. Nesse aspecto, podemos interpretar tal visão da estátua de sal,
como a petrificação ao se olhar para o passado, deixando-se prender pelas
malhas de algo que já não existe mais, o tempo descosturado, o tempo
naufragado, e que não produz algo novo, só se for reinventado pelo véu do
presente que cobre o que ficou com o frescor da originalidade. A memória e o
esquecimento num processo de reconstrução, que se dá pela via criativa da poiesis.
Apesar de a trindade por
ora até aqui exposta, entre o corpo, a mente e a natureza, há uma tensão entre
as partes do corpo no poema “Maxilar”, que revelam a fragilidade-força de uma
corporeidade que abraça a vida e a morte, que aparecem, também, no poema
anterior “Ampulheta”, em que esse objeto serve como metáfora daquilo que corta,
sangra, que se quebra, face ao sofrimento do ser. Em “Maxilar”, a poeta
escreve: “Acordo: duros os ombros/bambos os dentes”. A fisiologia também está
presente no poema “Estrutura óssea”, em que corpo e mente são interligados pela
recomposição da linguagem, que é capaz de fazer a ponte entre elementos que
pareceriam opostos a um olhar menos atento: “– neuroses são cismas ósseas”.
No texto “Rotação”,
temos a equação simétrica “A Terra rodopia/A mente rodopia”, indicando que tudo
está em movimento, tanto na dimensão do sujeito, como aquilo que está no
cósmico. No vai e vem de mudanças, que vão do dia à noite, o ser humano passa
pelas agruras e pelos agrados da vida. Seus poemas também apresentam um corte
duro no real, transgredindo a existência no abrupto das palavras, que ferem e
chocam, como em “O dilema de Sophia”, em que ela diz: “O cutelo cortou o
pensamento ao meio”. Poema que dialoga com o filme, no qual o sombrio da escolha
entre os filhos é um corte abrupto no mundo das ideias, esquartejadas pela dor
e pelo sofrimento de uma mãe, que morre na noite da escolha. A secura da dor
traspassa os versos arenosos de Mô Ribeiro que compara a dor a uma “tempestade
de areia”.
Além das pernas, da
mente, do tempo, do corpo e da natureza, outra imagem recorrente na sua poesia
é a metáfora do espelho, como em vários de seus textos poéticos, exemplo de
“Espelho meu”, no qual a quebra de um espelho mostra que o ser não se perde no
fragmento, levando a voz lírica a refletir sobre sua própria existência em meio
à relação entre o eu e a imagem que se repete no espelho, que multiplica os eus
e os pedaços de seu ser nas partes inexploradas da vida: “Em vez de uma/agora
era muitas de si”. O poema também fala da dor que essa reflexão pode
encaminhar, quando o outro se reflete também no nosso ser, um espelho, que, se
cortante, pode ferir. O medo do corte que o alheio pode produzir no próprio. A
metáfora do espelho a faz “una” e “fragmentada”, na “dor e querência de
alívio”.
Enquanto vemos, no poema
“Condimentar”, as oposições entre o ácido e o cálido, em “Fiada”, temos as
analogias entre os mistérios do corpo e a sonoridade da música, num tom de
intenso lirismo: “Dedilho os fios de meu cabelo/Como se fossem cordas de
violão”. Assim, a cabeça, algo que está na mente, se conjuga pelo corpo nos
meandros do pensar e do sentir. E, numa comparação entre o vazio e a linguagem
em sua pausa-trava, a cabeça “faz greve de silêncio”. Para, no texto “Aluecer”,
utilizar o recurso estilístico da rima rica, entre “lua” e “atua”,
abrilhantando seus versos com as fases da lua, que revela sua beleza pela
transformação e inserção num todo maior: “Lua atriz mágica/no palco preto do
céu/movimenta-se e muda de cor/Atua”. No poema “Desdepressão”, cria um abismo
entre a imagem abrasadora do fogo e a depressão, metáfora da falta de energia e
vigor, que a chama quente impõe: “A desdepressão/é estar em brasa”. Nesse palco
da vida x morte, a poeta flutua no meio de emoções e pensamentos que o corpo
personifica em suas múltiplas máscaras de potência e impotência diante das
delícias e azedumes do mundo.
E, se o tempo conduz à
mudança, quando ele é associado a um fenômeno natural como a chuva, revela o
ritmo, a música em “Tempos chuvosos”, que, no poema, pode levar à vagareza de
um certo tipo de música ou à pressa de um outro tipo de tom, encerrando com o
verso; “O tempo muda sem avisar”. Dessa forma, Mô Ribeiro faz associações
singulares com relação a várias esferas, como o tempo, a chuva, a música, numa
trilogia encantadora. Mas o que é medido pelo correr ou vagar das horas, o
choro, em outro texto como “Deserto”, pode levar a pessoa para um processo de
“desertificação”, ou seja: “As lágrimas embargadas/doem mais que as que jorram”.
Num processo ambíguo de contenção-expansão da imagem, o ser pode atingir uma
aridez que provoca a dor mais profunda. E isso se espraia a partir de uma
estética minimalista, por vezes, na sua poesia, que “ainda anda sintética”
(“Breve”). E, por outras, em “Miúda”: “Escrevo em palavra/pequena/para o
subentendido/vazar/por entre/as frestas”. Em tais versos, podemos perceber os
signos do silêncio, do deserto e do vazio, a costurarem os tapetes das
palavras, no horizonte das entrelinhas e linhas dos versos, em sua dimensão
metalinguística.
