Resenharia: Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac

 

por Iaranda Barbosa




A quem interessam as memórias de uma travesti? Esse ser que habita os polos do abominável ou do caricato tem algo de interessante para contar que não seja a promiscuidade de toda uma vida? São questionamentos como esses que regem a sociedade na qual nascemos e nos criamos e que condenam as travestis à marginalização. Contra todo esse discurso e, vários outros que muitas vezes não nos damos conta que reproduzimos, aparece Luísa Marilac e sua biografia Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac. Poeticamente produzida através das suas memórias e da escrita sensível da jornalista Nana Queiroz, a obra traz passagens que nos fazem levitar e em seguida nos atiram ao chão, faz com que saiamos da nossa zona de conforto, provoca em nós a sensação de que ainda reproduzimos conceitos retrógrados e engessados e pede a gritos que nos enxerguemos enquanto homofóbicos em desconstrução.

[...] é que às travestis não é dado o dia. Como os vampiros, só somos aceitas pelo público depois que a luz se vai. Se desafiamos a regra em busca do sol, nos castigam com olhos pontiagudos que chegam feito facadas e risos redondos que nos cercam até sufocar”. O trecho confirma não apenas as reflexões mencionadas início desta resenha, mas também a violência que o corpo da travesti causa aos olhos das ‘pessoas de bem’ e que lhe é devolvida em forma de xingamentos, agressões de todos os tipos, assassinatos e/ou indução ao suicídio. É nesse universo ignorado, porém evidente e cotidiano, que mergulhamos quando abrimos as primeiras páginas da biografia de Marilac. Os relacionamentos abusivos, o movimentado tráfico sexual da ‘tríplice aliança’ entre Brasil, Itália e Espanha, as fantasias sexuais masculinas que transitam em busca do exótico para saciar os seus fetiches e a hipocrisia da humanidade compõem essas memórias que nos fazem refletir sobre o quão aprisionados estamos em nosso mundo heteronormativo e cristão.

Marilac denuncia a realidade das travestis sem apelar para o vitimismo ou para o sensacionalismo. Ela traz em seu livro dados e conceitos embasados em pesquisas acadêmicas realizadas por pesquisadoras de universidades nacionais e estrangeiras, assim como por órgãos consolidados tal qual o Grupo Gay da Bahia, a fim de comprovar (para os mais céticos, digamos assim) que as opiniões ali expostas não são frutos de ‘achismos’ ou de fatos isolados. As experiências relatadas confirmam suspeitas, desmistificam pensamentos e chamam a atenção para a falta de preparo das pessoas quando se deparam com uma sexualidade aflorada ainda na infância e posta em prática, em não raros casos, dentro da escola, implicando, portanto, a urgência de uma educação sexual nas instituições de ensino já nos primeiros anos.

Apesar de trazer em seu bojo tantas temáticas pesadas, Eu, travesti é um livro que apresenta também histórias dignas de boas gargalhadas, pois, apesar dos relatos costurados com a linha e a agulha do sofrimento, Marilac consegue enxergar humor em algumas experiências e retirar delas sempre algo positivo. A leveza com a qual as vivências são contadas injeta, sutilmente, doses de autorreconhecimento de privilégios e ademais nos leva a refletir sobre nós mesmos enquanto seres humanos e o quão desumanos somos quando o outro não se encaixa no modelo, nos padrões criados tanto pela sociedade quanto dentro dos lares.

Viscerais, assim defino esses relatos. Aprendizado, assim conceituo o que a leitura deixa para aqueles, livres de toda e qualquer barreira, que se dispõem a enfrentá-la. Necessário, assim caracterizo este livro cuja autora segue resistindo às intempéries da vida, contrariando estatísticas e nos ensinando sobre o intercruzamento da diversidade de mundos pertencentes a um único universo.





 


Luísa Marilac
é uma youtuber, comunicadora escritora e ativista LGBT brasileira.







Iaranda Barbosa
, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (Selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.