por Iaranda Barbosa___
Por que resgatar e preservar nossa
história individual e familiar é tão importante? Até que ponto podemos
confirmar em nossa memória? As recordações alheias podem nos servir de modo
confiável para construir o passado? As lembranças que temos, ou que pensamos
que temos, são reais ou advindas de uma criação involuntária de nosso cérebro
para preencher as lacunas? Pode nossa memória ficcionalizar lembranças? São
essas e muitas outras indagações que nos acometem durante e após a leitura de
“Reminiscências”, de Rebeca Gadelha.
As dúvidas, as incertezas e as
desconfianças permeiam esse livro de crônicas, nas quais são expostos os
conflitos familiares, a tentativa de montagem da árvore genealógica, os
parentes cujos nomes são omitidos, os mistérios, os assuntos mal resolvidos, as
histórias contadas pela metade, os flashs de recordações:
O
bisavô caiu do trem – foi o que disseram. Pode ter caído bêbado, pode ter caído
porque havia a hora de cair. Pode ter precipitado essa hora jogando-se de
encontro aos trilhos: um corpo que cai, nada além de carne.
[...]
Só
a vi uma vez, quando o Alzheimer estava estabelecido, a mulher que fora mãe do
meu pai, perdida para sempre, seu rosto é uma névoa, não tenho lembranças nem
fotos – poderia pedir para as tias, mas já também nem lembro seus nomes. Não
sei quantos irmãos e irmãs meu pai teve, quantos se perderam na imensidão do
Sertão e quantos chegaram à idade adulta, quantos ainda vivem, também não sei dos
primos, sei das lacunas: o que não sei se empilha em questões que não tem
resposta.
Nos trechos acima, além do não saber, o
Alzheimer aparece como um forte e significativo elemento da perda gradual e
constante da memória, que vai da recente à mais remota. A angústia da
enfermidade é compatível com a da ausência de informações sobre si mesma. Essa
névoa que encobre rostos e expressões é a mesma que compõem os “frágeis laços”
familiares. Nesse sentido, há um grande dilema entre o esforço para lembrar e, simultaneamente,
a ausência de recursos para fazê-lo:
[...] já não tenho muitas lembranças desta época em si – a infância – quase tudo virou névoa.
[...]
Corrói-me
a falta de não sei o quê, uma vontade antiga de voltar para algum lugar que nem
sei mais se existe: sumiu, quando as loucas sumiram, tudo sumiu junto – restou esta
vontade de quedar o corpo em alguma paragem desconhecida, algum canto que me
receba com a sensação de retorno.
–
Quero voltar para mim.
Outro ponto importante em
“Reminiscências” é o fato de a autora construir narrativas sem seguir uma linha
temporal. Tal estratégia está totalmente inserida na proposta de memória,
fragmentos, lacunas..., pois quando procuramos lembrar do nosso passado não
seguimos uma sequência cronológica – e mais ainda mais nesse caso que, a todo
momento traz referências de que as incertezas e a pouca clareza nas imagens
imperam no exercício de resgate do passado.
Na obra em tela, tudo parece estar diluído,
sensação esta que faz referência direta a Gaston Bachelard quando o teórico
afirma que a água é a substância que, ao dissolver outros componentes e agrupar
as imagens, auxilia o transcurso imaginativo e de assimilação. Nesse sentido,
Reminiscências recorre bastante a um campo semântico formado por uma escolha
lexical que traz a todo momento o elemento água: mar, gelo, derreteu, evaporou,
marinha, afogar, transbordou, gota.
Dessa maneira, composto por várias crônicas que
abordam o passado da autora, “Reminiscências” traz à ordem do dia um dos temas
mais visitados na literatura e nos estudos literários: a memória. Entre os
inúmeros exemplos podemos citar “Funes el memorioso”, de Borges, no qual
encontramos um personagem que se lembra absolutamente de tudo, de cada detalhe,
movimento, gesto. Também citamos “Autobiografía de Irene”, de Silvina Ocampo,
com uma narradora que adivinha o futuro, mas que perdeu a capacidade de
recordar o passado.
Nas narrativas de Rebeca Gadelha temos fragmentos recolhidos de suas próprias lembranças, das lembranças de parentes e de fotografias. São essas peças, também incompletas, os recursos utilizados para recuperar o que a memória não é capaz de resgatar sozinha.