No poema-título,
“Paganíssima trindade”, fala a partir de uma parte do corpo, servindo o texto
como ponte entre o pensamento e o corpo através da palavra. Eis aqui a trindade
pagã, que é elevada pela voz superlativa, pela simultaneidade, que não é a
trindade da crença em deuses, mas pela linguagem corporal-mental que se cria
pelo ato da escrita. Portanto, pelo poder da palavra, pela trama dos fios
linguísticos, se intermedeia, se tece a urdidura entre corpo e mente. Numa tríade,
ela une “pensamento”, “dedos” e “palavra”, que desafia o silêncio e seu estágio
de greve temporária. No texto “Surdez”, mostra que a hora só se completa nos
seus intervalos entre aquilo que “dá um berro”, mas nos “ensurdece com sua
passagem”. E, nos dois olhares, há uma visão dupla, que acolhe, no desenhar”, o
“vento” que “desenha a nuvem”, e a “mente”, que transforma o desenho”. E, na
sua dor, sofrimento atroz, que abarca tudo à sua volta, pois “um dia inundo o
mundo”. Numa bela hiperbolização da imagem, Mô Ribeiro ainda diz que tal
lacrimejar ainda não é suficiente para suas dores e para o mundo, pois sua dor
é plena de sal, uma vez que feita de “água salgada”, “haverá sede”. O dentro e
o fora, novamente, interagem nas dinâmicas da mente e da matéria, do próprio e
do alheio, pois o interior do ser se compara ao espaço interno do lar, as duas
casas construídas pelo artefato da linguagem da poeta mineira: “As paredes/de
alvenaria ou de carne/escondem os seres”.
Numa linguagem
sarcástica, profana, subvertendo o dom da receita para seu aspecto etéreo e
celeste, no seu gosto de prazer mundano, Ribeiro utiliza de palavras contrárias
à religiosidade cristã, e com ingredientes diabólicos e picantes: “inferno,
diabo, enxofre, pimentas, olhos de serpente”, conduzindo, no final, a uma
“crocância garantida”. Tirando a dor da poesia em seu aspecto de lástima e
depressão, para uma via prazerosa, nos fazendo lembrar das artes mágicas das
bruxas e feiticeiras, que não levariam à morte e ao mal, mas à celebração do prazer.
No poema “Corpos
celestes”, novamente, volta-se para o imaginário do espelho, criando analogias
e diferenças entre o próximo e o longínquo, a terra e o celeste, em que o sol
iluminaria a lua com brandura. Mas que, numa expressão de desassossego e decepção,
vê algo incontornável para o que ocorre na existência mais próxima aos seus
olhos: “Pena o espelho não ser corpo celeste/Ela se olharia de modo menos
agreste”. Portanto, a realidade é mais dura, enredada pelas palavras, a
vivência do ser e dos outros é simbolizada pelo páthos, palavra que Mô Ribeiro
utiliza num de seus poemas. Além dessas comparações e oposições, a poeta ainda
trabalha, de forma inventiva, as inversões e reviravoltas, em poemas como
“Conflito”: “O espelho sou eu invertida/vertida no que penso que sou”;
“Entroncamento”: “Estas letras/sempre as mesmas:/grudadas, farpadas, furadas,
arranhadas”. Isso se traduz pelos jogos de espelhos, imagem plena de
contradições, em que as percepções são variadas. Os pontos de vista conduzem às
paixões mais diversas, refletindo-se no corpo e na mente. Desde o prazer à dor,
perpassando pela miséria, como no texto “Ratos”, de teor social, levando ao
símbolo do rato como aquele que rói o tempo e nos causa, ao mesmo tempo,
repugnância, dando uma reviravolta nos versos finais: “Os ricos roem as vidas
dos pobres/mas quem causa nojo é o rato”. Mas, num processo comparativo, quem,
na verdade, é o rato é o opressor, voltando-se para a metáfora inicial da morte
e da degeneração da sociedade.
Além dessas temáticas muito
variadas, mas que se relacionam criativamente pela trama textual dos versos de
Mô Ribeiro, encontramos referências, num processo de releitura, à Pasárgada e à
pedra no caminho, Bandeira e Drummond, numa dupla via intertextual. E, no poema
que encerra o livro, ela escreve: “eu queria certo dia/escrever um grande
poema/e não falo do tamanho/ mas da lida com o tema.”. Aqui, num processo de
autoironia, apresenta os contrastes entre quantidade e qualidade, perfazendo o
caminho dos poetas que sabem refletir sobre sua própria poesia e perceber os
erros e acertos de todo escritor em face do amadurecimento. Por fim, podemos
dizer que sua poética, de um modo geral, atinge através dos temas, analogias,
comparações, contrastes, figuras de linguagem, relações semióticas entre corpo,
mente, linguagem, tempo, desejo e dor; o vigor necessário para progressos e
avanços cada vez maiores. Que sua poesia flua como um rio na mente-corpo de
seus leitores e críticos até atingir o mar da expansão e da profundidade
gradativamente mais literário e maduro.
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