PorAlexandra Vieira de Almeida___
No novo livro de contos da ficcionista
sergipana Taylane Cruz, O sol dos dias (Penalux, 2020), temos 19
textos ricamente trabalhados pela tessitura do chiaroscuro. Sua técnica revela
as epifanias e mistérios da vida em momentos aparentemente simples e
cotidianos. O sol, ora aparece, ora se esconde nos escombros da noite,
apresentando a regeneração e, ao mesmo tempo, as ruínas do humano. Como ela
disse em suas entrevistas, sua delicadeza não é inocente. Há uma leveza mágica
e feérica nos seus contos, que é ferida pela pele cruenta do mundo em todo o
seu lado sombrio e perverso. A ingenuidade primeva e originária passa por
desdobramentos de luz e caos, ao se quebrar nas ondas profundas dos abismos. O
sol é um símbolo ambíguo, que dá a vida e queima, fere de morte as coisas, os
animais, os seres, enfim. Simbolicamente, o número 19 é representativo, pois é
a carta do sol no jogo de tarô. E o título do livro não poderia ser mais sugestivo
e ambivalente, pois o sol dos dias não se refere apenas à manhã, mas também aos
dias que correm na sua dinâmica de claridades e escuridões.
A sombra só existe devido a potência da luz,
que cria seu oposto e, também, sua irmã. Na carta do sol no tarô de Marselha,
vemos duas crianças que brincam alegremente, mostrando a inocência e a
vivacidade. Mas tal sentido na obra de Taylane ganha um contorno ambíguo, pois
se a carta for invertida, indica seu oposto, o lado mais sombrio da consciência
humana, um sol negro que irradia sua força maléfica ao apresentar o ser humano,
dentro de si, no centro de seu coração, como uma dupla imagem de vítima e
algoz, humanidade e desumanidade. No belíssimo e instigante prefácio de Maruze
Reis, professora de Literatura, encontramos a seguinte afirmação: “O sol
dos dias é um livro iluminado, mas não espere o leitor que a apreensão dessa
luz ocorra na superfície das coisas”. E na epígrafe de O sol dos dias, temos:
“Porque eu já sabia que o amor é o sangue de todas as coisas”. Com essas
referências, podemos esclarecer que o livro por ora aqui analisado, trabalha
com os contrastes mais distantes, fazendo da luminosidade uma entrega para a
cama da noite, com todos os seus reveses e enigmas.
Elegi sete contos para dar um panorama mais
reflexivo sobre características seminais em sua obra contundente. São eles: Saravá,
Riso, Colecionador de conchas, Ilha dos passarinhos, O
dia em que quase matamos um cão, O sol dos dias e O pintassilgo.
O conto de abertura do livro é epistolar, misturando os gêneros, dando
hibridismo ao fator literário do texto. Logo no início do conto, temos:
“CARA DONA EDILÉIA, pedi para dona Creuzinha escrever-lhe estas traçadas
linhas, pois eu não sei ler tampouco escrever, mas isso não me impede de me
defender”. Há a fusão da professora que escreve a carta, no seu aspecto de
texto e a oralidade em primeira pessoa, endereçando uma história contada, em
tom de crítica, revelando uma problemática leitura/escrita, que é sanada com a
ajuda de Creuzinha. Há o relato da verossimilhança, pois as palavras ditas são
transcritas exatamente como experenciadas na realidade vivida da personagem que
não sabe ler e escrever. Um retrato do analfabetismo em nosso país, que deixa
os desvalidos num terreno movediço da exclusão social. Mas o nome da relatora
que não sabemos ainda, no seu tom de criar-se uma expectativa no leitor,
dando-se na esfera do silêncio e do ocultamento, é inusitadamente revelado
posteriormente, pois no seu pedido de desculpas, por ter sido ferida nos olhos por
dona Ediléia, em tom acusatório, apresenta revelações que vão sendo iluminadas
de forma crescente na sua urdidura solar, mas projetando a sombra da dúvida e
da ironia.
Logo no início da carta, vão se criando
expectativas que surgirão de forma surpreendente, como nos seus outros contos
do livro. Ela não mata a charada logo na primeira mordida das frases iniciais.
