por Adriana Minervina da Silva____
O Recife de 1850, com suas contradições
políticas e sociais já anunciadas, é palco para a emocionante história de
Felipe Alencar Paes, poeta fracassado na vida e em seus versos, e a filósofa de
formação Leila Marinho Nunes Gomes de Sá. Em uma narrativa fluida e envolvente,
a autora Iaranda Barbosa nos apresenta uma novela com fortes referências
históricas e culturais que dão riqueza ao texto e vão nos revelando as diversas
faces dessa obra.
Em Salomé, temos a cidade do
Recife como pano de fundo de todos os acontecimentos narrados. É possível fazer
um passeio em meio a tantos detalhes, ruas, ambientes que recordam a jovem
cidade sem modéstia, “que almejava ser Paris”, “imitando a aristocracia, que
imitava a França” (BARBOSA, 2020, p. 9). Por vezes, Recife é inquieta, misteriosa,
mas cheia de beleza e encantos muito bem explorados pela autora em uma mescla
de realidade, fantasia e memória histórica resgatada na obra.
O desenrolar da narrativa nos desperta
distintas emoções, é possível indignar-se com as falas de alguns personagens,
preocupar-se com a saúde de Leila, mas também emocionar-se à medida em que
conhecemos mais sobre a jovem protagonista e seus ideais. Por sua formação, Leila
é uma mulher que nutre em si ideias de liberdade para as mulheres, sendo
incompreendida em sua época. Em sua intelectualidade, ela possui um olhar
sensível às situações sociais que a rodeiam e uma formação política crítica,
capaz de discutir sobre diversos assuntos, entre eles, política, economia e
artes.
Leila transita entre mundos distintos, como
o universo aristocrático de sua posição social, e a realidade de exploração que
viviam os escravizados da época, movendo seus esforços para ajudar alguns deles
a conseguir a liberdade. Com isso, ela choca muitas pessoas a sua volta, que
não compreendem as suas atitudes em defesa de tais ideias abolicionistas. Ela
apresenta-se como uma mulher forte, decidida, dona das próprias vontades e tem
sangue guerreiro correndo em suas veias já que “descende de uma das líderes das
heroínas de Tejucupapo” (BARBOSA, 2020, p. 25) utiliza sua experiência de mundo
aguçada para conseguir obter o que deseja de modo digno e autêntico.
Já Felipe Alencar Paes é um incansável
boêmio em busca de inspiração para seus versos. Na sua incapacidade de escrever
sobre outros temas, elege a temática do sofrimento amoroso como a única digna
de obter espaço em sua obra. Para tanto, busca uma mulher que desperte nele esse
sentimento para que pudesse, por fim, manipular tais emoções e escrevê-las. A
dama escolhida por Felipe para inspirá-lo em seu processo criativo foi a jovem
Leila.
Contudo Felipe nutre em si o desejo de
escrita de um tema ainda mais sombrio do que apenas a “coita de amor”, ele
acredita que para obter sucesso em seus escritos, precisaria vivenciar uma dor
ainda mais forte e profunda: a morte da mulher amada. Esse intuito move a vida
do rapaz que parece não ter outra ocupação, pois vive dos lucros da fortuna do
pai. Ao aproximar-se de Leila, ele julga que seria ela uma “presa fácil”, pois na
realidade de vida das mulheres da época, prescrevia-se uma forte submissão da
mulher a figuras masculinas. Mas Felipe, inocente, não sabia que Leila era
mestra na arte de usar situações sociais adversas a seu favor.
O
final da obra nos surpreende, por ver como os acontecimentos se desenrolam e também
pelo destino dado aos protagonistas, o que nos revela um posicionamento político
e cultural muito específico da autora em favor das mulheres. A obra desperta
nossos sentidos pela leveza da narrativa e também pelas fortes referências a
outros gêneros artísticos como a música, a dança, a pintura e também a
literatura, com a presença de trechos de poesias. Por isso, reconhecemos em
Salomé o fruto de uma profunda pesquisa historiográfica e de uma elaboração
ficcional expressiva da autora, que certamente traz muito de si nessa obra,
tanto de suas leituras acadêmicas, como de suas experiências pessoais.
Salomé é uma leitura indicada para um mergulho
profundo em uma Recife de múltiplas compreensões, para ampliar nossos olhares
sobre a luta abolicionista e em favor da liberdade das mulheres. A representação
de Leila, nova Salomé, nessa obra reafirma a necessidade de um debate importante
sobre a vida (e trabalho) das mulheres. Dedicada ao menino Miguel, contendo, ao
início, uma citação de Marielle Franco, Salomé deixa sua marca nas letras
pernambucanas, apontando para um futuro ainda sonhado, mas escrito e esperado
para além da literatura. Leila
é para nós uma vivência literária possível e também uma grande inspiração.
Leitura recomendada.
Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.
Adriana Minervina da Silva é graduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestra em Teoria da Literatura e doutoranda também em Teoria pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma universidade. Atualmente é professora de Língua Portuguesa e pesquisa sobre a construção da subjetividade da mulher negra na literatura.