por Iaranda Barbosa __
Diversos manuais de escrita insistem
na afirmativa de que escrever é, sobretudo, técnica e que a inspiração e o dom até
existem, mas ocupam pouco espaço na criação. Raimundo Carrero faz coro a esses
teóricos e, em “Os segredos da ficção”, delineia de forma bastante didática a
diferença entre ‘escrever bem’ e ‘escrever ficção’. Consoante com essas
perspectivas e imersa no grande oceano da escrita criativa, Patricia Gonçalves
Tenório se apresenta como uma escritora que alia técnica e vocação para o
sensível, características essas presentes em “Exílio ou Diário depois
do fim do mundo”.
Parte integrante de uma trilogia
(composta também por “Setembro” e “Poemas de cárcere”) lançada em dezembro de 2020, “Exílio ou Diário depois do fim do mundo”, como o
próprio título indica, é um diário no qual a autora revela a sua rotina durante
a pandemia de Covid-19. Dividido em 5 partes, o livro contempla os meses de
março a agosto e é um convite para conhecer um pouco sobre a intimidade da
escritora, mãe, professora, coordenadora, filha, amiga e várias outras
personalidades que habitam uma mulher que desempenha diversos papéis e,
inclusive, procura não enlouquecer durante o período do desterro:
Porque
este diário é um registro dos dias enlouquecidos, e eu desejo compartilhá-lo
com outras pessoas que mergulharam nesses dias. No período de isolamento, todos
os nossos instintos, bons ou ruins, vêm à tona e ficam acordados na superfície
do corpo, da mente.
Mais que um simples diário, “Exílio
ou Diário depois do fim do mundo” apresenta em seu bojo o processo de
escrita no qual é revelado o ato de escrever, corrigir, revisar, reescrever e
deletar pautado em escolhas lexicais e seleções de acontecimentos mais (ou
menos) relevantes que definem o que omitir, o que expor:
Sábado,
11h31. Revisei o que escrevi ontem e retirei alguns trechos desnecessários, que
expunham a minha intimidade e a dos meus filhos, e não acrescentaria nada a
este relato.
Nesse sentido, a obra em tela faz lembrar uma
declaração de Juan Rulfo a Eduardo Galeano na qual o autor mexicano diz
escrever mais com a borracha do que com o lápis, pois nem tudo deve, precisa, pode
ser dito. Nesse exercício de dizer, silenciar, esconder e revelar, é possível
recorrer à reflexão que Raimundo Carrero realiza sobre o gênero biografia ao
considerá-lo uma criação, tal qual a obra ficcional, e aplicá-la ao gênero
diário e, mais especificamente, a “Exílio ou Diário depois do fim do
mundo”.
Com grande domínio da técnica e da criatividade,
Patricia Gonçalves Tenório produz uma narrativa sensível, intersemiótica e
dinâmica ao citar filmes e intercalar trechos de leituras teóricas e literárias
com as experiências vivenciadas por ela no momento da escritura, configurando o
diário um espaço para recordações tanto de um passado recente quanto longínquo.
Tais referências são assimiladas junto com a rotina de atividades que se
apresenta em uma espécie de looping, pautada basicamente em organização,
limpeza e medo de um inimigo invisível que a qualquer momento pode entrar em
casa:
Sábado,
eu e Bruno limpamos a sala, as varandas, a biblioteca e o lavabo. Hoje, a área
de serviço lavanderia, cozinha, o lavabo novamente, corredor, os quartos e
banheiros. São cerca de quatrocentos metros quadrados que precisamos manter o
mais limpo possível.
Não seria exagero afirmar que as ações e os
cenários descritos aproximam a narrativa de Patricia Tenório ao conto "Casa
tomada", do argentino Julio Cortázar. Casa, ambiente este que é o personagem
principal do projeto de Patricia Tenório para 2021 em "Os mundos de dentro", no
qual ela visita e investiga as residências de escritores e poetas brasileiros.
Ao longo da narrativa a autora também revela as ideias e o início do processo
de escrita dos outros livros que fazem parte da trilogia, em especial,
“Setembro”, livro no qual podemos perceber, totalmente inserido em seus estudos
teóricos sobre autobioficção, um alter ego da autora.
A subjetividade de Patricia Tenório é exasperada
quando ela se semidespe de privacidade e permite que adentremos nas
inseguranças, nos medos, nas frustrações, nas angústias, nas saudades, na
solidão, nos sonhos e nas fragilidades de sua alma. Percebemos que, mesmo compartilhando
de mundos e realidades diferentes, é possível nos identificar com muitas
situações e sentimentos:
Sempre
sinto esse medo, sempre me ronda a insegurança. Por maiores que sejam as
conquistas, por mais difíceis os desafios, sempre sinto que não conseguirei. E
então consigo, e me surpreendo, em vez de saber desde o início que eu seria
capaz.
[...]
Tenho
vontade de ficar dormindo para sempre. De me encolher no meu quarto, na minha
cama, e nunca mais me levantar. Mas não posso, cheguei até aqui, irei mais
adiante, mais um pouco, um passo de cada vez. Um leão por dia.
“Exílio ou Diário depois
do fim do mundo””, portanto, é um convite, ou melhor, uma chance para nos
desarmarmos de estereótipos, preconceitos, arquétipos, intolerância e
pré-julgamentos que muitas vezes apenas enxergamos nos outros. A leitura é uma
oportunidade de exercitarmos a empatia a partir do momento em que eu compreendo
que meus problemas não são maiores ou mais importantes que o do outro, mas sim
que o mundo no qual vivemos carrega consigo dificuldades e desafios condizentes
com cada realidade.
Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.