O leitor irá desbravar uma floresta magmática que explode os sentidos após a
fractação da luz em inúmeras cores e significados. A agressão, a violência se
expõem numa linguagem apreensível. A mulher que pediu a escrita da carta para a
professora cria um verdadeiro texto argumentativo, revelando a dissertação em
meio á narração, fundindo os estilos, de forma rica e eficaz. Ela se justifica,
dizendo que é uma pessoa idosa. Há toda uma delicadeza do gesto da personagem
não tão simples assim, apesar da crítica social, num duplo jogo de
discernimento e recursos implícitos. Apesar de ela não querer revidar, por
outro lado, não se julga santa, não se santifica, apenas se humaniza e cita um
trecho bíblico, na sua dimensão intertextual, alternando a parte do corpo, da
face para o olho, pois esse é o leitimotiv da narrativa: o olho é metáfora para
o enxergar os detalhes não percebidos por almas ignorantes. E a personagem
carrega toda uma sabedoria das anciãs, pois apesar da idade, não é tão
sacralizada, colocada na sua imitação de Cristo, tendo os defeitos que o humano
carrega em sua consciência. Ela diz: “Mas também não ofereço o outro olho, não
tenho vocação para Jesus”. Invertendo o sentido original do texto bíblico, a
narradora parodiza o versículo essencial da compaixão cristã. A ironia fere a
sacralidade do Amor Fraternal, pois apesar de não querer dar uma resposta
violenta e física a sua agressora, não terá também o afeto por ela, quebrando o
laço que as unia. Ressignificando a visão, Taylane nos mostra a parte frágil, a
fragilidade do ser no corpo e na alma. Sem ser gentil, sua linguagem oscila
entre a utopia, o sonho de mudança da outra e o sarcasmo. Apesar da linguagem
do dia a dia, apresentada na carta, temos recortes líricos. A personagem
principal, que é vitimada, é catadora nas ruas, e faz uma crítica mordaz à
estrutura social numa linguagem simples e direta, sem floreios. É uma pessoa
humilde e crítica, mostrando a sabedoria que vem da experiência na rede dos
dias. Ela cita frases da outra na carta e a chama de dona, senhora. Isso seria
uma respeitabilidade, por ser uma carta dirigida a uma destinatária, ou uma
ironia ácida?
Numa passagem do conto, ficamos sabendo o
porquê do título do texto, que nos despista, pois “saravá”,de acordo com o
Dicionário Antonio Houaiss indicaria “salvar”, proveniente dos africanos
escravizados de origem banta. O sol não ilumina desde o início, mas somos
sacrificados pela luz a partir da projeção das sombras das palavras, que nublam
o real sentido das coisas. Ela reflete sobre a pobreza afetiva de dona Ediléia,
através das humilhações e espírito de grandeza. A catadora saboreia as coisas
boas da vida, busca o prazer, o riso, a espontaneidade em meio à rigidez da
senhora. As palavras utilizadas como “dona” e “senhora” também poderiam indicar
sisudez e rudeza de Ediléia.
Por outro lado, a alma na pobre vitimada não é
tão simples, parafraseando um conto de Flaubert, pois ela percebe o mundo
poeticamente, apesar de morar na rua. Prefere a natureza ao artífício, pois a
senhora adorava adornos e enfeites. Ela utiliza comparações e metáforas sobre
as coisas da vida. Compara dona Creuzinha, a professora, que a trata com sensibilidade
com a dureza de dona Ediléia. A utilização do nome da professora no diminutivo
só vem reforçar essa intimidade e afetividade entre seres tocados pelo céu da
humanização. A luz do sol encontra uma brecha no coração dos seres. A narradora
da carta gosta de novelas, o popular, desfrutar das coisas pequenas e delicadas
da vida. Em oposição, temos a arrogância da outra. A carta revela o jogo dual
do espelho, a crítica e o conselho, na ânsia de mudança do outro. Além da
citação bíblica, de ditos populares, temos a sabedoria da sacralidade oriental,
com a imagem da flor de lótus, mostrando a sapiência que se esconde sob o véu
