É preciso escrever movido pela própria criação da escrita

 por João Gomes, Rebeca Gadelha e Taciana Oliveira__

 





Entrevistamos a poeta Michaela v. Schmaedel que, em maio, lançará seu próximo livro, Quênia - poemas de viagem (Cas'a edições). Na conversa a escritora comenta: Ninguém escreve para si mesmo, escrevemos para que o outro leia, e queremos que muita gente leia, porque isso tem a ver com a vaidade, com se sentir aceito e ter a nossa escrita validada pelo público e por quem admiramos.

 

1 - O jornalismo e a poesia estão presentes no seu dia a dia de forma integral. Nas suas redes sociais, você se descreve como uma “jornalista com tendências poéticas”.  Atuando na área cultural, como se deu a sua formação até a publicação do primeiro livro de poemas, Coração cansado, publicado ano passado pela editora Penalux?


Esta minha definição está um pouco desatualizada, deveria ser o contrário, porque tenho estado cada vez mais perto da poesia e longe do jornalismo. De todo modo, ainda faço alguns trabalhos como editora de cultura, principalmente resenhas de livros, e também desenvolvo e coordeno alguns projetos pela minha agência de conteúdo, a Rima. Minha formação é um pouco confusa, porque estudei História, mas sempre trabalhei como jornalista. O meu primeiro emprego foi como repórter, na editora Abril, aos 20 anos e, desde lá, passei por várias redações de revistas, sites e jornais. Nestes lugares, o que sempre me interessou foi cobrir as áreas culturais: literatura, teatro, música e cinema. Talvez tenha sido isso, ao longo dos anos, que acabou me levando para perto da literatura. Ainda que esteja já mais distante do jornalismo, guardo um grande carinho e uma imensa admiração pela profissão, mas não me vejo mais trabalhando numa redação. Ter pedido demissão para montar uma pequena agência e conseguir, assim, mais tempo para me dedicar à poesia, com cursos e oficinas de escrita, foi uma decisão acertada. A partir de certo momento, é importante tentarmos dar o rumo que realmente queremos para as coisas, se tivermos, claro, condições para fazer isso.

 

2 - Em uma colaboração à Revista Cult, ao recomendar a leitura de alguns poemas, você afirma que a poesia lhe serve "como um pequeno alento, um fôlego, que ameniza um pouco o sentimento de solidão, inclusive quando se mostra tão sozinha e desamparada quanto cada um de nós.” De que forma a poesia tomou essa dimensão em sua vida e como ela lhe influencia na sua profissão?


A poesia tem uma dimensão hoje tão grande na minha vida que chega a ser irritante. É uma espécie de vício, do qual não consigo me livrar. Digo isso, porque leio poesia e penso nela quase o tempo todo. Quando olho para uma paisagem, penso num poema. Se alguém diz algo interessante, penso num poema. Se olho um objeto, penso num poema. É exaustivo por um lado, mas por outro, percebo que, com esta busca pela poesia em todas as coisas, tenho melhorado a minha escrita. Porque a poesia, como qualquer outro trabalho, requer treino. Lembro sempre de algo que Joseph Brodsky escreveu, de que “a poesia é um extraordinário acelerador do pensamento”, e quando a pessoa percebe isso, não consegue mais parar de ler ou escrever poemas. Acho que ele tinha razão: escrever de forma concisa (se compararmos com a prosa), dando saltos no pensamento, que é o que a poesia faz (ou tenta fazer) é uma experiência maravilhosa. A poesia ainda é um alento para mim, influencia qualquer coisa que eu faça, mas também é, às vezes, muito cansativa.

 

3 - Coração cansado demonstra uma certa descrença, um esgotamento diante da realidade que nos confronta e do qual somos obrigados a enfrentar. Como foi o processo de seleção dos poemas?

 

Sim, acho que há um esgotamento no livro, mas também há, aqui e ali, uma esperança, ainda que pequena, já que a minha tendência é ser pessimista em relação ao mundo em que vivemos. Acho que transito, também na intimidade, entre a descrença e a beleza que vejo nas coisas. Daí a epígrafe que está no livro, um verso do Rilke: “Deixa que tudo te aconteça: a beleza e o assombro”. Também tenho bastante humor, que acabo colocando em alguns poemas, até mesmo quando tento evitar.

A seleção dos poemas não foi muito alterada do original, porque quando achei que o livro estava pronto, mandei para o Tarso de Melo, que gentilmente concordou em fazer uma leitura. Quando ele, que é um poeta que admiro muito, me disse que eu tinha ali um livro pronto, quase não mexi mais, porque fiquei com medo de estragar. A única mudança significativa foi alterar o último poema, que era muito desesperançoso, e como já estávamos no início da pandemia, achei que deveria terminar o livro com algo que desse alguma coragem.

 

4 - Seus poemas quase sempre dialogam com outros autores e muitos são dedicados a poetas contemporâneos. Qual sua opinião sobre o atual momento da poesia brasileira quando pensamos na diversidade de títulos publicados por editoras consagradas e independentes? Poeta escreve quase sempre para outros poetas?

