por Adriane Garcia__
Sim, o
coração pensa constantemente. Alguns pensamentos não nos assustam, pois estão
em conformidade com a moral, com a cultura, com os ensinamentos de nossos pais,
com aquilo que nos mandam pensar. Porém, há outros tipos de pensamentos: “esses
pensamentos parasitas são mais comuns do que parecem, mas ninguém fala sobre
eles, por medo da crítica alheia”, alerta a escritora Rosângela Vieira
Rocha.
De
fundo autobiográfico, escrito durante a pandemia do Covid 19 e a partir da
morte de uma irmã-modelo, a autora nos conta os pensamentos/sentimentos de Luísa,
em seu processo de luto por Rubi. A narrativa, feita em primeira pessoa,
permeada por lembranças em comum, movimenta-se de forma não linear, alcança o avanço
terminal da doença de Rubi, reflete para organizar o vivido e trabalha a
desmistificação necessária: “Têm de se esforçar bastante para desmistificar as
mais velhas e tirá-las do pedestal em que foram postas durante a infância,
muitas vezes influenciadas pelos pais. Fazer com que uma irmã mais velha se
transforme para nós no que realmente é – irmã, independentemente do ano de seu
nascimento – pode ser uma tarefa para a vida inteira.”
Quando
nosso objeto fraterno morre, é preciso que não nos tornemos “sobremorrentes”,
na expressão usada por Luis Kancyper em sua obra O complexo fraterno.
O sobrevivente seria aquele que vivencia o luto e consegue, ao fim, direcionar a
libido para outro objeto de amor, “vida que segue”. Já o “sobremorrente”
faz do morto uma aparição fantasmática, cujo porão assombrado se situa dentro dele,
passando a ser a sua principal ocupação, retroalimentando-se vitimário e vítima
e interferindo na realidade ao seu redor.
Para
não ser uma “sobremorrente”, Luísa rememora, repete e reflete.
Revive e ressignifica. Engana-se quem pensa que a narrativa tem sua fagulha de
ignição no capítulo I, quando sentindo o cheiro da bacalhoada (prato que Rubi
adorava), Luísa sente náuseas e nós, lendo, começamos a partilhar do
mundo fraternal que ela descreve. A fagulha de ignição de O coração pensa
constantemente é o capítulo XLVIII em que os sentimentos de incompreensão,
ciúme, inveja e ressentimento saltam à cena inequívocos, trazidos por um mensageiro,
o filho da irmã morta, o sobrinho querido que quis ferir a tia, talvez movido
por seu próprio ciúme, mas alegando lealdade. A narração de Luísa é o
esforço de rechaçar, compreender e responder as acusações que vê como
absolutamente injustas, quando tudo que fazia era exercer seu amor.
É desta
complexidade das relações fraternais que o romance de Rosângela Vieira Rocha
fala. Com passagens ternas, ambientação de cidade do interior na maioria das
cenas, narração de acontecimentos simples e cotidianos de uma família
trabalhadora e pobre, ascendendo para a classe média, ela tece a história de
uma grande amizade. De uma relação que se deu na aliança de duas irmãs,
facilitando o encontro com o mundo, o enfrentamento da vida, da opressão (familiar
e social) que sempre há. A comum rivalidade entre irmãos, que tanto pode
beneficiar quanto arruinar o sujeito, cumpriu na história de Luisa e Rubi
a etimologia da palavra, em latim, “rivalis”: ter direito à mesma
corrente de água.
