por João Gomes__
Escrever alguns parágrafos sobre um livro de poemas nunca foi tão
difícil e ao mesmo tempo tão delicado. Perdoem, não posso descrever a sensação de mergulhar na concisão deste livro, porque
o expandir é maior que qualquer estancamento. É o que sinto ao ler a poesia de Michaela
v. Schmaedel, autora de Coração cansado (editora Penalux,
2020) e em breve Quênia - Poemas de viagem (Cas’a edições). Sendo
este ainda inédito, escolho a tempo falar de seu primeiro, este volume tão elogiado
e honesto na sua dor. Da simplicidade de palavras tão habituais surge uma
poesia capaz de fazer permanecer: “desejo/morte/sobrevivência.”
Percebe-se um potente equilíbrio estético em Coração cansado, seu
título confirma a exaustão do ser em sua contínua busca. De forma proposital,
cumpre com o que não deseja cumprir, por esboçar além do possível e expor o
luto diário com uma saída através da poesia. Nunca tendo um tom de desabafo, os
poemas são pistas carregadas do esforço de seguir: “É preciso esquecer para
continuar./Não lembrar, eis a chave. / Felizes os desmemoriados.” Ainda
assim, há a lembrança que retorna e não deixa cair a ficha da ausência. E nesta
luta de puro luto, segue-se:
“Bairro nobre/casa boa/desespero
quarto e sala.” É possível sentir a agonia da ausência, ou mesmo da Saudade:
“Lugar-comum é estar longe de ti.”
A melancolia acontece sobretudo pela perda de alguém muito próximo. O livro é
dedicado também ao seu pai “in memoriam”. Como aprendizado de todo o
processo, algumas lições à própria poeta valorizam e mostram como é possível o
atravessamento:
“Não permitir que o enorme pássaro sem asas/afete o teu espírito
criativo. / Ter no bico um estado permanente/de uma felicidade estranha.”
Esta estranha felicidade que só lhe foi possível através da escrita e
“sem reclamar demais”. Fazendo um significado daquilo que sequer poderíamos
imaginar, a magia da criação acontece. Tamanha a realidade existencial de cada
ser, a morte de um cão ilustra bem o valor de nossa dor em relação ao todo:
“Lutar não fará com que não
morra,/fará apenas com que morra cansado. / Alguém te salvar nunca foi
opção.”
Do primeiro ao último verso, é possível ouvir os batimentos deste
coração que mesmo exausto continua: “Nada de novo no fogo/nada a declarar no
amor.”
Tudo parece ser possível, apesar dos pesares, como se para tudo tivesse
um jeito, e a resiliência fosse o pavio dessa chama, “Se não fôssemos nós/a
casa/a queimar.” Não foi preciso religião: “Quem precisa de deuses tão
pouco comunicativos?”, tampouco o suicídio: “Descobrir que a faca corta
tão bem/as cenouras como os dedos.” Tudo ou quase tudo utilizado está aqui,
mas a impermanência da vida dá sinais: “esta onipresença selvagem”.
Às vezes a descrença diante do mundo, como no poema Humanidade:
“metade pedra/e a outra metade também.” dedicado maravilhosamente ao poeta
Chico Alvim, mas sempre o afeto, a esperança e o amor: “Que não seja a
morte/a única que mostre seus/argumentos definitivos.” São impressões
afiadas de quem “sobreviveu” e se reconectou a sensibilidade, mas sem as
limitações do sentimentalismo exacerbado: “Um postal cotidiano/para falar da
saudade/num texto curto/não sentimental.” As referências são sempre
pertinentes, num diálogo direto ao objeto da falta. “Estou a ver o
autoretrato de Lucian Freud, e por qualquer semelhança boba (rugas fundas,
olhar parado, cara perplexa), estou a pensar em ti.”
Michaela v. Schmaedel propaga, com sua poesia, a expansão
da dor sem utilizar mecanismos de autoajuda sobre o que por vezes é
impossível de se verbalizar. Fala de sua experiência, de suas formas de alívio,
faz comparações e recriações sobre o que lê e acredita: “Respirar é
também/admitir que não há/ar suficiente.” Seu livro é também uma explícita
conversa sobre estes dias que vivemos, sobre esse fogo que queima e escurece o
país, sobre esse luto que enfrentamos diariamente. E que ninguém se engane
quanto à salvação: “São dias difíceis/my friend/nem Bob Dylan dá conta.”
O enfrentamento de si não exige fórmulas, nas páginas deste livro somente se
for para solucionar as “guitarras distorcidas”.
Coração cansado sabe onde deseja chegar, é um livro tomado de instantes perpetuados por Michaela,
sendo um valioso diário de sobrevivência ao mundo adoecido e fragilizado. É uma
obra que ensina, mas que não deseja jamais ser didática. Não fala apenas do
luto de alguém nem cansa como o desgaste restaurado numa simulação de
acontecimentos passados. É o portal de uma construção lúcida, porque “É
preciso ver um ponto à frente /
seguir/seguir/seguir / como
um camelo esperançoso no deserto.”, escreve no último poema. Melhor convite para seu próximo livro, Quênia
- Poemas de viagem, sabendo que sua escrita não deseja ser apenas utopia,
mas sim uma força real capaz de reluzir todo coração humano, porque ainda “Somos
o homem/ancestral agachado/na savana
do Quênia.”
João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da
revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias
impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.