por Andrea Dip /Agência
Pública___
Fotografias: Artur Renzo (a esquerda), Taba Benedicto ( canto superior direito) e Marina Valeriano (canto inferior direito) |
A
filósofa, escritora e professora italiana Silvia Federici ficou
conhecida no Brasil por seus livros “Calibã e a Bruxa”, “O Ponto Zero
da Revolução” (Editora Elefante) e “Mulheres e Caça às Bruxas”
(Editora Boitempo). Nascida na Itália e radicada nos Estados Unidos desde a
década de 1960, Silvia lança agora um novo livro pela Boitempo, “O
patriarcado do salário – notas sobre Marx, gênero e feminismo” que traz uma
série de artigos sobre como o trabalho não remunerado das mulheres – como o
doméstico e o de cuidados com a reprodução – teve e tem um papel importante na
consolidação e na sustentação do sistema capitalista. Silvia também reivindica
espaço para o que chama de “trabalho reprodutivo” nas pautas da esquerda como
mostra esse trecho do livro: “De Lênin a Gramsci, toda a tradição da
esquerda concordou com a ‘marginalidade’ do trabalho doméstico para a
reprodução do capital e com a marginalidade da dona de casa para a luta
revolucionária. Para a esquerda, na condição de donas de casa, as mulheres não
sofrem por causa da evolução capitalista, mas pela ausência dela. Nosso
problema, ao que parece, é que o capital não organizou nossas cozinhas e nossos
quartos, o que gera uma dupla consequência: a de que nós aparentemente
trabalhamos em um estágio pré-capitalista e a de que qualquer coisa que fazemos
nesses espaços é irrelevante para a transformação social. Pela lógica, se o
trabalho doméstico é externo ao capital, nossa luta nunca causará sua
derrocada”.
Na
década de 1970, a filósofa defendeu um salário para o trabalho doméstico e um
relatório da Oxfam de março de 2020 estimou que as mulheres dedicam 12,5
bilhões de horas, a cada dia, para limpar a casa, cozinhar e cuidar de crianças
e idosos. Algo que temos visto escalar durante a pandemia de coronavírus com a
sobreposição do trabalho remunerado – seja ele remoto ou não – com o não
remunerado como o cuidado com os enfermos, com a casa e os filhos fora da
escola, disse Silvia em uma conversa por vídeo com a Agência Pública. “Muitas
mulheres estão ficando loucas e estão dizendo isso. Essa é uma crise muito
forte. Eu espero que esse seja um momento que impulsione uma forte mobilização
de movimentos feministas. Que não se torne uma situação permanente porque as
mulheres não irão permitir”, refletiu.
Federici disse
também ter esperança em um novo feminismo “dissidente, alternativo, popular
como o que existe na América Latina” que se encontra com outros movimentos
sociais como o antirracista, anticapitalista, indígena, campesino, “a luta
sobre o controle dos nossos corpos e a defesa da natureza, a luta contra a
contaminação das águas pelo agro”, algo que ela chama de “um feminismo mais
amplo, enfocado em combater a supremacia masculina, a dominação das mulheres
pelos homens e também aberto a outras atividades e lutas que são fundamentais
para uma transformação real da sociedade”.
Sobre
governo Bolsonaro, a ascensão de uma nova extrema-direita no mundo e o
fundamentalismo religioso que coloca feministas e população LGBT como
principais inimigos, Silvia Federici fala em uma nova caça às bruxas: “Não
existe o desejo de proteger a vida mas sim o de controlar os corpos das
mulheres, assegurar-se de que as mulheres sejam subordinadas, sacrificadas, que
possam ser exploradas por suas famílias e pelo capitalismo. É uma questão
econômica também, a igreja com essa aparência da defesa da vida, da família, na
verdade está defendendo a produção do trabalho não assalariado das mulheres. E
quando a igreja vê que não pode mais nos convencer de tudo isso então nos trata
como inimigas, cria novas divisões entre mulheres e homens e entre mulheres
também. Porque colocam algumas mulheres como aliadas do diabo”.
Em
debate com Sonia Guajajara no último dia 11, você disse que o feminismo não é
isso que a mídia tem mostrado ao longo dos anos e nem o que a indústria tem
tentado cooptar e fala de um novo feminismo. Que feminismo é esse que você vê
surgir e como você vê essa apropriação?