 

Acho que estamos num momento muito criativo e produtivo da poesia brasileira. Acho bacana ver tanta gente publicando, não só em livros, mas também em plaquetes, zines, podcasts, no Instagram, no Facebook. Não entendo a crítica de alguns poetas que dizem ser ruim ter tantos poetas hoje sendo publicados. Para mim, quanto mais, melhor. Agora, é claro que eu não gosto de tudo que leio. Mas acho excelente ter cada vez mais poesia publicada no país, até porque algo que não me agrada, pode agradar a outra pessoa. O importante é ter mais gente lendo, mais gente com acesso, isso é democratizar a poesia, a literatura de forma geral.

Sobre se o poeta escreve para outros poetas, não sei dizer. Mas acho que o poeta, assim como quase todo artista, se preocupa demais com o público, seja ele qual for. Ninguém escreve para si mesmo, escrevemos para que o outro leia, e queremos que muita gente leia, porque isso tem a ver com a vaidade, com se sentir aceito e ter a nossa escrita validada pelo público e por quem admiramos. Quase sempre, na poesia, isso não acontece na dimensão megalomaníaca da nossa cabeça, muito pelo contrário, e acabamos decepcionados. Não se pode escrever movido pela repercussão, porque isso fatalmente dará errado em algum momento, ainda que um livro faça algum sucesso ou ganhe um prêmio. É preciso escrever movido pela própria criação da escrita. E deixar de lado o resto.


5 - A concisão de seus versos transmite uma emoção comparada ao instante em que olhamos uma fotografia. A melancolia da perda e a forma de como é possível reagir à violência da morte estão equilibradas de uma forma lúcida ao sofrimento e a resiliência. Como foi possível seguir esta costura para não esbarrar num livro apenas de desabafos pessoais? 


Esta pergunta me lembrou aquele poema famoso do Drummond, Procura da Poesia, em que ele diz: “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”. O luto, um amor, a saudade, uma tragédia, nada disso é, de antemão, poesia, e tudo isso pode ser poesia, se você transformar em outra coisa. Não se pode esquecer que poesia é ficção, ainda que possa ter elementos biográficos. É uma construção nova de algo vivido, imaginado ou presenciado, algo que foi deslocado. Tentei, no livro, fazer isso, transformar o luto que estava passando pela morte do meu pai em outra coisa, deslocar a dor, criar novos espaços, novas imagens. Sobre a concisão, acho que é uma característica do meu trabalho, algo que carrego do jornalismo, onde sempre temos pouco espaço para o texto. Cortar, então, acaba virando um hábito. Além disso, existe uma força muito grande nos versos curtos e, de certa forma, uma amplidão. Com poucas linhas, o leitor precisa, muitas vezes, pensar o resto. Uma vez, o poeta Ismar Tirelli Neto me disse algo muito bonito sobre isso: “Quem faz poemas curtos é um poeta generoso com o tempo dos outros”. Sempre me lembro disto.


6 - Em um de seus poemas lemos: "Como tem vivido? / De vinho e poesia." Você também é editora do podcast Poesia pros ouvidos, onde os autores leem seus próprios poemas. Como surgiu a ideia do podcast? Fala pra gente do teu processo de curadoria? Como ele acontece?


 O podcast Poesia pros Ouvidos é uma criação do meu amigo, o poeta Rodrigo Luiz Vianna. Ele teve esta ótima ideia de chamar os poetas para lerem seus próprios poemas, no intuito de divulgar a poesia brasileira. Neste ano, ele me convidou pra tocar o projeto, porque  não teria tempo. Desde então, tenho feito edições temáticas. Na primeira, convidei poetas de Portugal, num intercâmbio entre os países, na segunda, convidei poetas do norte e nordeste do Brasil, para sair um pouco do eixo Rio-São Paulo, na terceira, a que estou preparando agora, estou escolhendo “poemas a céu aberto”, ou seja, estou pedindo a leitura de poemas que estejam ambientados na natureza, nas festas, nas ruas. É uma nostalgia da liberdade que perdemos por causa da pandemia e do grande descaso deste governo.


7 - Geralmente escritores com formação em jornalismo optam pela prosa, mas você escolheu a poesia. Na sua trajetória você encontrou nos cursos de escrita literária um suporte criativo para sua produção poética? 


Sim, fiz já várias oficinas com ótimos poetas, como Angélica Freitas, Tarso de Melo, Ricardo Domeneck, Paulo Ferraz, Yasmin Nigri, Ismar Tirelli Neto, entre outros. São cursos que abrem sempre novas perspectivas, porque cada escritor vem de uma formação diferente, tem um tipo de escrita. Além destes cursos que costumam ser curtos, fiz também um mais longo, o Clipe (Curso Livre de Preparação de Escritores) , que durou o ano todo de 2019, na Casa das Rosas. E agora estou fazendo um que vai durar este semestre, também lá na Casa das Rosas, chamado Poesia Expandida. São cursos com excelentes professores e com colegas igualmente obcecados pela poesia, então, é sempre uma troca muito boa.