da pobreza e humildade. Têm-se citações nos aspectos da ancestralidade, da
família, do antigo. A anciã não se sente a dona do mundo, como a destinatária,
que tem o domínio sobre o outro, num processo de exploração e opressão. A
catadora reflete sobre a estrutura do sistema da sociedade, mesclando o ser e o
social, o interno e o externo. Num rico paradoxo, a emissora da carta diz: “Palavras
ferem, isto até eu que não sei ler sei”. Com um jogo de contrastes e analogias,
usa a mesma palavra, para expressar sua sabedoria existencial, atingindo o
coração e a consciência do leitor, num labirinto duplo de sensibilidade e
conhecimento. Há momentos duros na carta, que cortam como facas, e flores
abertas ao lirismo arrebatador. E a crítica mordaz de uma catadora de rua nos
faz lembrar da grande escritora Carolina de Jesus. Mas é sempre pelo contato
com o outro que a sabedoria se dá, que a luz do autoconhecimento se adentra nos
poros do ser. Entre o oral e o escrito, o conto apresenta uma surpresa no
final, ao leitor vislumbrar uma luz no fim do túnel, uma miudeza de sol, um
raio solar de dentro da senhora Ediléia. No meio da crítica, somos arrebatados
por momentos raros, doces e sensíveis. E há um aspecto da sacralidade presente
na vida da anciã, que deixarei aos leitores descobrirem. Assim, temos o sagrado
e a epifania, em meio ao cotidiano, como tão bem nos revelaram Katherine
Mansfield e Clarice Lispector, dois gênios universais. E basta
sabermos se a alma profunda da anciã irá revelar o motivo do murro no seu olho
por dona Ediléia. A crítica dura e o desejo do bem são mesclados numa simbiose
perfeita. O final tem a imagem da chave de ouro.
No conto “Riso”, a narradora inicia o enredo
com esta frase: “Os beija-flores haviam sumido”. Numa tonalidade misteriosa, em
meia-luz, o começo da história nos orienta pela diferença em meio ao habitual,
um estranhamento em face da normalidade da vida. Os nomes incomuns em alguns de
seus contos demonstram uma individualidade marcada pela originalidade, pela
potência de unir as antíteses da vida. Aqui, o nome da personagem é Riso, mas,
a partir do chamamento da patroa, sabemos seu nome em sua inteireza: “Risoneide,
vem cá!” Temos a sutileza, a sensibilidade no início da narrativa, com a imagem
da natureza em profusão e arroubo líricos. O tom de mistério surge através de
um desaparecimento. Essa tonalidade pastel que se principia se choca com a voz
e o grito estridente da patroa, um ponto obscuro e caótico, prendendo nossa
atenção ao logo do enredo mirabolante.
Algo inaugural acontece naquele jardim, que
traz um questionamento, uma dúvida. É um jardim de mistérios, com seu tom
mágico e encantatório, tendo uma pitada de aventura investigativa. Riso decidi
fazê-los voltar. Quer tirar o traço estranho ao familiar, ao conhecido,
trazendo a luz de volta para sua existência, pois o desaparecimento dos
beija-flores representa uma reviravolta na sua vida, se transformando em
estaticidade, na sua placidez de estátua. O movimento de sua experiência
costumeira é quebrado por um fato transformador e impactante que a acordará
para um outro mundo. Quando menina, Riso foi chamada de feia e ela teve que
conviver com isso, mas, por sua inventividade afetiva e poética, quis driblar o
caos dessa constatação se enfeitando. Se no primeiro conto, temos o
questionamento da narradora, aqui a dureza dos outros também corta e sangra a
essência do ser, o Amor é pintado de sangue. O mundo do outro que os circunda é
terrificante e sacode o interior e exterior dos seres e das palavras. Riso usa
um disfarce, uma máscara, uma persona (enfeite) para matar a incompreensão do
outro. Com sua inventividade, fazia-se bela. O tom é encantado. Mas mesmo com a
externalidade dos adereços, Riso percebia que era dentro de seu coração que
guardava o maior tesouro, as coisas mais belas.
