Mauricéa, de Adrienne Myrtes

  

por Iaranda Barbosa__

 



 

           O Rio Capibaribe, a Rua da Aurora, os antigos sobrados e um zepelim cortando o céu do Recife. Esta é a imagem, em escala de cinza, que compõe a capa de Mauricéa, de Adrienne Myrtes. O cenário se expande pelas orelhas do livro e se complementa com fotografias pontuais no intervalo entre alguns capítulos, também seguindo o jogo cromático, porém mais desfocadas, da/na Ponte de Ferro, uma das paisagens que desperta a memória afetiva do recifense.

            Quem conhece a fama e a história de Pernambuco, imediatamente, abre um sorriso por lembrar da megalomania e do complexo de pioneirismo que nos acompanha onde quer que estejamos. Logo, realiza-se a ligação entre o zepelim e o Recife, pois a capital pernambucana foi o local escolhido para o primeiro pouso do dirigível na América Latina – mais especificamente, no Campo do Jiquiá onde ainda hoje existe a única torre de amarração do zepelim no mundo, ratificando nossa vontade de que um dia seríamos um símbolo de inovação e marco para o futuro.

            É nesse Pernambuco hiperlativo onde nasce a história do finalista do Prêmio Jabuti de 2019. Mauricéa é uma narrativa de transições, de travessias, de deslocamentos, de trânsitos. O zepelim e seus voos transatlânticos, os rios que transpassam a cidade, as pontes por onde transitam os fregueses. O narrador autodiegético, transita entre Recife-São Paulo, homem-mulher, mulher-homem, passado-presente, juventude-velhice, a transexualidade.

Em meio a esses transcursos, Adrienne Myrtes exaspera a técnica do diálogo psicológico, do solilóquio e do monólogo interior ao nos apresentar uma voz narrativa em primeira pessoa que se dirige a si mesma, por meio de recordações que deslizam no cronotopo em transições sutis de cenas que se intercalam na mente da personagem:

 

Eu quero é que ela se cale, não ligue a tevê, não estou com paciência para os casos de famílias alheias. Cessem-se os barulhos e me deixem pensar em paz; revisitar na lembrança aquela juventude bichada, tantos sonhos esgarçados brilhando feito purpurina jogada: o desejo de virar estrela, de me revelar no feminino.

Puta que me pariu, era bem complicada aquela vida, mas uma delícia. E eu nem reparava em complicação quando passava pelas ruas do bairro de Santa Rita rumo ao Cais e ouvia dos ambulantes os assovios, ou mesmo quando os mais afoitos me passavam a mão: e esse embrulho, é pra presente? Só para me ouvir responder: presente de cu é rola, e rolarem de rir da piada gasta.

 

A linguagem coloquial, os sonhos da juventude, os amores, as desilusões, os preconceitos, as dores, as perseguições – inclusive institucionais – e as intempéries relacionadas à sexualidade se unem à uma escrita forte, potencializada por técnicas narrativas que compõem a tessitura de Mauricéa. A voz narrativa descreve as cidades e as pessoas sob o plano do saudosismo, da nostalgia, mas também da crueldade, das estratégias de sobrevivência, da falta de empatia e da violência advinda de todas as partes, sobretudo quando se é uma transexual idosa. Assim a personagem se apresenta:

 

QUERO estacionar meu nariz na seção de ervas do Mercado de São José, pensar que meu nome é Mauricéa; trago na bolsa um batom vermelho e uma gilete para usar embaixo da língua. Mal completei vinte anos e acredito na vida e no amor.

 

O amor, em suas diferentes formas, é um dos elementos que impele Mauricéa tanto a abandonar o Recife quanto a voltar a ele anos depois. Entre o sair e o voltar à terra natal, transcorrem muitos acontecimentos que vão rapidamente transformando a personagem e levando-a ao autoconhecimento. Vale ressaltar que embora o livro não apresente uma data específica, é possível identificar o período no qual Omar/Mauricéa viveu a infância, a juventude e vive a velhice. Tal localização temporal se deve a algumas pistas que a personagem nos oferece – a aparição do zepelim e uma delas –. Outra questão pertinente é o fato de que embora tenha transcorrido tantos anos, as perseguições, a falta de oportunidades, a prostituição e a ausência de apoios relacionadas ao público LGBTQIA+, sobretudo aos que não se enquadram na heteronormatividade, infelizmente se repetem tal qual um ciclo vicioso. Fugir nem sempre é possível, mas é a saída encontrada por muitas pessoas desse grupo que não têm acolhimento nem familiar nem social – haja vista muitos desses indivíduos serem considerados doentes, por não se enquadrarem no padrão de gênero que a sociedade determinou.

            Em meio a esses percalços e enfrentamentos, Adrienne Myrtes constrói uma obra que traz a todo momento um campo semântico pautado na ideia do duplo. O zepelim que é um balão/navio, a voz narrativa que é Omar/Mauricéa, a protagonista que é homônima ao título, o Recife que é uma cidade maurícia – cujo nome seria binário ou não binário? Cidade esta que é trocada por São Paulo. A personagem abandona a sua terra natal tal qual alguém que almeja encontrar [ou deixar?] no outro extremo do mundo o seu antípoda. Com isso, a autora traz uma personagem que sonha, deseja externalizar ser quem realmente ela é, mas em seu seio o masculino e o feminino conflitam:

 

Jonas, Gilmar, Romero, eu quis transformá-los em histórias vividas por um fantasma, figuras distantes. Ah, mulher tola eu sempre fui. Achar que havia dois de mim, agir feito fosse possível separar Omar de Mauricéa, de jeito nenhum. Omar e Mauricéa sempre foram uma só entidade: Euzinha da Silva.

 

Quando a personagem descobre que dentro dela habitam dois seres que na verdade são apenas um? Ela consegue finalmente encontrar a felicidade? Os fantasmas do passado deixam de atormentá-la? Muitas outras perguntas e diversas respostas se apresentam ora latentes ora explícitas no transcurso desse rio de lembranças onde Mauricéa mergulha e nos leva junto com ela.











Adrienne Myrtes
nasceu no Recife e vive em São Paulo desde 2001. É artista plástica e escritora. Participou de algumas antologias, destacando: Os Cem Menores Contos Brasileiros, 35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum e Assim você me mata. Publicou A mulher e o Cavalo e Outros Contos, o romance Eis o Mundo de Fora, cujo projeto recebeu o Prêmio Petrobras Cultural 2008/2009, e a novela uma história de amor para MARIA TEREZA E GUILHEME.

 




Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.