Ao lado
do complexo de Narciso e do complexo de Édipo, participa o complexo fraterno,
assim definido por Luis Kancyper: “O complexo fraterno é um conjunto
organizado de desejos hostis e amorosos que a criança experimenta com relação
aos seus irmãos.” O complexo fraterno pode tanto estruturar quanto adoecer
o sujeito. O irmão é o primeiro intruso, o diferente de nós, ao mesmo tempo que
é o nosso mais semelhante, aparece como nossa réplica. Força o nosso treino quanto
à alteridade, toca em feridas narcísicas, no lugar delicado que pensamos ocupar,
como protagonistas, na vida de nossos pais. Faz com que sintamos ciúme (padrão
de posse) e inveja (padrão de não posse), pode nos aprisionar no ressentimento
e no remorso. O fraterno pode ser nosso aliado na luta geracional, para que
Chronos, o pai terrível, não nos devore. Entre irmãs/irmãos pode surgir o amor
que se chama amizade. Seja como for, não se fica imune à relação com um irmão/uma
irmã, feita de concorrência, amor e ódio.
A dor de
Luísa é notada por todo o romance, caracterizada pela falta, pela saudade
e pelo desejo de mudar os eventos: “Quero que receba de novo o sopro de vida
com que foi concebida”. Ao mesmo tempo, o esforço de racionalização não
deixa a narradora sucumbir a essa dor, tampouco a narrativa cair no
sentimentalismo. Luísa admite que apesar de cada luto ser único, não é o
primeiro que ela vive, “se habitua” e, assim, vai mostrando o quanto de
cumplicidade e intimidade existiam nessa relação em que a irmã mais velha era
vista como a gema mais rara e bonita (um rubi) pela irmã mais nova, tomada de admiração.
Escrever a memória é antecipar-se à desmemória, Luísa materializa na
escrita aquilo que, antes, quer salvar para si, contra o tempo: “Preciso
escrever – pois corro o risco de me desintegrar, se não o fizer – sobre o que
sempre me fascinou em você, a diversidade dos seus talentos, o alcance da sua
inteligência, a sua singularidade, a sua irreverência.”
É
interessante notar que o movimento de Luísa é o de agradar a irmã,
mostrar a ela o quanto a ama, por exemplo, quando preparou a festa de
aniversário de 20 anos de Rubi ou quando decorou a igreja para o seu
casamento, isso tudo driblando condições materiais escassas. Ao mesmo tempo,
fica evidente na narrativa, a consciência da narradora sobre ser ela própria a
preferida de seu pai, a despeito de ser Rubi quem o auxiliava no
trabalho e na manutenção financeira da casa. É interessante que isso seja afirmado,
quando se sabe que a preferência dos pais é motivo de grande disputa no meio
fraterno e um motor de consequências psíquicas. Na cena em que, após a morte da
irmã, vai buscar alguns objetos que foram dela e que poderiam lhe servir, Luísa
vê apenas roupas cômodas, confortáveis e suspeita: “Imaginava que possuísse coisas
bonitas, xales, casacos, cachecóis”. Ou seja, a imagem prevalecente da
irmã, mesmo durante os anos de adoecimento, ainda era o da moça saudável que
usava roupas elegantes.
Em
alguns momentos a narradora/protagonista fala diretamente à irmã, numa espécie
de carta que só pode ser respondida pelo passado. Há um momento em que a
narradora diz que Rubi foi sua mãe. O movimento de cuidar e ser cuidada
transitava: em várias fases da vida revezaram-se nesse papel. O fato de parecer
que era Luísa quem mais cuidava de Rubi pode estar ligado ao fato
de que é Luísa quem narra e, portanto, privilegia seu próprio papel na narração.
É perceptível que enquanto a narradora crescia na literatura, a irmã se
ressentia por não alcançar um lugar maior na pintura; de repente, não tinham
mais o direito de beber a água do mesmo rio. Entre comemorações pelo sucesso
alheio, os sentimentos de fracasso pessoal (ainda que fantasiosos) eram
ativados em Rubi. E o fracasso de um irmão pode ativar a culpa pelo sucesso
no outro.
O modo
como Rubi acolhia Luísa se transforma com a sua doença pulmonar. Rubi
passa a ter que usar tubos de oxigênio, limitando sua mobilidade, passando
grandes períodos em hospitais. Com isso, Luísa nos relata como a
enfermidade trouxe para a irmã desconfortos e dores físicas, além de dores existenciais
e consequente mudança de humor. Pois se já é difícil fazer o luto por uma perda
objetada no outro, mais terrível se torna estar no luto de sua própria perda, a
perda de si mesmo, o ego que sempre pensamos indestrutível, na antecipação da
própria morte. Tudo isso desperta raiva manifesta em Rubi, assim como o
sentimento de impotência em Luísa, que não consegue com suas visitas,
suas conversas, suas ofertas e sua saúde levar alegria ou sentido para a irmã. Rubi
inicia o processo de verbalizar comparações de sua vida com as vidas de outras
pessoas, que supõe terem sido mais aproveitadas que a própria.
Voltemos
ao capítulo XLVIII, ao jovem Fabrício que faz a revelação que não
podíamos prever em O coração pensa constantemente. Fabrício é o
filho adotivo de Rubi (assim como Luísa já se sentiu em relação à
irmã), cuja adoção causou, à época, grande ciúme em Luísa, pois a adoção
é tida como um grande ato. Fica patente a rivalidade quando a narradora registra
que dentre os filhos da irmã, o adotivo é o seu sobrinho com quem tem mais
intimidade (ou seja, ela também é capaz de adotar). É interessantíssimo que
justamente esse sobrinho disputado seja aquele que irá tentar atingir os
sentimentos narcísicos de Luísa, de forma impiedosa, com uma informação
que podia guardar para si – se é que o fato que ele traz se deu exatamente da
forma como ele conta – já que Fabrício também está envolvido por uma
história pessoal e por percepções que não conhecemos, também está se sentindo
impotente diante da morte da mãe. Parece que o filho se sente imbuído de ressentimentos
que toma como herança. Parece um misterioso acerto de contas.
O
coração pensa constantemente é um romance sensível, bonito,
complexo, simples, que utiliza a palavra para fazer um balanço diante da morte
de um ser amado. Não há esperanças teológicas, metafísicas, crenças além-túmulo,
fugas infantis. Há o vivido-revivido, a imortalidade do registro, a homenagem
do amor dito e redito. Também não há a ingenuidade e a hipocrisia do
senso-comum, que negam que o coração possa pensar de modo “negativo”. O coração
é o primogênito de nossos órgãos, primeiro a se formar no útero e munido de sua
própria rede de milhares de neurônios. O coração pensa, constantemente. Pela
janela, no auge da doença, depois de tossir muito, Rubi olha e pronuncia
sobre a vida: “Então era isso? Só isso?”
Ao fim
do balanço, ainda que as relações fraternais variem caso a caso, Rosângela
Vieira Rocha/Luísa conclui, a partir de sua experiência, que se tudo está
compreendido, tudo está perdoado: “Só os que têm irmãs podem entender a
essência, o núcleo, a delicadeza e a beleza desse vínculo. Que não é imune a
conflitos nem a rivalidades, mas consegue sair incólume das desavenças, por ser
feito de matéria incorruptível e perene.” Dessa forma, está enviando uma
carta para Rubi, para sua memória. Uma carta que reafirma a amizade e
que transforma a visita do sobrinho em apenas mais uma faceta do amor a ser
compreendida.
***
O
coração pensa constantemente
Rosângela
Vieira Rocha
Romance
Ed.
Arribaçã
2020
Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG, e mudou-se para Brasília em 1968. Jornalista, escritora e professora aposentada do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UnB, é advogada e Mestre em Comunicação Social pela ECA/USP. Tem treze livros publicados, para adultos e crianças. Em 2020, lança pela Arribaçã Editora, “O coração pensa constantemente”, romance que fala de sororidade entre irmãs, com os afetos e desafetos que possam existir nessa relação, de forma lírica, nostálgica, mas também crua, quando o enredo pede, verdadeira.
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020