por
Adriano B. Espíndola Santos__
Traços
de corrupção eram implícitos em seu olhar. Olhos da cor do mar – banhado de
sangue de golfinho, no mar do Japão. Seria melhor se comparasse os seus olhos ao
permanganato de potássio, em processo de decomposição. Mas não devo falar dos
olhos. Havia muitos sinais. Falo, então, de sua compleição decaída. Braços
longos, finos, muito colados ao corpo, igualmente esguio. Busto de princesa, recém-saída
do calabouço; asfixiada por ar vicioso, guardado há séculos para alimentar a
mesma dor. A boca, uma mistura de pêssego com maçã, lívida. Para mim, estava
prestes a morrer. O mal entranhado poderia expirar em poucos dias. Foram essas
as minhas impressões. Ela tinha, a rigor, um marido, alguém que devia
supostamente lhe socorrer. Todos da rua diziam, em uníssono, que ela quedava
dias e dias só; uma alma abandonada. Portanto, o marido, de quem não se sabia o
paradeiro, era uma espécie de vulto sorrateiro, que aparecia em tempos de
lascívia. As minhas rusgas antigas, com ela, foram de pronto desterradas do
pensamento. Eu não podia; ou melhor, não aguentaria ver Samara naquelas
condições e nada fazer. Primeiro, tentei injetar-lhe ânimo, com boas e
certeiras palavras; para que me respondesse; para que reagisse. Dona Elvira, a
vizinha fuxiqueira, surgiu e perguntou o que estava acontecendo; que queria
ajudar. Não, ela não ajudaria coisíssima nenhuma; era estratégia para colher
informações e repassar para as e os repórteres do bairro. Aliás, ela aparecia
nas piores horas, para dar conta das tragédias. Não dei confiança. A mulher,
não suportando a indiferença, decretou: “Pois que se danem!”. O alívio
momentâneo: não ter uma coruja de mal agouro por perto. Logo mais, foi a vez de
Ernesto, um bicheiro boa praça, amigo de geral, oferecendo seus “préstimos para
o que se fizesse necessário”. Pedi que me ajudasse a retirá-la dali, das vistas
do povo. Ele demandou que o esperasse, pois estava despachando uma encomenda.
Saiu. Voltou, cinco minutos depois, com uma ruma de marmanjos, prontos para
urubuzar. O Borges, o espertalhão, metido a malandro do morro, se acocorou e
ficou ao lado do corpo desfalecido; ofereceu-se para realizar manobras de respiração,
ou seja, para bom entendedor: boca a boca; declarou que tinha formação para
tal. Eu, simplesmente, o empurrei, pedindo que respeitasse a mulher. Ele,
revoltado, me perguntou se eu era alguma coisa dela; se eu tinha direito de
mandar, já que não era o marido. Retruquei a grosseria, o machismo, reiterando
que estava ali para ajudar, e não para me aproveitar. Samara arfava, um cansaço
rouco, miúdo, não podendo emitir sons. Para agravar, surgiu das entranhas do
inferno o capiroto, o bebum Aldemir. O desgraçado, com a garrafa de 51 na mão,
abriu-a e despejou uma dose inteira no rosto da convalescente. O canalha
alegava que não havia contraído a covid porque bebia todo dia santo,
gargalhando: “todo dia é santo!”. Dei-lhe uma rasteira para arranjar trabalho
para os curiosos. Pelo menos, boa parte da massa amorfa que se formava se
debandou para acudi-lo. Samara ainda respirava, com dificuldade, e me mirava,
com olhos arregalados de súplica. Foi a hora em que me desesperei, com o único
intuito de salvá-la, e dispersei o peso da consciência, o medo de contrair a
mesma doença. Alguém deveria fazer algo e, nesse caso, sem sombra de dúvidas,
seria eu. Abracei-a de encontro ao corpo, para levantar a sua cabeça; para que
respirasse melhor. Ela tossiu e, natural, afugentou as trinta pessoas que
esperavam o momento para conferir a hora da morte. Ouvi, longe: “Morreu, Jorge
Luiz! Morreu! Dessa cê não escapa!”. Nesse instante, pensei no nosso passado,
no namoro conturbado que tivemos. Há anos não trocávamos uma palavra. Há anos ambos
ignorávamos o que quer que viesse de cada lado. Eu estava pouco me lixando para
o casamento dela; para a escolha fodida que fez, de se casar com um miliciano.
A questão era que, para completar, o miliciano foi meu amigo. Fura-olho do
caralho, puxou-a de minhas asas. Desejei a morte, aos dois. Mas agora, não.
Deveria salvá-la para livrar a minha consciência. Descobri que ainda a amava. Desci
com Samara nos braços, seis quadras, chutando as barreiras pelo caminho. Deveria
ir ao posto, mas estava lotado. Aperreado, parei no calçadão da Avenida Central,
com ela no colo, e comecei a chorar. Foi a sorte de passar uma senhora, muito
bondosa, que ligou para o hospital e pediu uma ambulância. Na demora, pedi
perdão à Samara, pelas enrascadas em que a meti; pelo desprezo; pelas encrencas
que criei. Desmanchei-me, pedindo aos céus a salvação de Samara. Quando a
desgraça da ambulância chegou, a vida era rara; estava por um fio. Perguntei ao
médico a probabilidade de recuperação, ele disse: “Quase zero, infelizmente”. Despedi-me,
com a certeza do perdão. Enfrentei vários dias de incertezas, de dura
penitência, sem saber se a veria, ainda, viva. No oitavo dia, a notícia: a
morte ceifou qualquer resquício de esperança. A morte, agora, estava no meu
encalço. Convenci-me de ter feito a coisa certa, na hora exata, para me
redimir. Estávamos, enfim, perdoados. Poderia partir.
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