por Iaranda
Barbosa__
O
polegar pressionando a válvula de um isqueiro para manter a chama acesa. A
imagem desfocada ao fundo parece ser uma mulher de cabeça baixa e turbante ou
com cabelos enrolados em forma de touca. Os tons pastéis amarelo e bege
iluminam a mão. Assim se apresenta capa de “As tripas coração”,
de Ezter Liu. Quase que mecanicamente viramos o livro para ver a
contracapa e nos deparamos com:
Tenho dezenove
anos e coleciono isqueiros vazios. Coleciono isqueiros. E coleciono vazios.
Tenho vinte anos e aprendi a odiar o formato dos meus seios. E aprendi a odiar
a finura dos meus lábios. Meu coração Himalaia. Meu coração Vale do Catimbau.
Meu coração dimensão estranha. China plástico neon coqueiral. Tenho setenta
anos nos domingos depois do jantar. Lenta. Premeditada. Disfarço a imprecisão
das mãos. Tenho trinta pontuais anos no expediente. Me sirvo de bandeja. Sem
atrasos. Tenho quarenta e três anos e calos nos cotovelos. Me sirvo com gelo no
balcão do bar. Tenho cinquenta anos. Preciso parar de beber. Tenho dezesseis
anos. Preciso parar de fumar. Tenho sessenta e sete anos. Preciso acreditar nos
santos. Em deus. Em mim.
Mais
que complementárias, capa e contracapa revelam que em “Das tripas coração”
o protagonismo feminino transita em vários universos. Além disso, o trecho é
uma pequena amostra do que o leitor encontrará ao abrir o livro e se deparar
com contos escritos sem vírgulas, literalmente, através de uma linguagem que se
aproxima bastante do poema. Tal característica permeia toda a obra na qual Ezter
Liu exaspera técnicas narrativas e poéticas. As vozes narrativas circulam
levadas ora pelos paralelismos (A casa tem sido devorada devagar pelas
formigas um pouco por dia há cinquenta anos. Dona Rosa tem sido devorada
devagar pelo tempo um pouco por dia há cinquenta anos) ora por um narrador
testemunha que se dirige ao leitor (Vocês viram? Eu vi: ela saiu duas vezes
daquele lugar) ora por diversas outras estratégias linguísticas utilizadas
pela autora para construir uma obra fora do senso comum e que nos tira da zona
de conforto.
O ritmo
é marcado pelo estilo, pela própria palavra, pela escolha lexical, pela
disposição das frases, pelas pausas obrigatórias dos pontos de um período para
outro, pelos gerúndios empregados para criar imagens. As diversas e variadas técnicas
constroem narrativas de mulheres sob a temática da solidão, da filosofia, da
maternidade não romantizada, da introspecção, da resiliência. A dramaticidade
gravita lado a lado com o lirismo ao redor de um grande quebra-cabeça que vai
construindo-se a cada período. Ezter Liu, a mulher que escreve sem vírgulas,
consegue estabelecer ordem no caos e deixar caóticos os nossos sentimentos no
fim da leitura.
Nos
vemos na pele das personagens, diante/dentro de abismos gerados por situações
desesperadoras, cuja única saída é lançar-se em um abismo, em águas profundas,
em um caminho sem volta, labiríntico. O desespero pelo amor não correspondido,
os medos, a incapacidade para deter o tempo, a vida não aproveitada, a falta de
perspectiva de futuro. As batalhas diárias para as mínimas mudanças, a
conservação da dignidade quando tudo lhe foi tirado (É com ípsilon viu?
Dizia a moça do nariz quebrado. Já eram três e meia e ela era a oitava vítima a
sentar na cadeira da frente), a inveja alheia, a falta de empatia.
Múltiplos são os mundos femininos apresentados por Ezter Liu. Os
cenários e o tempo mudam sutilmente, indicando tanto o estado de espírito
quanto o gestual das personagens:
Andou
até ficar escuro e tudo permanecia insuportavelmente familiar. Mas começou
depois de algum tempo a estranhar umas calçadas [...] Andando
sentiu o chão virar tapete de folhas e esqueceu um pouco a cor das paredes da
casa. Depois o chão virou grama cortada e ela esqueceu o vidro do armário da
cozinha. Pisava leve um chão florido agora e esquecia as persianas e outros
tantos utensílios e eletrodomésticos com seus carnês de prestação [...]
O andar
cabisbaixo se funde com o espaço. A força das narrativas de “Das tripas coração”
se confunde com a poesia marginal e potente das batalhas de Slam (Quem foi
que enfiou com força e depressa e depois te chamou de frígida? Quem apagou as
luzes no melhor da tua festa? Quem vendou teus olhos e depois te chamou de
cega?). Angustiantes, perturbadores, incômodos são algumas das
classificações para os contos de Ezter Liu. A mulher que escreve sem
vírgulas.