A
tentativa das mídias, do Capital, das instituições em cooptar o feminismo vem
de longa data, uma história que começa nos anos 1980, quando as Nações Unidas e
vários governos começam a celebrar o desejo das mulheres por emancipação
através do trabalho assalariado. E em um momento de forte crise do capitalismo,
que era também um momento de muita luta, de protestos, o capitalismo abre as
portas para as mulheres e celebra suas iniciativas e seu desejo de emancipação.
Então para muitos o feminismo é somente o desejo de ter oportunidades e de ser
igual aos homens e essa é uma visão muito reducionista. Claro que ninguém deve
ser discriminado, claro que as mulheres não devem receber tratamento diferente
dos homens mas o feminismo pode muito mais do que isso! Denuncia a
desvalorização de toda uma esfera de atividades, denuncia que as mulheres
produzam, cuidem de toda a infraestrutura da casa antes de sair para trabalhar
e nunca tenham sido devidamente recompensadas, denuncia essa desvalorização do
trabalho não pago com a reprodução. E nos últimos anos temos visto esse enfoque
do movimento feminista sobre a reprodução, sobre o corpo, esse enfoque é muito
importante. Podemos ver também as conexões entre a luta sobre o controle dos
nossos corpos e a defesa da natureza, a luta contra a contaminação das águas
pelo agro. Esse me parece que é o aspecto mais importante dessa nova forma de
feminismo, que vem sobretudo do sul, da América Latina, Chile, Brasil, de
movimentos que se encontram. Movimento de mulheres campesinas, por exemplo, das
mulheres indígenas com o movimento feminista que parece mais clássico, contra
as relações patriarcais. Existe hoje então um feminismo que é contra a
dominação patriarcal e quer criar um mundo diferente, um mundo que não é
governado pela lógica capitalista, de mercado, um mundo em que não sejamos
controladas pelas grandes corporações capitalistas. Isso me parece importante.
Um mundo crítico ao racismo. Essa capacidade de ver conexão entre diferentes
movimentos, um feminismo mais amplo, enfocado em combater a supremacia
masculina, a dominação das mulheres pelos homens e também aberto a outras
atividades e lutas que são fundamentais para uma transformação real da
sociedade.
Nós
sabemos que historicamente o feminismo tem sido visto como uma luta secundária
por outros movimentos sociais e por grande parte da esquerda. Eu gostaria que
você falasse um pouco sobre como o feminismo atravessa e é atravessado por
todas essas lutas e como podemos fazer essa conversa?
Sim, eu
espero que a esquerda e os movimentos sociais comecem a compreender a
importância disso para a mudança social. Porque por muito tempo a luta das
mulheres era considerada como uma luta de suporte a outras lutas. É esquecida
toda uma esfera muito importante, da reprodução social, a esfera da reprodução
da força de trabalho. Um feminismo dissidente, alternativo, popular como o que
existe na América Latina tem sido capaz de abrir os horizontes da visão da
esquerda, da visão que Marx nos propôs, que segue sendo fundamental, segue
sendo muito importante, nos trouxe repertório, nos trouxe categorias que nos
ajuda a compreender a lógica da sociedade capitalista mas que também tem nos
dado uma visão muito reducionista do que é esse trabalho, do que é essa
exploração, quem somos os sujeitos revolucionários, justamente por esse enfoque
somente à fábrica, ao trabalho industrial, ao trabalho assalariado. Marx viveu
em um período particular, da Revolução Industrial e apesar de toda a sua
crítica à sociedade capitalista, sempre olhou para o capitalismo como um
sistema que explora mas todavia cria condições materiais para a criação do
comunismo. Essa visão da indústria, sobre como é fundamental também para
libertar o trabalho humano, reduzir o trabalho necessário para que possamos
fazer coisas mais importantes, tudo isso tem um impacto muito negativo sobre
todas as atividades reprodutivas. Muitas das quais não se pode mecanizar, não se
pode industrializar! Reproduzir pessoas, reproduzir a vida não é a mesma coisa
que fazer um carro! O movimento feminismo é capaz de recuperar a crítica ao
sistema capitalista de Marx mas também de se distanciar de alguns aspectos do
marxismo que privilegia um setor particular de trabalho e um setor particular
de sujeitos políticos, os privilegia e assim confirma as divisões nas
hierarquias de trabalho construídas pelo capitalismo. Assim os partidos
comunistas, os partidos de esquerda têm reproduzido a mesma hierarquia que se
encontra na organização capitalista do trabalho e essa é nossa crítica. Não é
uma rejeição a Marx ou ao anticapitalismo, é uma rejeição a uma visão que
privilegia alguns setores, algumas formas de trabalho e vê as outras como
marginais.
Nós
temos vivido hoje no Brasil, com o governo Bolsonaro que é tomado por militares
e religiosos, uma ameaça muito grande aos direitos das mulheres e população
LGBT. Mas sabemos que a tentativa de dominação dos corpos por parte da igreja
definitivamente não é algo novo. Você poderia falar um pouco sobre isso?
Sim,
claro, a igreja tem toda uma história, na idade média, na inquisição, de caça
às bruxas e não só de caça às bruxas mas a igreja tem sido uma presença
fundamental, importante, de controle e restrição à vida das mulheres. É só
olharmos para os textos sagrados em que as mulheres são as causas da perdição
da humanidade! São as que introduziram o pecado no mundo! Hoje segue assim,
temos visto uma intervenção fanática do Vaticano sobre a luta das mulheres na
Argentina pelo direito ao aborto. A igreja é uma parte do Estado, é um poder
político e hoje segue disciplinando as mulheres na vida cotidiana, na
reprodução. E isso é muito preocupante, essa nova cruzada liderada pelo
Vaticano e pelos protestantes, é uma nova caça às bruxas! Não é somente uma
metáfora é uma realidade. E várias pesquisas acadêmicas e produções
jornalísticas sempre observam a conexão entre a nova caça às bruxas por exemplo
na África, em Papua-Nova Guiné, com a presença muito forte a partir dos anos
1980 do desenvolvimento dessa crise neoliberal do capitalismo que tem
desmantelado a organização comunitária da vida. Os novos missionários ajudam
nesse processo de conquista e são financiados por instituições como o Banco
Mundial. Fazem um trabalho de neutralizar protestos, são contra as vacinas e
dizem que a pobreza, os traumas da vida são causados pelo demônio. É muito
preocupante porque há uma inversão de fundos e energia nessa nova cruzada,
nessa nova presença da religião sobre a vida cotidiana, o impacto que isso tem
na fragmentação de comunidades minando sua capacidade de existir.
Com a
ascensão desses movimentos de extrema-direita e governos autoritários no mundo
hoje, as mulheres feministas (assim como os comunistas e a população LGBT) são
apontadas cada vez mais como as grandes inimigas, as que irão destruir as
famílias heteronormativas — o próprio Bolsonaro se elegeu muito baseado neste
discurso e mantém grande parte de sua base de apoio, especialmente entre
religiosos dessa forma. Como as acusações e a punição de ‘bruxas’ se repetem na
atualidade, nesse contexto?
Sim,
tentam culpabilizar as mulheres de tudo. Eu acredito que é importante denunciar
isso e mostrar o quanto é falso e mentiroso o que esses senhores estão fazendo.
Porque, por exemplo, dizem que estão defendendo a vida, que a mulher não pode
controlar sua sexualidade, que não pode controlar seu corpo em nome de uma
defesa da vida. Mas isso é na verdade uma grande mentira porque se preocupam
com os fetos somente enquanto estão dentro dos ventres das mulheres. Quando
nascem essa preocupação acaba. É muito claro que isso na verdade é só para
controlar os corpos das mulheres. Por exemplo proibindo a contracepção ou o
aborto. Não existe o desejo de proteger a vida mas, sim, o de controlar os
corpos das mulheres, assegurar-se de que as mulheres sejam subordinadas,
sacrificadas, que possam ser exploradas por suas famílias e pelo capitalismo. É
uma questão econômica também, a igreja com essa aparência da defesa da vida, da
família, na verdade está defendendo a produção do trabalho não assalariado das
mulheres. E quando a igreja vê que não pode mais nos convencer de tudo isso
então nos trata como inimigas, cria novas divisões entre mulheres e homens e
entre mulheres também. Porque colocam algumas mulheres como aliadas do diabo.
Por isso é muito importante que as mulheres se organizem, que prestem atenção
ao que está acontecendo na África, por exemplo em que muitas têm sido acusadas
de bruxaria e mortas, expulsas de suas famílias, de seus povoados. Praticam
exorcismos não só em mulheres, mas também em rapazes que protestam contra a
precarização, o empobrecimento. Por isso eu acredito que este é um tema que
merece atenção dos movimentos feministas e dos movimentos sociais como um todo.
Você também pode acessar a entrevista no site da Agência Pública: https://cutt.ly/ixKD7dD