Nos seus contos, percebemos que Taylane faz
analogias entre o humano e a natureza, revelando o processo de transformação
entre os reinos: “Riso cantarolava, sibilava, rodopiava no jardim como uma
borboleta bailarina”. E, no meio da narrativa, uma surpresa, a narradora se
revela como personagem que observa Riso, escondida, em sua cobertura de
mistério, o leitor ficará sem saber sobre o desvendamento dessa pessoa
enigmática? Qual será seu papel na história? Riso utiliza artimanhas para
conseguir trazê-las de volta, num jogo lúdico no meio natural, o jogo poético
através da natura. A misteriosa narradora não é nomeada, criando uma abertura
ao não dito no enredo. Nem todas as palavras podem ser nomeadas. Os vazios e
silêncios também estão grávidos de luz e significados ocultos. É essa a
mensagem que Taylane nos quer passar. Algo inesperado acontece, a interferência
do ser misterioso com um ato surpreendente na história em que ela vai
interferir e mudar o curso do fluxo fluvial da narrativa. O conto vem nos falar
do sofrimento em meio ao encontro da felicidade, da suavidade em face do
trágico e dramático, densificando cenas do dia a dia. O desfecho é de uma
potência inusitada e original. O trágico, o riso, o sofrimento, a delicadeza,
estão, aqui, imbrincados, numa cadeia sígnica polivalente. A flor tem todo um
simbolismo sensível, a força interior, o dentro em sua atmosfera onírica.
No conto “O colecionador de conchas, nos
deparamos com a relação do neto com sua avó. O personagem tem um intenso prazer
de colecionar conchinhas, guardando-as num pote de vidro. Podemos ver nesta
metáfora, o encontro entre o interior do sujeito e o mundo que o circunda. Num
encontro entre interno e externo, as pequenas coisas fluem como gigantescas
moradas no espaço de dentro, no coração insólito do ser. O uso de diminutivos é
recorrente nas narrativas de Taylane, revelando a doçura e a afetividade no seu
enfrentamento com o chão duro do real. A imagem dos potinhos com sortidas e
coloridas conchinhas mostra a metáfora da própria composição de sua obra, ou
seja, o eixo temático da unidade, um único objeto, em meio à variedade dos
matizes. É como a luz projetando camadas palimpsesticas, desvendando os véus da
diferença, em que no interior do fruto, encontrássemos o sumo, o cerne, a
semente, em diversas cascas que têm tonalidades entre o claro e o escuro, o
tenro e o maduro, o inocente e o adulto. Aliás, na sua obra, temos o ciclo das
idades, indo da infância, juventude, maturidade e velhice. Em seus contos
discernimos a essência e a aparências dos objetos, das plantas, dos animais e
dos homens. Um fator inesperado para o olhar do menino faz ele se deparar, quando
volta da escola, com um homem morto na calçada da casa. Ele poderia imaginar
várias coisas diferentes e inusitadas, mas não isso.
O poder da imaginação une o consciente e
inconsciente das personagens, num processo de florestamento dos sentidos
latentes e expostos a olho nu. O questionamento do menino é perceber que
ninguém tinha reparado no que ele viu. Isso me faz lembrar da novela A pomba,
de Patrick Suskind, em que o personagem se depara com uma pomba em
frente à porta de seu apartamento, um acontecimento aparentemente banal, mas
pleno de epifania. Aqui, no conto de Taylane, o garoto enfrenta a figura de um
morto, como ele fazia ideia. É algo estranho que nos arrebata, que nos leva a
um estado de petrificação e, ao mesmo tempo, de algo que produz movimento no
interior do ser humano. O menino é um fino observador, observa com detalhes as
características do defunto. Nos seus contos, encontramos tanto a curiosidade e
a observação de uma criança, quanto a sapiência de uma anciã. Os círculos das
idades se tocam em um ponto comum. Pois é do humano que estamos falando, como o
exterior impacta o interior. Só depois de um tempo, descobrimos o nome do
menino, quando sua avó o chama e o acontecimento do defunto é revelador,
metamorfoseia a serenidade do menino, em sua tranquilidade de colecionador de
conchas na praia, como símbolo de trânsito, passagem, que o menino acorda para
um susto, um espanto. O cadáver causa repulsa, nojo, repugnância e altera a
leveza inicial do conto com o lirismo e a poeticidade de colecionar o belo.
Assim, entre a leveza e o peso, as asas e as pedras, Taylane vai tecendo suas
belíssimas histórias. O final deste texto é surpreendente, ocorrendo uma
inversão, com um espelho transfigurado, uma reviravolta em que ficaremos
impactados. O arremate é de uma grandeza perfeita e de uma beleza mágica,
criando analogias, pontes entre os elementos da natureza e o homem morto que o
menino encontra no chão a partir de seu poder de fantasia. As crianças, os
jovens, os adultos, os anciãos, ou seja, as eternidades das idades se opõem ao
tempo destruidor do inumano, da perda da aura enigmática pelo caos e desordem
social.
