por Iaranda Barbosa__
A lógica capitalista do mercado
editorial e a ausência de incentivos públicos para a economia criativa
dificultam a propagação de obras que trazem em seu bojo o convite à reflexão, o
compartilhamento de ideias e a divulgação de talentos. Ciente desses entraves, Jaqueline
Fraga resolveu vencer os obstáculos e publicar de forma independente em
2019 o livro “Negra sou. A ascensão da mulher negra no mercado de trabalho”.
A ousadia da jornalista, além de nos brindar com um tema pertinente e relevante
para a nossa sociedade, levou-a à final do prêmio Jabuti 2020.
A autora põe em prática o que o
Geledés sugere a todos nós para sabermos se existe racismo no Brasil: o teste
do pescoço. Ou seja, observe o seu entorno e busque onde se encontram as
pessoas pretas. Estão ocupando posição de destaque ou subalterna? Pautada em
dados, estatísticas, conhecimento empírico e um senso crítico aguçado, Jaqueline
Fraga compõe uma obra na qual temos a oportunidade de conhecer um pouco da
rotina e da história de vida de cinco mulheres que desempenham profissões de
destaque social: Medicina, Direito, Engenharia, Odontologia e Militar.
É perceptível que o papel que cada mulher exerce
vai muito além, tanto no sentido simbólico quanto prático, do que simplesmente
executar determinada função. Elas procuram expandir o alcance a partir desse
lugar ocupado para atingir outras áreas, tal qual a militar que, ao ministrar
palestras nas escolas, aproxima a polícia da comunidade – desmistificando a
imagem de polícia violenta –. Ademais, ela exibe filmes que abordam as questões
raciais e leva informação a fim de combater a intolerância religiosa e os
discursos vigentes, além de trabalhar a autoestima das meninas.
O depoimento das entrevistadas esclarece que, em
algumas situações, o primeiro inimigo a ser derrotado é o machismo. Em outras,
o racismo se faz presente, mesmo elas ocupando uma posição influente e estando
consolidadas na profissão. A narrativa dessas mulheres nos coloca um pouco mais
a par sobre a rotina de trabalho, as alegrias e as dificuldades de entrar em
uma universidade pública e as perspectivas de futuro dessas profissionais. No
final de cada reportagem, há uma entrevista realizada 4 anos depois do primeiro
encontro (2015), para fazer um balaço sobre a perspectiva de cada uma delas,
revelando um pouco sobre o que mudou em suas vidas.
A leitura nos revela também as estratégias da autora
para garimpar as personagens que fariam parte da obra e o trabalho jornalístico
que envolve, sobretudo, o local onde a entrevista será realizada, com foco
especial nos cenários e nas descrições. Tais elementos são imprescindíveis
tanto para compor o texto quanto para que nós compreendamos um pouco mais a
personalidade das entrevistadas.
Em diversos momentos as vivências das
profissionais e da autora se encontram, compartilhando, assim, afetos,
lembranças e o exercício de pensar e repensar sobre si mesma, sobre o mundo. Jaqueline
Fraga chama a atenção para questões como a construção da identidade, as
projeções para o futuro, o legado que essas mulheres – e ela mesma – deixam
para as próximas gerações de mulheres negras. Nesse sentido, a experiência
enquanto jornalista, escritora e mulher negra está permeada de aprendizado
construído a partir de um processo de crescimento e conscientização.
A leitura é fluida, leve, bem estruturada. Vemos
os cenários através dos olhos da autora que nessa obra foge do estilo
tradicional de perguntas e respostas. Tal estratégia provoca uma dinamicidade e
uma leveza grandes no livro. O movimento de ir e vir, alternando a entrevista com
as impressões que o ambiente causa na autora e com as reflexões que ela faz,
está associado a ferramentas narrativas e linguísticas como, por exemplo, discurso indireto livre, direto, indireto e uso
de aspas:
Sentada
de frente ao birô de madeira onde trabalha Bernadete, notei que atrás de mim
havia uma estante, daquelas de biblioteca ou livraria. Eram muitos exemplares.
Não sei se por coincidência ou destino meus olhos primeiro enxergaram o
livro-reportagem “Nabuco em pretos e brancos”, de autoria da jornalista Fabiana
Moraes [...] Tirando-me das minhas reflexões, a procuradora de
justiça Bernadete Figueiroa chega e nos saúda com um “boa tarde” firme e
carinhoso. Pede desculpa pelo atraso, cumprimenta-me com um aperto de mão,
coloca o celular para carregar.
Dessa maneira, Jaqueline Fraga faz com
que o leitor também se identifique com as situações, projete os cenários e sinta
como se estivesse ao seu lado durante a entrevista e até mesmo imagine as vozes
das pessoas.
As referências literárias são bastante
explícitas. Clarice Lispector e Fernando Pessoa influenciam em seu modo de
escrever, com um quê de literário, por meio de uma linguagem próxima da crônica,
do cotidiano:
Eu
tinha duas opções para chegar ao MP: fazer o trajeto até a Rua do Imperador
pelo Cais de Santa Rita, banhado pelo Rio Capibaribe, ou então ir pela Avenida
Guararapes, na altura da área mais conhecida como Praça do Diário, em menção ao
antigo prédio do jornal mais antigo em circulação da América Latina. Dizem que
pernambucano é megalomaníaco: tudo é o maior, o melhor ou o mais antigo. Parece
que o periódico Diário de Pernambuco aprova essa ideia.
Resolvi
ir pelo Cais. A vista do Capibaribe e a brisa me acompanharam. Parafraseando
Fernando Pessoa, sempre que sinto o vento passar lembro-me que valeu a pena ter
nascido.
“Negra sou. A ascensão da mulher negra no
mercado de trabalho” não é um simples livro de denúncia ou livro-reportagem.
Ele é uma obra que nos leva à reflexão sobre racismo, misoginia, empoderamento
feminino negro, mulheres de/no poder, representatividade e diversos sentimentos
que ligam todas essas mulheres. Elas se orgulham de si mesmas, pois em cada uma
das falas é perceptível a sensação de dever cumprido, embora ainda haja um
longo caminho para percorrer.
Jaqueline Fraga, ao trazer essas profissionais, nos leva a pensar se de fato houve mudanças profundas, significativas e estruturais em nossa sociedade. Afinal, a frase Pode procurar pela médica negra, que eu sou a única, pronunciada por uma das entrevistadas há mais de 30 anos, está ultrapassada ou em desuso? Espero que durante a leitura desta resenha você também tenha se perguntado: quantas médicas, engenheiras, advogadas, dentistas e militares negras já me atenderam?
Jaqueline
Fraga
é jornalista, formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e
administradora, pela Universidade de Pernambuco (UPE). É apaixonada pela escrita
e pelo poder de transformação que o jornalismo carrega consigo. Conquistou
prêmios nacionais e regionais, incluindo o Prêmio Antonieta de Barros – Jovens
Comunicadores Negros e Negras e o Prêmio Teodósio de Estudos de Gênero. Foi
consultora Unesco nos anos 2017 e 2018, atuando na Comunicação da Escola de
Inovação e Políticas Públicas (EIPP) da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj),
instituição vinculada ao Ministério da Educação (MEC). Escreve por profissão,
prazer e terapia. Escreve porque respira. Respira porque escreve.
Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (Selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.