De como meninas guerreiras contaram heroínas | Luciana Lyra.

 por Iaranda Barbosa __





“De como meninas guerreiras contaram heroínas”. O título, a priori, causa certo estranhamento, levando-nos a pensar em alguma inversão sintática ou na supressão de alguns termos. Ao mesmo tempo, o jogo sintático--semântico apresentado por Luciana Lyra anuncia um acontecimento grandioso. Ele nos será narrado através de uma linguagem na qual prosa, poesia, cordel e teatro estão imbricados, trazendo em seu bojo um conjunto de variações linguísticas (Dei a ela um chá, que vai ajudá a melhorá, mas pra curá, a menina vai ter quer ver a Mãe d’Água. Só ela pode livrá essa peste do corpo de Nanã. Só as pérola da natureza pode afastá as bolha do corpo) e escolhas lexicais (cuia, quenga de coco, cabaça) que remetem a um ambiente híbrido, miscigenado, sincrético. Luciana Lyra nos coloca diante de um acontecimento que foi praticamente apagado dos livros de história, mas, que pela insistência e força de mulheres guerreiras, se mantém vivo na memória coletiva através da narrativa oral e do teatro: o episódio das heroínas de Tejucupapo.


            Cuidadosamente trabalhada com ilustrações bastante próximas da xilogravura e com uma arte tipográfica que remete ao movimento armorial, “De como meninas guerreiras contaram heroínas” é uma narrativa que aborda, sobretudo, o feminismo, o sagrado, a ancestralidade, a menstruação, as cicatrizes que as mulheres carregam dentro e fora de si, a importância da união entre elas, os medos e as angústias. As personagens femininas ocupam espaços de liderança, como no caso da pajoa, por exemplo, e legitimam o discurso de que as mulheres são capazes de produzir mudanças radicais e deixar raízes profundas que se perpetuam e fazem crescer novas árvores:

 

– Às vezes eu me olho no espelho e vejo minha mãe, minha avó, me sinto como uma árvore, me sinto raiz saindo da terra. Madrinha, tenho medo de brotar flor, virar lua, de virar cobra.

– Tenha medo não, mô fio! Isso é uma sabedoria que nos deixa juntas, fêmeas. É poder de santo, de anjo, de terra. Num pode sufocá esse poder, senão fica doente, mô fio! Isso faz de tu mais linda, de lindeza sagrada!


            Cinco são as meninas protagonistas que movimentam a aventura de uma viagem para Tejucupapo, a fim de conhecer a história de heroínas que expulsaram os holandeses invasores, e conseguirem fazer uma peça de teatro para a escola. Elas nos levam a percorrer lugares e sua etimologia, a nos conscientizar das questões ambientais, a conhecer vegetações, a viajar pelas mitologias grega, africana e autóctone, a pensar sobre o significado da palavra “batalha” e a mergulhar em paraísos subaquáticos e terrestres onde encontramos seres encantados, metamórficos e quiméricos.


Por meio dessa obra transdisciplinar, o folclore, a filosofia e a história estão ricamente representados pelas danças e comidas típicas, pelos mitos, pelas entidades, pelos seres espirituais que não morrem, mas sim aparecem e desaparecem, pelos espíritos, pelos caboclos, pelo resgate de causos e histórias e, principalmente, por uma cultura popular que batalha para que as criaturas que fazem parte da natureza, do pensamento místico e mítico, possam sobreviver ao advento das tecnologias e da falta de interesse das novas gerações pelos antepassados.


O livro, que possui uma extensão considerável, com 173 páginas, também apresenta hiperlinks com a história de outras mulheres ao trazer, por exemplo, a presença de uma menina judia, descendente de sobreviventes de guerra. Nesse sentido, Luciana Lyra resgata costumes, crenças locais e sabedoria popular através de um texto centrado em mulheres barqueiras, trabalhadoras, líderes, mães, guerreiras e deusas que evocam o sincretismo religioso (originalmente forçado, como um instinto de sobrevivência e única chance de manter-se vivo até hoje), utilizam as rezas para curar as enfermidades, recorrem ao poder das ervas, dançam e têm revelações através de sonhos.


            Ademais, o apelo visual do livro, sobretudo com as cores fortes, também está voltado para as culturas locais, ao trazer em sutis detalhes diversas marcas das vestimentas e dos acessórios utilizados pelas comunidades ribeirinhas e não ribeirinhas ali existentes. As entradas de cada capítulo possuem nas extremidades superior e inferior desenhos que se assemelham a retalhos e ao tecido de xita. O nome dos capítulos está gravado com uma tipologia armorial e a numeração está em algarismos romanos cujo interior apresenta pequenas plantas que saem de dentro deles e trechos de textos tal como jornais tal como livros, remetendo aos galhos dessas árvores ancestrais e à importância do registro da história dessas mulheres, respectivamente.


            Somos brindados no final do livro com dois glossários. O primeiro apresenta nomes de Deusas, Guerreiras e Heroínas de todos os tempos. Nele podemos encontrar personalidades humanas e divinas, tais como Afrodite, Iansã, Branca Dias, Lia de Itamaracá e Luzia Maria da Silva, a idealizadora do teatro criado há mais de 20 anos para contar a história das heroínas de Tejucupapo. O segundo glossário é o de Palavras e Expressões Muito Estranhas, destinado a explicar tanto algumas variações linguísticas quanto mitos e lendas presentes na obra.


            Embora “De como meninas guerreiras contaram heroínas” esteja classificado como infanto-juvenil e isso nos leve a considerá-lo no mesmo nível de uma fábula ou conto de fadas – o que academicamente falando seria rotulá--lo como pertencente aos moldes do maravilhoso puro, como diria Todorov –, a obra de Luciana Lyra é um belíssimo exemplar do realismo maravilhoso. Nesse sentido, Tejucupapo representa uma nova Macondo que comporta dentro de si uma realidade reconhecível e verossímil associada a cosmovisões, à encantaria e à religiosidade e nos permite compreender a formação cultural afro-ameríndia.

 



 


Luciana Lyra é nascida em Recife, mestre e doutora em Artes Cênicas dela Universidade Estadual de Campinas, especialista em Ensino da História das Artes e da Religião, pela UFRPE e graduada em Artes Cênicas pela UFPE. É atriz, dramaturga e diretora de teatro. Trabalhou durante vários anos com crianças e adolescentes ministrando aulas de teatro em artes em geral. Desde 2003 vive em SP integrando a Companhia Teatral Os Fofos Encenam e mantém a própria companhia artística, a Duas de Criação. “De como meninas guerreiras contaram heroínas” é o seu primeiro livro infanto-juvenil. Em 2010, publicou em livro a peça de teatro “Guerreiras”, de sua autoria. Está sempre a catar palavras e histórias para contar (Texto extraído e adaptado da orelha do livro “De como meninas guerreiras contaram heroínas”).

 


Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (Selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.