Resenharia: Estão matando os meninos, de Raimundo Carrero

por Iaranda Barbosa__


Raimundo Carrero é um escritor que deixa para o mundo não obras, mas sim cartas cujos conteúdos são manifestos, olhares sobre a humanidade, indignação com as mazelas da sociedade e empatia para com a dor alheia. Em Estão matando os meninos, Carrero deixa três cartas que dividem o livro: “Quarta carta ao mundo” (composta por 4 contos), “Quinta carta ao mundo” (com 2 contos) e “Sexta carta ao mundo” (8 contos). Nelas o autor associa elementos mnemônicos biográficos – tal qual a familiar e recorrente palavra “Arcassanta”, que, pode-se dizer, dá liga aos contos, pois nomeia uma estação, um prédio, uma rua, uma cidade, um país – a fatos contemporâneos relacionados à violência que mata crianças através de balas perdidas seja na escola e/ou na saída da aula de balé, seja por meio de ausência de compaixão pela vida humana, seja, ainda, pela fome. Os referenciais empíricos podem ser facilmente identificados devido tanto às temáticas apresentadas quanto às expressões utilizadas, tais como o cruel e, infelizmente, conhecido ‘e daí?’. Escritor plenamente antenado com as angústias humanas, Carrero incide luz também sobre outro mal, um inimigo invisível e misterioso que nos isolou e que nos faz refletir tal qual um dos seus personagens: “[...] Ficar em casa é isso, morrer seco?”.

Dentre os contos pertencentes ao livro, destaco “O artesão”, “Céu de balas” e “Paixão e rejeição”. O primeiro – construído sob a técnica do in media res – narra a angústia de Ismael devido à perda do filho Jorge, vítima de uma “bala perdida” ao sair da escola, e está dividido em 3 partes: “O artesão”, cujo foco narrativo é um diálogo no qual o protagonista conta a um conhecido que o filho foi “[...] Rasgado de balas de rifle [...]” na saída da escola; “Matrícula” – composta por cenas de lembranças entre pai e filho que deslizam no cronotopo, voltam ao momento do diálogo e seguem com a narrativa até o desfecho –, traz reflexões provocativas e incômodas ao relacionar a assinatura da matrícula da criança na escola à autorização da sentença de morte; e “Corpo”, derradeira parte, destinada não apenas ao reconhecimento do corpo do filho, mas também a mais violência, sobretudo à policial, agora, de forma explícita, ao invés da relacionada à fatalidade.

Céu de balas” inicia nos momentos finais de uma cerimônia de casamento, quando os recém-casados precisam sair às pressas, devido a um tiroteio. A narrativa, toda em terceira pessoa, apresenta diálogos psicológicos, discurso indireto livre e fluxos de consciência. As cenas se alternam entre o espaço do quarto de motel onde o casal passa a noite de núpcias, ao som das “[...] balas estalando nos telhados [...]” e os cenários trazidos pelas recordações da noiva. O movimento sincopado da leitura (constituído pelo uso da pontuação, que ora produz períodos longos ora períodos curtos, e por gerúndios, utilizados, inclusive, para trazer leveza a muitas palavras ásperas), a sonoridade das palavras (bala, bolo, beijo, brincadeira) e a construção de orações que se assemelham a versos (“Conheceram a solidão da ausência, a festa angustiante dos motéis e o silêncio da saudade, para enfim unirem os corpos até que a morte os separe”) preenche o conto de ritmo e poesia, transformando-o, portanto, em um RAP. Logo, esta obra de Carrero é uma experiência híbrida na qual a musicalidade é exasperada por meio da harmonia desses versos dispostos em forma de parágrafos.

[...] Era um quarto pequeno, sombrio e silencioso. E mesmo assim, um quarto acolhedor. Acolhedor no seu modo de enfrentar a pobreza, com dias de miséria, a dor da miséria se espalhando por toda a casa, sem comida, sem bebida, sem roupas”. Assim inicia “Paixão e rejeição”, um conto repleto de elementos semióticos, sobretudo, pelo fato de a matriarca arrastar o chinelo como forma de avisar à família que naquele dia não haveria comida em casa, fazendo com quem as pessoas se dirigissem ao referido quarto para chorar. A voz narrativa em terceira pessoa, que se alterna com a das personagens, apresenta diversas situações provocadas pela fome, em especial, referentes às vivenciadas pela menina Alecrim. As transições das cenas são construídas de forma sutil, bem elaborada e, sobretudo, poética, por meio dos deslocamentos do foco narrativo e dos deslizes entre tempo e espaço.

Além das técnicas narrativas já evidenciadas, Estão matando os meninos traz em seus contos poéticos diálogos construídos da forma tradicional, com uso de travessões, outros com aspas e outros sem marcação alguma, contudo, o leitor sabe perfeitamente quem assume o turno, a vez da fala. Nesse sentido, os pensamentos dos personagens em diversos momentos aparecem imbricados à voz narrativa. O momento atual e as recordações transitam em uma atmosfera, simultaneamente densa e leve, por meio de uma dor alheia sentida, ficcionalizada e compartilhada.

Literal, subliminar ou simbolicamente, a referida obra traz as diversas formas de matar os meninos. Dessa maneira, Carrero, através das técnicas, da utilização de símbolos e da semiótica, desperta no leitor a sinestesia e a cinestesia e encontra, conforme o próprio autor costuma dizer, o sentimento da frase.




 


Raimundo Carrero - Jornalista e escritor brasileiro, atuou no Diário de Pernambuco, com vários cargos como o de crítico literário e editor-chefe da redação. Em 1970, no Movimento Armorial, participou ativamente como Contista e Romancista. Além de atuar como assessor de imprensa da Fundação Joaquim Nabuco, foi presidente da Fundarpe—Fundação de Patrimônio Artístico e Histórico de Pernambuco, integrou o conselho Municipal de Cultura do Recife e o movimento de cultura popular por oito anos. Eleito em 2004 para a cadeira 3 da Academia Pernambucana de Letras, suas obras são premiadas e reconhecidas por todo país, como o livro Somos pedras que se consomem incluído entre dez melhores livros de 1995. Escreveu cerca de 14 obras que lhe renderam prêmios literários relevantes, como os prêmios José Condé, Governo de Pernambuco (1984), Lucilo Varejão, prefeitura do Recife (1986), Revelação Nacional, Rio Grande do Sul (1987), Troféu APCA de Melhor Romancista do Ano, Prêmio Machado de Assis (1995), Prêmio São Paulo de Literatura – Melhor Livro do Ano (2010) e vencedor pela segunda vez do Troféu APCA como Melhor Romancista do ano (2015). Desde 1990, Carrero ministra a própria Oficina de Criação Literária, que revelou escritores nacionalmente conhecidos e premiados.



Iaranda Barbosa
, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (Selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.