Seguindo o estudo dos contos, temos “A ilha
dos passarinhos”. Nele, inicialmente temos uma ciranda com um trecho de uma
música em meio à natureza de uma ilha que era visitada por turistas. A letra da
música indica o amor inocente entre as crianças, com um beijinho, um abraço. O
mundo das brincadeiras, em seu viés de ingenuidade nos faz voltar à imagem do
Paraíso reconquistado, como aquela ilha será descrita por um turista idoso, um
desconhecido que mexe com os alicerces daquela região. O narrador diz:
“Trocavam de par estalando beijos nas bochechas, abraçando como se possuíssem
tímidas asas no meio da roda, enlaçados pela ingênua brincadeira”. Temos a
questão das rodas, cirandas, o universo infantil em sua doce representação.
Além disso, cenas do cotidiano se carregam da sublimidade, da grandeza, o
ordinário e o extraordinário se tocam, perfazendo o voo dos pássaros azuis
livres das gaiolas. Mas a natureza bela do lugar não bastava aos moradores. Era
necessário a visita de estranhos para dar energia àquele lugar remoto. O outro,
a outridade de que falava Octavio Paz, mostram que o ser não se basta a
si mesmo, precisa de si e do diferente de si, para que a completude e a
totalidade se presentifiquem.
Seria preciso uma novidade humana para renovar
o apetite daqueles seres, dando-lhes vida, trazendo um diferente paladar para
sabores variados. O prazer e o deleite, no entanto, se chocam com a morbidez e
a violência, entrelaçando-se numa dança exótica, como imagem da consciência das
pessoas. A ilha como metáfora do espaço da interioridade é assaltada
subitamente pelo que vem da travessia, de fora, o estrangeiro. A ficcionista Taylane
Cruz cria expectativas no leitor com a apresentação de personagens plenos
de mistérios, o insondável na esfera da mente humana, o que desconhecemos,
incita a nossa imaginação mais vibrante, mas que não sabe das virulências mais
torpes. O sol aparece, aquecendo a ilha e as pessoas, num lastro iluminador das
trevas abissais do que virá. O pai de uma das meninas da ciranda é que fazia o
trajeto de barco, trazendo os turistas e nisso chega um “velho de chapéu
marrom-claro e camisa branca”. Esse personagem é cheio de perguntas sobre o
lugar, observações que deixo para a leitura dos receptores do conto.
E nesse texto, também temos a síntese do
processo criativo de Taylane, que dá unidade à obra, a potência do jogo luz X
sombra, uma metáfora que surge aqui da natureza para o humano, nos seus
intercâmbios de pertencimentos e aproximações. Comparações inquietantes, que
nos tira da zona de conforto: “águas escuras mas brilhantes”. Inicialmente,
temos o olhar infantil do ancião, unindo o novo e o velho, o originário e a
densidade poética: “É como ver o mundo pela primeira vez”. O mundo é
ressignificado pela metonímia da ilha, outra figura de linguagem, que condiz a
parte pelo todo. O mundo da consciência do visitante é revelado para o leitor
na sua relação com a ilha e seus moradores. O processo de doçura e encantamento
na história é abruptamente cortado no final do conto. O que era doce se
transforma em algo agreste, terrificante, alterando o universo infantil,
violando a inocência primeva. Há a virulência da agressividade que fere a pele
da ingenuidade e do olhar primeiro do mundo. O conto nos vem falar do amor
entre os seres, mas também do dissabor de um ato vil que mancha o puro com a
impureza da indecência.
O conto “O dia em que quase matamos um cão”,
a história começa com a luz da tarde e vai se sombreando a partir de um ato de
vingança de meninos com relação a um cachorro que assusta e ataca as pessoas na
cidade. O que vamos ter aqui são as “aventuras da infância”, num tom
memorialista. Temos cenas do lar, com o “cheiro da broa fresquinha e do café
que mamãe servia impreterivelmente à catorze horas”. E esse início ameno será
rompido pelo chicote metálico da lei de talião, olho por olho, dente por dente.