Gosto muito de prosa também, leio muitos romances, acompanho o trabalho de vários escritores brasileiros e estrangeiros. Não escolhi a poesia de forma consciente, fui sendo levada a ela. Talvez um dia tente escrever prosa, um livro de contos, não sei. Estas divisões podem e devem ser ultrapassadas. O importante é ter algo para contar e escolher a melhor forma para isso, seja prosa, poesia, ensaio, crônica.


8 - A sua escrita literária é o próprio cenário daquilo que você acredita como salvação? 


Não acredito na escrita como salvação. Se você não tiver o que comer, onde morar, se não puder ir à escola, se não tiver como cuidar da saúde, se não tiver um trabalho, a literatura não será um item de primeira necessidade. Arrisco até a dizer que ela não terá nenhuma importância na sua vida. Agora, tendo o básico, acho que a literatura te dá, assim como as outras artes, muitas possibilidades de crescimento intelectual, social e estético. Ela dá beleza, ainda que fale ou mostre algo terrível, ela faz com que você imagine outras possibilidades.  Como já disse Novalis: “A poesia é, entre as ciências, a juventude”. Ela tem a ver com o novo, com a descoberta, com a revelação. Mas não acredito que ela salve, acho que ela funciona como uma luz, como naquela música do Leonard Cohen, em que ele diz: “Há uma rachadura em tudo, é assim que a luz entra”. A poesia, para mim, é esta luz que entra pela rachadura.

 

9 - A concisão é uma das características da sua produção poética. Você já recebeu críticas no que diz respeito a isso? 


Sobre a concisão, as críticas têm sido positivas, porque as pessoas, muitas vezes, não têm paciência de ler poemas longos. Neste sentido, a minha poesia é fácil de ser lida. Recebi críticas negativas em relação aos meus finais conclusivos demais. E concordo, esta é mais uma característica que trago do jornalismo, porque as matérias sempre terminam com uma conclusão, e da qual pretendo me livrar. Mas aí lembro da Orides Fontela, que também fazia isso, e penso: tenho é que fazer melhor, talvez a saída não seja abandonar. Vamos ver.

 

10 - "Como um camelo/esperançoso/no deserto" são os últimos versos do seu primeiro livro, versos que são o portal para o próximo, Quênia - poemas de viagem. Em entrevista ao site Como eu escrevo, você afirma que poemas que falem da natureza são os de sua predileção. Como foi escrevê-lo e quais os próximos projetos após a publicação deste?

 

Sim, cada vez mais a minha poesia se volta para a natureza. Dá para perceber isso em alguns versos do Coração cansado, mas agora acho que este aspecto ganhou força com o Quênia - poemas de viagem (que será lançado em maio, pela Cas'a edições), livro que escrevi durante uma viagem ao país africano. A verdade é que cidade sempre me cansa muito, meu sonho é morar no interior. Quando estou perto na natureza, tenho muito mais a dizer do que quando estou na cidade. Até a poesia urbana demais tem me cansado. Depois do livro Quênia, estou trabalhando num terceiro projeto, que provavelmente vai se chamar Paisagens Inclinadas, justamente com poemas que falam do homem em meio à natureza, onde as árvores, as montanhas, o mar têm um papel crucial. Tenho gostado disso, de estar na natureza e de escrever sobre estar nela. O meu atual mantra é um verso do José Tolentino Mendonça: “Não somos a casa/ somos a montanha e o relento”. É isso, poder estar na natureza, no relento, na montanha, é hoje o meu impulso principal.

 


 


Michaela v. Schmaedel (1976) nasceu e mora em São Paulo, é editora de cultura e poeta. Cursou o CLIPE (Curso Livre de Preparação de Escritores), na Casa das Rosas, além de oficinas de escrita com Angélica Freitas, Tarso de Melo, Ismar Tirelli Neto, Ricardo Domeneck, entre outros poetas brasileiros. É autora do livro Coração Cansado (Penalux, 2020), Quênia – poemas de viagem (Cas’a edições, 2021) e está na antologia “As mulheres poetas na literatura brasileir”a (Arribaçã, 2021). Escreve resenhas sobre literatura para jornais e revistas e cuida da edição do podcast Poesia pros Ouvidos. 

 



João Gomes
(Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.

 






Rebeca Gadelha - beca (ou becka) cresceu em Fortaleza, na companhia dos avós. É otaku, gamer e artista digital, formada em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem fraco por criaturas peludas e gorduchas, viciada em chá gelado. Trabalha com edição de vídeo do projeto Literatura & Libras (@literaturalibras), participou das coletâneas Paginário (Aliás Editora 2019) e Laudelinas (Nada Studio Criativo, 2020) além de ter sido responsável pela direção de criação de Manifesto Balbúrdia Poética (CJA Editora, 2019), A Banalidade do MalColetânea Diários de Quarentena e O Amor nos Tempos de Lonjura, do Selo Editorial Mirada.







Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.