por Iaranda Barbosa__
A capa cartonera, cuja imagem
apresenta a sombra de uma mulher negra com a África na cabeça e o oxê de Xangô
no peito, ou nas costas, já anuncia as conexões diversas de Clamor negro,
de Odailta Alves. A autora apresenta uma visão macro de problemáticas
existentes em um sistema interligado, haja vista o fato de o racismo não se
sustentar sozinho, mas sim existir dentro de várias estruturas que o alimentam,
entre elas a escola. Este ambiente, especificamente, destaca-se de modo
contraditório, pois ao invés de incentivar a inclusão, em não raros casos, é um
espaço tóxico,
configurando-se o grande calcanhar de Aquiles na luta contra o racismo e
diversos outros preconceitos:
Racismo
institucional
A
escola é a artéria
Que
alimenta bravamente
O
racismo institucional
Lá,
desde cedo
Quanto
mais escura é a pele
Maior
é a chicotada
E tudo
Tudo é
tão normal
A
incomodada que se muda
E a
escola continua muda
Enquanto
ecoa
O
preconceito racial:
Cabelo
duro, maçada, bicuda
Carvão,
escrava, Saci
E a
negra “prejudica o senso”
“Diminui
o Ideb”
Pois
foi mais uma a desistir.
[...]
Na evolução das poesias, as referências e as
críticas sociais se intercruzam. A eugenia, o processo de embranquecimento, o mito
da democracia racial, a intolerância religiosa e a meritocracia aparecem em
meio a metáforas e construções de imagens diluídas em jogos verbais que
confluem para narrativas viscerais, experienciadas por muitos negros e negras
nas diversas fases da vida:
Racismo é uma navalha
enferrujada
Que sangra a alma negra
E as chibatadas continuam
violentas
E não me venhas com essa
conversa afiada
De que “todo mundo é igual”
Enquanto isso,
Na sala da justiça,
A pele preta
Continua estampada na página
policial
[...]
Violências diretas, indiretas, subjetivas, subliminares, explícitas e/ou
disfarçadas de elogios são mecanismos, peças que movimentam a engrenagem do
silenciamento, do apagamento, da invisibilização do povo preto. É na crítica dessas
e de outras temáticas que Odailta Alves invoca a Lei
10.639/2003 em seus versos, a fim de mostrar que não aceitamos menos do que
respeito e que queremos mais que apenas reconhecimento ou reparação histórica,
mas sim oportunidades e possibilidades de crescimento financeiro, social,
intelectual, liberdade de culto. Logo, a intolerância religiosa não será
tolerada e a sociedade deve repensar e tentar superar os grandes
entraves no combate ao racismo.
Nessa seara, Odailta Alves transita pelas questões linguísticas, de
gênero, de condição social, enfim, pelos diversos clamores que se unem e vibram
em total sintonia, convergindo para a representatividade e para possibilidades
de leituras devido ao estímulo a um movimento de dentro para fora, ou seja, do
interior do problema para o exterior em forma de libertação e, como o próprio
título indica, de clamor. Os versos, sobretudo os primeiros de muitos poemas,
pedem a gritos ser gritados, exigem uma leitura em voz alta, pois são um apelo,
um chamamento.
É na interseção dessas vozes que a musicalidade se faz presente. Não à
toa o livro virou um espetáculo musical-poético-teatral, potencializando,
assim, o poder de alcance para um público ainda maior. Com isso, as opressões
advindas da forçada diáspora africana são discutidas de forma mais ampla, chamando
a atenção para o combate ao racismo em vários espaços sociais:
[...]
Que as chibatadas só
Nos livros de História
Sejam lembradas
E juntos também venham
Os heróis, as heroínas, as vitórias:
Zumbi, Dandara, Malês,
José do Patrocínio, Benguela, glória
Que meus cabelos
Sejam inocentados
Do crime que não cometeram
Não mataram
Não roubaram
E são ruins?
Coitados...
Que nada!
São lindos, cacheados,
Crespos, pretos
Castanhos, enrolados
[...]
Clamor negro não é um livro para ser lido na solidão, na reclusão. É para ser lido em público, nas ruas, em grupo, exige um ajuntamento, pois remete à oralidade – prática essencial e muito mais efetiva que a leitura, para a transmissão de saberes e culturas –. É uma obra para ser compartilhada, fundamental para promover debates. Não pede monólogo, pede um coro, uma união de vozes. Em seus versos o leitor não fica nunca na superfície, ele é puxado para a profundidade das discussões, já que Odailta Alves é provocativa e aborda questões que incomodam, tornando impossível o não posicionamento.