por Rebeca Gadelha__
Fiados na esquina do Céu com o
Inferno (Editora Coqueiro, 2020) é o
romance de estreia de Eury Donavio, o livro é fruto de nove anos de
pesquisas e viagens do autor, que se vale da guerra da seca e da fé sertaneja
para compor este romance fantástico que tem por cenário o sertão e a esperança
(ou o minguar dela) nos momentos que precedem o dia de São José e a espera por
chuva. Nele, o autor faz uso de narrativa não linear, costurando os fatos
indo-e-vindo e fazendo jus à máxima de que para se entender o presente, é
preciso conhecer o passado. A linguagem usada parece nostálgica, principalmente
para aqueles que cresceram entre a cidade e o sertão – aqui, a formalidade da
língua portuguesa não tem vez – e é até melhor que assim seja, o uso do dialeto
nordestino é “a
cereja do bolo”.
É assim que conhecemos a história do
Matador, um homem atormentado por pesadelos, obra de um diabo que já reservou
até o lugar para a alma da criatura no inferno. Acontece que, como tudo na vida
tem um jeito, também há como se livrar do pesadelo: uma forma é perdoar os
fiados, a outra é matar o tinhoso. Ora, a empreitada do perdão por si só é uma
estrada árdua e sem garantias de sucesso, talvez por isso o Matador tenha
escolhido justamente a segunda opção e, todo dia de São José, arma uma arapuca
para o tinhoso com a ajuda de um velho conhecido, o Índio que Bebe Veneno de
Cascavel. Porém, vendo se aproximar a data e ainda sem notícias do ajudante, o
homem parte em busca do Índio, indo procura-lo na bodega que “ficava plantada bem
na esquina onde o céu se encontra com o inferno”. Porém, ao invés de encontrar
o parceiro de empreitada, o Matador recebe uma oferta que pode lhe ajudar na
peleja: a de matar um diabo que está causando a seca, se conseguir, não só se
livra do pesadelo, mas também faz uma boa ação e garante seu lugar no céu. Já
desesperado para se livrar do tormento do pesadelo e da peleja de 16 anos,
aceita. Enquanto chega o dia de São José – e espera o tinhoso dar as caras –
parte para liquidar os fiados, seja na base do bala ou do perdão.
O que me chama atenção em Fiados,
tanto como geógrafa como assídua rata de biblioteca, é sua semelhança com
clássicos da literatura, ao pensar na trajetória do Matador, ocorre-me a travessia
de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, descrito por SERRA (2006): “como uma viagem iniciática, que, por sua
vez, seria a interpretação metafísica da viagem geográfica de um herói épico
(…) a sua “viagem” é o desenvolver-se como ser humano; o encontrar e aceitar o
sofrimento; o perseverar em alcançar seus nobres objetivos, mesmo que para isso
leve dez anos.”
Porém, em Fiados, essa
jornada acabará logo, ainda que as reminiscências do personagem nos levem há
10, 30 anos atrás, nos apresentando a teia de desgraças que ainda hoje permeia
a vida de muitos sertanejos: “fazenda secando, criação se acabando”, numa
realidade que, como diz o narrador, tudo que não foge, morre e a única chance
era “enveredar pelo meio do mato esturricado, mesmo que fosse pra morrer no
meio dos espinhos, pra descobrir que a sombra dos urubus não tinha borda”.
Outro paralelo narrativo que
acredito ser possível traçar é com as obras de Ariano Suassuna, onde o
sertanejo – no caso de fiados, representado também pela figura do Matador – é
transportado para “um universo mítico, retirado de sua vida comum e colocado no
centro de um narrativa lúdica, resgatando assim o espírito mágico dos folhetos
do Romanceiro Popular do Nordeste.” (PEREZ, 2018) Tudo isto com toques
de fino humor e crítica social, (re)lembrando que a maior augura do sertão não
é a seca em si – mas a estrutura de dominação social que se enredou em seu
espaço.
Enfim, Fiados é uma obra com
personagens únicos que nos relembram tipos humanos comuns -e talvez por isso
mesmo nem todos tenham nomes – é uma narrativa do sertão onde o fantástico e o
(su)real se unem para formar a epopeia de um herói improvável, onde sua
história nos move página após página; o livro, lançado em outubro de 2020, ouso
dizer, é um dos melhores acontecimentos literários neste malfadado ano
pandêmico e está disponível gratuitamente para assinantes do kindle unlimited.
* SERRA, Tania Rebelo Costa. A travessia de Riobaldo Rosa, no Grande sertão:
veredas, como um processo de individuação. Aletheia, Canoas,
n. 24, p. 69-80, dez. 2006. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942006000300007&lng=pt&nrm=iso>.
acessos em 17 mar. 2021.
Eury Donavio é escritor e roteirista
Rebeca Gadelha - beca (ou becka) cresceu em Fortaleza, na companhia dos avós. É otaku, gamer e artista digital, formada em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem fraco por criaturas peludas e gorduchas, viciada em chá gelado. Trabalha com edição de vídeo do projeto Literatura & Libras (@literaturalibras), participou das coletâneas Paginário (Aliás Editora 2019) e Laudelinas (Nada Studio Criativo, 2020) além de ter sido responsável pela direção de criação de Manifesto Balbúrdia Poética (CJA Editora, 2019), A Banalidade do Mal, Coletânea Diários de Quarentena e O Amor nos Tempos de Lonjura, do Selo Editorial Mirada.