Os meninos querem encontrar uma solução para combater, num estilo de guerra
mordaz, e utilizar uma forma cruenta de se matar o animal. Os nomes têm
significados cruciais em seus contos. Aqui, um dos personagens, Tadinho, revela
no diminutivo um véu que se oculta, a compaixão humana mostra um rico contraste
em que ela é subvertida pela ironia dos aspectos mais agressivos do ser,
inclusive já na infância, que não se apresenta em sua pureza. O narrador mostra
os opostos “mosquito/luz”, o embate entre o dever, na educação, ter que fazer
tarefas, e o chamamento para as brincadeiras.
Numa das passagens do conto, até as belas
imagens e metáforas apresentam uma colcha de retalhos em que convivem o leve e
poético com o endurecimento e a solidez da vida, como juntar num mesmo
parágrafo, “as abelhas assanhadas”, “uma oficina mecânica cheirando a
ferro e óleo”, “uma britadeira furando paralelepípedo” e “nuvens
coalhadas no céu”. As crianças por imitação uma da outra se desbravam no
ato de tentar matar o cão. Uma vibração, uma energia, algo em comum que une
aqueles meninos num ato de violência. O cão levava o terror e o medo para a
vizinhança. O animal é algo que incomoda, que fere o curso dos dias de uma
localidade, ameaçando a todos. Tadinho, com seu nome cheio de ironia, é o
iniciador do plano de vingança, o cabeça da turma. Assim, a ingenuidade não é
algo pleno naqueles garotos. A vingança seria a melhor solução ou haveria uma
outra forma de plano que não conduzisse aquele ato? O imediatismo é a forma que
eles buscam se armar contra a ferocidade do pastor alemão. O animal até tinha
atacado uma velhinha na rua. Eles querem revidar e o narrador até utiliza nas
frases a palavra “redentor”, como se aquilo fosse salvar todos os
moradores. Eles queriam se mostrar como verdadeiros heróis. Mas há o medo do
menino em meio ao ato. Será que a crueldade inicial será revertida, invertida
pela luz tênue da culpa e do compadecimento?
E a tentativa de matar o pastor alemão é muito
forte. Há uma linha divisória na personagem principal que toca a visão
compassiva? Há um jogo de iluminação e anoitecimento no coração dos seres. A
imagem da “vacilação do dia” é uma espécie de déjà vu, o início e o fim
retomados na narrativa. Há uma fronteira entre as dimensões, mas ao mesmo
tempo, encontramos a tangibilidade de extremos opositivos que se encontram na
“hora perfeita”. Os sentimentos são antagônicos na consciência dos humanos, a
adversidade em meio ao rio transparente da inocência primeva, intocada pelo
caos e pelo sombrio.
Continuando, no conto-título do livro, “O
sol dos dias”, há logo no início do enredo, o reino das comparações, um
pintinho que nasce e rompe a casca branca como “um sol irrompendo a manhã”.
Não é só o mundo humano e o animal que são comparados e contrastados, dentro da
própria natureza, as analogias são possíveis, revelando uma teia mágica que a
todos envolvem numa unidade em meio à diversidade. Antônia e a avó passam por
uma experiência milagrosa, que seria um “instante de iluminação”. Nasceram
vários pintinhos, e Antônia, uma menina, no seu espírito maternal quer cuidar e
nutrir carinhosamente os bichinhos. Além de alimentar a mãe e a ninhada, ela os
contaria um a um. Uma forma de organizar seu mundo e não deixar que nenhum
deles se perdesse nos arredores da região. A abundância e a reprodução se
revelam como verdadeiros milagres, um estado epifânico no mundo animal, em vez
do humano, dando uma variação ao tema: “A galinha de Dona Marlene chocou uma
ninhada de quarenta pintos!” E a intertextualidade mais uma vez comparece
aqui através das histórias antigas, como a galinha dos ovos de ouro. A sensibilidade
de Antônia se apresenta como a face mais humana da beleza. Um tesouro guardado
a sete chaves. Taylane nos revela algo encantado, que traduz as fábulas
milenares e as histórias de fadas: “Contava como se o dedo fosse uma varinha
mágica abençoando cada pintinho”. Os usos dos diminutivos, aqui, representam a
força afetiva da narrativa. A delicadeza da menina perante o horror do que se
esfacela na ruína do mundo. A força protetora de Antônia é inigualável, só não
se comparando a Deus, dando-lhe, o narrador o devido respeito. A visita de um
casal com a filha causa uma estranheza, metamorfoseando o desfecho. Há uma
ferida e um sangramento na pele suave do céu iluminado inicial, com a luz
projetando uma sombra gigantesca nos muros dos olhos do leitor. O conto também
discute as questões do medo e da submissão, contrariando a leveza do afeto de
Antônia, em seu universo secreto e amoroso. Se apresenta aqui a dependência
psicológica do outro, algo que o filósofo indiano Krishnamurti tão bem
explicitou em suas palestras. Há as faces da aflição e da angústia que se
chocam com a serenidade dos começos, como os ovos em sua potência de vida e
morte, pois tudo o que nasce, quebra a casca, está fadado à morte. A crueldade
e a tortura humanas versus a docilidade, a vítima e o algoz. Dessa forma, nos
contos de Taylane, encontramos o seguinte questionamento: o coração de muitos
poderia se modificar ou há pessoas irrecuperáveis? O poder da regeneração é
possível? Aparece a metáfora da lágrima, a água, o mundo do sensível e da
liquidez em face da solidez pétrea. A espada que corta o tecido tênue das
palavras.
