por João Gomes__
Escrever
é firmar no tempo aquilo que lembramos, sabemos, descobrimos,
sentimos. A fotografia guarda o cenário de um instante, enquanto a
escrita guarda o estilo de narrativa peculiar de cada autor. No livro
Reminiscências,
de Rebeca Gadelha, publicado pelo selo editorial Mirada, a lembrança
narrada com detalhe e sinceridade faz jus ao título. Não são
exatamente, ou apenas, recordações pessoais, mas sim o imaginário
daqueles que lhe antecederam. São histórias familiares tecidas e
retorcidas, que vão de boca em boca, mas que, quando chegam na
página, se estabelecem à sua maneira.
Como um aviso
sincero: “Isto é o que sei (e não é muito)”. Porque ter esse
interesse por nossos bisavós não é, talvez, algo que se recorra
quando mal sabemos a idade exata de nossos pais. Mas se engana quem
acredita que é justo a reunião que faz desta família, da autora
Rebeca, algo que está tão unido a ponto de não haver dissociações:
“a linguagem falhou em descrever e o sangue falhou em unir”. De
seu avô, a quem a perda assola como lembrança, o que fica são
“verdades dilaceradas que dizia sobre si”, as poesias que lhe
recitava e os segredos que sabia guardar. Esses detalhes de nossa
criação familiar são decisivos em nossa existência, mas os
traumas dessa fase são tão marcantes quanto as cicatrizes das
quedas.
Certamente não há vitimismo na escrita destas
memórias, nem culpa direcionada a ninguém. “Quando criança,
costumava dizer: meu pai caiu no mar e um navio passou por cima”.
Sim, a ausência se faz presente até uma repentina visita dele
anunciada por sua mãe. Tamanha a impermanência, o que fica é a
“nostalgia pelo que não existia”. E, claro, como algo que tenta
se comprar sem êxito, o tempo, de quem somos filhos e jamais somos
esquecidos. Com sua prosa, Rebeca Gadelha nos dá pistas do que seria
sua família, sem sobrecarregar ninguém, apenas suavizando todas as
lembranças com fotografias retiradas de álbuns acessados na
memória.
É
da inquietude do esquecimento que partem estas lembranças. Diferente
de seu pai, que nega o próprio passado, a autora quer lembrar
sempre, “conhecer a verdade que me foi negada, preencher lacunas
que não sei como e não sei mais nem com que utilidade.” Diante da
persistência de encarar o seu passado, fica a dúvida: “Se as
histórias forem contadas haverá, enfim, paz?”. Talvez a resposta
esteja no silêncio introspectivo das poesias da poeta americana
Emily Dickinson (1830-1886), que como as fotografias reproduzidas na
obra, conectam os textos num diálogo por meio de tradução livre:
“Não vem da morte o sofrimento/é a vida a nossa dor”.
Não
saber exatamente o que aconteceu não é uma falha ou falta de apuro,
se lidar com a verdade é o que lhe interessa e não fabular suas
próprias lembranças. Porque “uma vez que as pessoas que podem
separar os fatos da ficção já se foram” e, a respeito do que foi
inventado, “o motivo está perdido para sempre, enterrado junto dos
segredos”, há a consciência direta em meio ao silêncio. Dessa
ausência, junto a toda poética da narrativa, a epígrafe não
poderia ser diferente: “E quem, morrendo no mar, pode ser levado
num carro fúnebre?”, do escritor estadunidense Herman Melville.
Porque aquilo que afundou com seu próprio peso, Rebeca, está cada
vez mais inacessível nas profundezas do oceano. E esta rede, ou
anzol direto, é o que sua literatura deseja alcançar.
Reminiscências é uma verdadeiro monólogo interior, que feito de interrogações também não deseja responder nada, apesar da imensa vontade de poder apurar os fatos. Como refúgio de uma sanidade mental, uma vez que a autora fora criada por “mulheres loucas, daquelas que fazem os médicos respirarem fundo”, resta percorrer a vida e “quedar o corpo em alguma paragem desconhecida, algum canto que me receba com a sensação de retorno”, como deseja em certa parte. Porque essas lembranças são a possibilidade de atracar num porto capaz de despertar a vontade de ser continuidade e voz diante do silêncio de nossa própria história. É com lucidez e, claro, sensibilidade artística de sobra, que estas reminiscências chegam ao leitor capaz de ouvir o salto dado por uma jovem multiartista atenta ao seu próprio pertencimento.
João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.