por Manu Bezerra de Melo__
Tinha
um gato às mãos que miava sem parar. Tentava acalmá-lo sem sucesso.
Repentinamente, o felino avança em direção ao seu peito, adentra seu corpo,
possui-o, acomoda-se no seu interior de modo que ela começa a miar. Tenta dizer
umas palavras, soa engasgada. Angustiada, rebate-se e acorda deitada de bruços
na cama, gofa uma água azeda quase sufocada. A porta está fechada, é o gato,
quer sair. Tem fome. Mia alto enquanto observa ela se levantar lentamente,
quase tonta. Abre a porta, volta pra cama, apoia-se com os braços na janela.
Abre as cortinas e olha o céu. Está azul e brilhante. É domingo, um domingo de
verão. Seus cabelos então dançam o ritmo do vento que bate e ela deita em forma
de brisa. Há um copo com água na mesa lateral à cama. Alcança-o, bebe dois,
três goles curtos. Não tem pressa, nem precisa. Hoje não vai sair, nem vai
trabalhar, nem vai ao mercado, não vai ao ginásio, nem a biblioteca. Hoje vai
ficar em casa, assim tem sido. Pode se recuperar do seu pesadelo felino, pode
lamber suas feridas. Ficar em casa tem suas vantagens. Está cansada das
máscaras que precisa usar pra esquecer-se de si mesma, e pra proteger a si, deseja
outras novas mais condizentes com sua figura. Ficar em casa não deixa de ser
privilégio. Há comida na tigela, há uma manta, há uma janela pra ver o céu, há
vento.
Setenta
dias podem passar rápido, a depender. Ou podem ser lentos como um jabuti de
apartamento. Neles consegue estar atenta a coisas dantes nunca reparadas. O
movimento das nuvens de segunda a sexta-feira, e suas mudanças de direções aos
finais de semana. O caminho das formigas até o buraco no móvel de madeira da
cozinha, seu esforço pra carregar no lombo a comida da semana tal qual carregar
seis sacolas cheias do mercado, três em cada mão. Os movimentos contínuos do
gato; cochila de manhã, dorme a tarde, diverte-se a noite com ruídos
assombrosos. Em trinta dias repara melhor a crosta de poeira que se forma sob
os móveis, dia a dia crescente. E ignora a crosta mais vezes enquanto alterna
os olhos a tomar conta da menina que, às cinco em ponto, desce com sua
bicicleta e dá dezoito ou vinte voltas em torno da fonte do seu quintal. Depois
deixa pousada por cima das roseiras mantando ali as cores múltiplas, promovendo
uma emboscada contra si mesma.
Esta
manhã viu mais pombos que o normal. O alpendre está imundo. O gato salta pra
cima do vidro e arranha-o com as patas em tom de ameaça. Os pombos desdenham do
ridículo, depois voam rasantes em desorientação pra pousarem de volta no mesmo
alpendre, pra cagarem de volta no mesmo alpendre enquanto ameaçam espelhos que
revertem o sol, pinos de repelência, discos velhos em cd-rooms pendurados à
janela. Enquanto se arriscam no céu que todos desejam, mas só eles o têm, e
sorriem pra o despeito dos que os chamam de ratos.
Setenta
dias podem ser proveitosos. A ordem dos livros na estante já não é a mesma e
foi garantida a descoberta de um novo trapo liso pra limpar prateleiras que já
não engancha nas farpas. A louça suja acomoda-se mais do que nunca ao formato
da pia, a pia, no entanto, luta contra o peso e o incômodo das panelas
anti-aderentes. A comida podre dos restos do almoço de ontem escorrega
lentamente pela parte interna do saco preto da lixeira, cujo odor é possível
sentir tão logo a porta da cozinha é aberta. Seu corpo se toma em pelos. Não há
lâminas, não há ninguém pra ver este corpo. É inverno, está felino agora, nem
mesmo é possível saber qual o dia deixará de sê-lo. É possível deitar-se
novamente, e deita-se, embola-se de um lado ao outro, abraça as pernas como um
feto, debate-se por dentro tudo aquilo que pousa por fora, deixa o corpo dorido
tomar a forma do impossível. No teto há uma projeção de si, mas a imagem não
condiz com a de costume. Indeterminável, indetectável, incompreensível. Soa seu
alarme, um som estridente. Sente o estado de emergência e pode, então, ser o
que quiser. Até segunda ordem.
Manuella Bezerra de Melo é recifense, autora de Pés Pequenos pra Tanto Corpo (Urutau, 2019) e Pra que roam os cães nessa hecatombe (Macabéa, 2020), tem mestrado em Teoria da Literatura e atualmente cursa o Doutoramento em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho, em Portugal, onde reside.