Concluindo a análise do livro neste ensaio, a
obra se fecha com o conto “Pintassilgo”. Nele, temos a presença de ricas
imagens e a efemeridade das coisas. Aqui num rompante, o início da narrativa
não apresenta a leveza como nos contos citados anteriormente. O tema trágico da
morte é logo anunciado para terminar, paradoxalmente, no ciclo da regeneração,
pois o final do texto é poético, revelando a força redentora do mundo, o humano
ressignificado pelo dom das letras equilibristas. No arremate do conto, vemos:
“E como o amor tem a sua linguagem não foi preciso dizer mais nada”. A notícia
dramática da morte da personagem Teodora de forma abrupta é retrabalhada com a potência
do bisturi cirúrgico em cortar os excessos e trazer à tona a memória seletiva
de ações mais impactantes na vida da personagem, que enquanto menino de doze
anos, nutria um amor por Teodora, já adulta. A metáfora das pérolas e dos
espinhos, a concha em seu caráter de dubiedade é retratada com beleza e
precisão poéticas.
O narrador diz: “Teodora foi meu primeiro
amor”. Algo não perspectivado no começo aparece subitamente na narrativa
sem espera, sem pistas, sem iluminação, reverberando as sombras do ocultar por
meio das palavras. A temática amorosa irrompe o crepúsculo da morte,
amortecendo o caos mórbido do princípio. O narrador volta à infância com seu
amor alimentado pelo alumbramento, algo que nos faz lembrar do poema “Evocação
do Recife”, de Manuel Bandeira. Teodora é uma mulher feita e o menino nutre
um “amor secreto”. E o narrador e ela se comparam pelo “bom coração”, imagem
que será rompida ao longo da história. Invertendo os outros contos, por ora
aqui analisados, que iriam do delicado à dureza, aqui temos a presença primeira
da dureza para o mais delicado. Mas esses elementos se misturam na narrativa,
ora apresentando recuos ou avanços um do outro. Numa potência quiasmática
estrutural, Taylane densifica a relação entre os contrários. O narrador se
lembra de um fato na infância cruel que choca Teodora, pois ela flagrou os
meninos que matam um pintassilgo, arrancando-lhe até o miúdo coração, num ato
de bestialidade. E Taylane também revela o poder do masculino até nesta fase
juvenil. Os meninos gritam com deboche contra Teodora, enquanto ela revela
compaixão. Temos a visibilidade do ato, o flagrante, projetando sua luz sobre
as sombras dos meninos. O “bom coração” é uma figura irônica frente à
delicadeza da personagem que celebra a vida e não a morte, mas aparece como
morta na introdução do conto.
Portanto, Taylane Cruz é uma exímia ficcionista, apresentando aos leitores os meandros do interior dos seres em todas as etapas da vida, com a externalização do ambiente, da localidade e da natureza. As individualidades são multifacetadas. E a autora sergipana risca um fósforo na pele do sol, tentando nos trazer um alento, um feixe de luz no coração desumano dos seres, resgatar a humanidade, o sentido da poesia no caminhar íngreme e áspero da existência. Assim, a luz tênue do sol é urdida pelas sombras das palavras, que só existem a partir da iluminação que vai da escritora até atingir o centro oculto de seus leitores. Que sua obra se expanda e conquiste muitas consciências, dos bons críticos e dos leitores sensíveis.
Para comprar: