por Iaranda Barbosa__
O passado é noite. Assim se intitula o livro de poemas de Marilena de Castro. Pautada na mitologia grega das Moiras, a poeta já no início da obra apresenta ao leitor, ou melhor, ao exegeta, o leitmotiv que dança, brinca em meio aos versos que tanto podem ser lidos como elementos que compõem poemas curtos, independentes, quanto como pertencentes a um único poema, longo, tal qual uma ode ou uma epopeia, indicando canto e viagem, respectivamente.
Três são as moiras que elaboram, tecem e cortam o fio da vida, da Roda da Fortuna. Três são as partes do livro e, em cada uma delas, um eu lírico extremamente erudito narra experiências míticas e metafísicas e nos remete a interpretar a existência de três vozes poéticas advindas de cada uma das irmãs, narrando e descrevendo intelectual e emocionalmente vivências de um percurso através do mundo e da natureza. Assim, podemos realizar uma leitura considerando que cada parte do livro corresponde à função de cada uma das deusas: Cloto, que desde o nascimento segura o fuso e tece o fio da vida; Laquésis, que determina o tamanho desse fio a partir das atribuições que se ganha em vida; e Atropos, que corta o fio da vida.
Os versos de Marilena de Castro transitam, resvalam, tocam e mergulham nas poesias creacionista, de Vicente Huidobro, fantástica, de Óscar Hahn, surrealista, de Marosa de Giorgio, e visionária, de Luis Bravo, respectivamente. Considero O passado é noite, mais especificamente, como um livro de poemas visionários, ou seja, um tipo de poesia que está localizada entre o surrealismo e o fantástico. Logo, as imagens formadas a partir de jogos de palavras, paranomásias, paralelismos semânticos, oximoros, símbolos, alegorias e escolhas lexicais que remetem ao tempo, à vida e, claro, às Moiras (areia, teia, giro, rodopio, carrossel, partir, hiato, cortar, quebrar, pendurado), levam o exegeta a percorrer os diversos cenários através de uma poesia de caráter narrativo que ora possui uma linearidade, ora refuta a referência com o mundo empírico:
depois do sono
a morte súbita dos sonhos
fugi do sol com vergonha da nudez
a buscar refúgio da noite
conheci as tecelãs do destino
cobri a nudez com as cores da terra
inventei o sonho do meio-dia
para não me perder nas sombras
escutei as falas mudas do fogo
enquanto tecia
tecia vida
cortava morte
tecia morte
cortava vida
tecia
O caráter onírico cria a possibilidade de que, se os versos de Marilena de Castro fossem pintados sobre uma tela, o resultado seria um quadro surrealista. Esse movimento de vanguarda que desestabiliza nossa noção de tempo, espaço, racionalidade, sonho e inconsciente, apresenta-se sorrateiramente em O passado é noite. Ademais, a poeta nos atira no abismo da incerteza de uma voz poética que se alterna entre primeira, segunda e terceira pessoa. Assim, Marilena de Castro traz um poema marcado por um eu lírico fragmentado, assim como fragmentado é o mundo e tudo o que nele existe:
parti em pedaços
os retratos
rasguei os olhos de João
a boca e o ventre de Maria
o peito e as pernas de Antonio
cortei os braços de José
fiz quebra cabeça de antigos retratos
colo os pedaços dilacerados
tentando adivinhar
que morte me servem
a cada dia
A imagens, assim como o tempo e a vida, são fugazes. Não as compreendemos bem, tentamos não pensar na morte e, quando pensamos, tentamos escolher qual seria a mais conveniente, na incerteza do momento, do dia ou da noite, sem estarmos nunca preparados para ela. Marilena de Castro, em O passado é noite, recorre à mitologia grega para nos dizer que a Roda gira e, tal qual os seus versos dispostos alternadamente mais acima e mais abaixo nas páginas, estamos, ora no topo, ora no fundo, ora na Fortuna, ora no Infortúnio.
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Marilena de Castro é autora do livro “A outra face”. Participou das antologias “Retratos: a poesia feminina contemporânea em Pernambuco” e “Pernambuco, terra da poesia”. Publicou em O passado é noite pela Editora Mondrongo.
Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (Selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.